O Brasil, o terrorismo e os espectros

Imagem: Ton Molina/AFP, disponível em O TEMPO.

Terrorismo

Em 2014, durante a Copa FIFA no Brasil, a minha empregadora deu camisas oficiais da seleção canarinho para todos os funcionários. Foi um belo gesto e um belo presente. Mas, se eu já fazia ressalvas à camisa da seleção desde os idos de 2018, o último 8 de janeiro de 2023 veio para sepultar qualquer chance de eu vestir essa camisa no futuro. Ela se tornou um símbolo de tudo o que mais desprezo: estupidez, covardia, golpismo, fascismo… Interrompo a lista, por contenção. Por isso, a camisa foi para a caixa de doações. Não que eu ache que os menos afortunados deveriam ser confundidos com quem veste essa camisa para praticar barbárie. É muita humilhação com gente já marginalizada. Mas entre a doação e o lixo, acho que ela ainda pode servir melhor no primeiro grupo.

No “mundo líquido” de Bauman, as palavras também têm perdido a substância e o sentido original, numa velocidade assustadora. Na política brasileira, então, esse esvaziamento de sentidos é notório e pré-data a era digital, ou seja: não foi ela que forçou o esvaziamento dos sentidos dentro da vida política.

Há muito, eu crítico a Esquerda brasileira pela falta de zelo com as palavras. Foram seus atores que esvaziaram o sentido de “fascismo” e “fascista”. Quando todos são, ninguém é. E os representantes desta Esquerda usaram e abusaram da “licença político-poética” de empregá-la. O resultado, tal qual a fabula de Pedrinho e o Lobo, foi que quando o termo realmente precisou ser empregado para alertar o povo do que estava por vir, ninguém mais se importava com o peso e o alarme nele contidos.

Outra palavra bem surrada é “terrorismo”. Desde 2001, pelo menos, o terrorismo está em todo lugar. Existia antes, mas virou vírgula depois das Torres Gêmeas novaiorquinas. Então, como eu já comentei sobre as 14 características do fascismo, passo a comentar sobre o sentido de “terrorismo”. É bom adiantar que as definições de “terrorismo” são bem diferentes no meio político e no meio jurídico. Começo pelo último.

A Constituição Federal de 1988, Lei maior no ordenamento jurídico brasileiro, e pacto social firmado entre todos os nacionais deste país no que tange à organização do Estado, utiliza “terrorismo” sem, no entanto, explicá-lo. Ele aparece no art. 4º, quando define como o Brasil se comportará nas relações internacionais (e, por lá, repudia o emprego do terrorismo, bem como do racismo) e, mais tarde, no art. 5º, famoso por ser rol maior dos direitos constitucionais fundamentais do cidadão brasileiro, que define o terrorismo como crime inafiançável, conforme inciso XLIII (43), onde se definem inafiançáveis, também, os crimes de tortura e tráfico de drogas. É a conhecida – por quem estudou Direito – trinca “TTT” de crimes. Isso tudo dito, nada explica a Constituição acerca do que é “terrorismo”. E não há crime sem lei anterior que o defina, como comanda a mesma CRFB, neste mesmo art. 5º, inciso XXXIX (39).

Se pesquisarmos o Código Penal, Decreto-Lei 2.848/1940, tampouco encontraremos definição do que vem a ser “terrorismo”. Isso porque a regulamentação do que é terrorismo ocorre em Lei esparsa (fora do Código Penal) e tivemos a edição da Lei Federal n° 13.260/2016.

É essa Lei, conhecida como “Lei antiterrorismo” (embora eu discorde do “anti”, já que ela não se dedica a criar meios de combate ao terrorismo), que define em seu artigo 2º o que é terrorismo para o Estado democrático de direito brasileiro, numa perspectiva legal (jurídica).

Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

§ 1º São atos de terrorismo:

I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II – (VETADO);

III – (VETADO);

IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.

O primeiro entendimento que alcanço, portanto, é de que a Lei antiterrorismo não se aplica aos golpistas do último dia 8. E aqui cabe alguma contextualização histórica: o diploma legal em comento foi promulgado pela ex-Presidente Dilma Rousseff. Seu passado pessoal em grupos paramilitares pró comunismo, bem como sua posterior filiação ao Partido dos Trabalhadores que é fortemente baseado em movimentos sociais históricos do Brasil (MST, CUT, APEOESP, etc.) levou a todo tipo de pressão no Congresso Nacional para que a Lei antiterrorismo alcançasse tão somente o conceito “internacional” de terrorismo (o terrorismo de grupos religiosos, de grupos supremacistas por etnia, etc.), excluindo qualquer alcance ao “terrorismo doméstico” (grupos de nacionais que decidem executar atos violentos contra o governo em exercício, por qualquer razão). Daí a redação do parágrafo segundo. É este mesmo § 2º que livrará os bolsonaristas envolvidos no 8 de janeiro de se verem acusados de terrorismo nos termos do art. 1º, inc. IV, da Lei supra.

Portanto, “terrorismo”, juridicamente falando, diante do arcabouço (conjunto) do ordenamento pátrio vigente, não é crime pelo qual os vândalos possam ser denunciados. E o Direito Penal é extremamente fóbico a qualquer inovação em entendimento que permita a elasticidade do alcance dos tipos penais. Em outras palavras: o Direito Penal não tolera entendimento que facilite o enquadramento de condutas do indivíduo em crimes legalmente previstos, mas que não citam claramente a conduta perpetrada. E com razão. Fosse o Direito Penal amigável a essa liberdade do Poder Acusatório, todos que incomodassem o Estado (ou o governante) acabariam facilmente atrás das grades. Pelo mesmo motivo, mesmo que o Congresso Nacional editasse nova Lei ainda hoje e o Presidente Lula a promulgasse, ainda assim os bolsonaristas não poderiam ser processados sob a figura da nova Lei. Porque a Lei penal só retroage em favor do réu, nunca contra (art. 5º, XL [40], CRFB).

E se você está esbravejando por concluir que os bandidos de domingo sairão livres, veja isto por outro ângulo: é uma excelente oportunidade para falar para seu parente/amigo bolsonarista sobre a importância dos Direitos Humanos, da legalidade, da obediência à Lei por parte das instituições e do Estado-Juiz, e porquê vale defender um Estado democrático de direito. Fosse uma ditadura, o(s) ditador(es) poderia(m) mudar todo esse entendimento sem maiores melindres e poderia(m) condenar todos os arruaceiros à pena de morte, mesmo que retroativamente.

Mas, e o “terrorismo” no sentido político? Este certamente é termo adequado para os bolsonaristas nas ruas.  Embora o mundo nunca tenha chegado a uma definição universal do que é “terrorismo” (porque é um crime de definição “cinzenta” – toda revolução é ilegal, exceto se der certo…), os Comitês das Nações Unidas que se debruçaram nesse tema, nos idos dos anos 2000, chegaram à seguinte definição do que é a conduta terrorista:

“quando o propósito da conduta, por sua natureza ou contexto, é intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a que faça ou se abstenha de fazer qualquer ato. Toda pessoa nessas circunstâncias comete um delito sob o alcance da referida Convenção, se essa pessoa, por qualquer meio, ilícita e intencionalmente, produz: (a) a morte ou lesões corporais graves a uma pessoa ou; (b) danos graves à propriedade pública ou privada, incluindo um lugar de uso público, uma instalação pública ou de governo, uma rede de transporte público, uma instalação de infraestrutura, ou ao meio ambiente ou; (c) danos aos bens, aos locais, às instalações ou às redes mencionadas no parágrafo 1 (b) desse artigo, quando resultarem ou possam resultar em perdas econômicas relevantes”.

Portanto, sim, não há dúvidas de que os movimentos bolsonaristas nas ruas são terroristas, dentro de uma definição política, bastante aceita e atual (ONU, anos 2000). Mas para que se possa falar em crime de terrorismo, este precisa existir na legislação nacional, anteriormente ao(s) ato(s), para que se possa processar, julgar e prender o(s) individuo(s) que praticou(am) tal ação. É óbvio: há diversos outros crimes para acusar a horda de tresloucados. Dano, lesão corporal (contra os agentes que foram espancados), ameaça, crimes contra o patrimônio cultural (Lei 9.605/1998), a própria figura do Golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal) que foi criada em 2021, enfim… Muitas possibilidades, mas não a figura do crime de terrorismo. E, com ela, se vai a característica do crime inafiançável. Ainda terão ao favor de suas defesas, atenuantes do art. 65 do Código Penal, como aquela concedida ao crime cometido sob influência de multidão.

Neste breve resumo, quero alertar para fato que me parece claro: o Brasil, o Estado brasileiro, as instituições, a Lei, nenhum deles está pronto para lidar com o terrorismo bolsonarista. A Lei, como está, não os alcança em magnitude e não protege o Estado brasileiro e os cidadãos que o respeitam em suficiente. Fora da Lei, não há diferença entre bandidos e um Estado de exceção. Como não havia diferença entre os terroristas de Esquerda, planejando sequestros para forçar sua ideologia, ou os terroristas fardados, usando a máquina do Estado para perseguir e aniquilar quem os incomodava. Fora da legalidade e do prévio conhecimento das regras do jogo, vale tudo. E o vale-tudo não pode ter lugar na civilização e na cidadania.

Espectros

Os espectros, os fantasmas, o passado da história brasileira voltaram a aparecer com força inédita, desde a redemocratização. O que se assistiu no domingo passado e o que se ensaia para hoje, no início da noite, foi (e será) nada aquém do que uma tentativa de golpe de Estado. O que queriam os criminosos era que, diante da desordem instalada por eles, as tropas das forças armadas fossem às ruas, e sendo elas recheadas de simpatizantes pelos desordeiros, virassem-se contra Constituição de 1988, tomando o poder político das mãos dos que foram eleitos. Se ainda somos uma democracia é somente porque o cenário internacional não favorece um golpe e as famílias dos militares não querem perder o direito de ir pra Disney. Se não houvesse uma pressão internacional (especialmente dos EUA – ah, a ironia) em sentido contrário ao golpismo, já teríamos a voz do Brasil passando até no Twitter, à essa altura.

O problema é que a história sociopolítica do Brasil é feita de golpes de Estado. O caminho “natural” nunca existiu para a sociedade brasileira. Não. Aqui, política nova se faz com ruptura e solavanco. É verdade que em quase todo país do Ocidente, a história se repetiu do mesmo modo no início, mas o caso brasileiro é especialmente alarmante porque essa lógica jamais foi superada:

A queda da monarquia e o início da República se dá com um golpe dos militares contra o Imperador, em 1889.

O fim da primeira República (iniciada em 1889) e o início do Estado Novo se dá com um golpe de Getúlio, apoiado pelos militares que lhe eram simpáticos, em 1937. Acabou em 1945, também sob ameaça de um novo golpe de Estado e novamente por ação dos militares, agora, opostos a Getúlio.

Chega 1964 e a Democracia cessa outra vez, com os militares dando um golpe de Estado para impedir que o vice de Jânio Quadros, João Goulart, erigido a presidente pela renúncia do primeiro, pudesse levar a cabo seus planos político-econômicos, sob a alegação de que Goulart instalaria um regime comunista no Brasil. Detalhe: Goulart era tão comunista quanto eu ou você. Seu nacional desenvolvimentismo era de matriz Getulista (aliás, ambos eram do PTB, fundado por Getúlio justamente para “roubar” votos da classe trabalhadora, contra partidos abertamente comunistas).

Chegam os anos 1980, os donos da ditadura brasileira, general Geisel (penúltimo presidente do regime militar) e general Couto e Silva (o melhor “político fardado” que dispunham), percebem que vão sofrer uma revolução popular e, antes disso, desarmam a bomba-relógio “se adiantando” e devolvendo a República ao controle popular pelo voto (numa análise reducionista: democracia). Esse adiantamento foi letal para o equilíbrio porque, iniciado no meio dos anos 1970, permitiu que os militares programassem como “perderiam o poder”. E ainda ocupando o poder, obrigaram o outro lado (o nosso) a aceitar os termos postos à mesa. Perderam e não perderam. Influenciaram toda a redação da Constituição e garantiram para si uma Lei de anistia extremamente bondosa e protetora de seus interesses. Não foram julgados, não tiveram sua vasta corrupção investigada. Saíram vitoriosos e ainda poderosos. Vide os moldes atuais da previdência militar.

Chegamos à redemocratização em 1988 e nos dias de hoje. E como já foi dito muitas vezes, nos últimos dias, porque um deputado pôde homenagear um torturador (ele não homenageou um presidente do regime, mas o torturador dos porões; é bom que se entenda a diferença) durante seu voto no impeachment de Dilma e não sair de lá algemado, aqui estamos: discutindo se a democracia brasileira aguenta muito mais tempo sob esse tipo de ataque. Imagine se o parlamento alemão aceitasse que alguém homenageasse Hitler nos dias de hoje. Seria escandaloso.

O Brasil

“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.”

ou

“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.”…

Talvez, haja obras mais atuais a sumarizar os tempos vividos. Mas eu já estou velho e essas são as músicas da minha geração. Citar Vandré seria pretensioso, já que ele veio bem antes. Buscar o presente seria engodo, já que eu não tenho escutado muito os novos artistas brasileiros.

A pesquisa Atlas-Intel, publicada no último dia 10, entrevistou a população e concluiu que 75.8% não concorda com os atos de vandalismo, enquanto 18.4% concordam. 18% é muita gente de acordo com a barbárie, mesmo que pareça pouco. Quando movemos o recorte para eleitores do Messias, vemos que 38.1% apoiam, enquanto 48.6% repudiam, o que é surpreendente e até positivo. Mas, quando mudamos para religião e olhamos para os que se declaram evangélicos, o problema dispara de novo: 31.2% concordam, contra 14.3% de católicos e 6.4% de outras religiões. Clique no link acima para conferir o tamanho do estrago na sociedade, após ao menos 4 anos de barbárie verbal e prática.

Seja como for, temos que olhar para o material humano disponível no Brasil. Não é possível atribuir tudo à figura do grande mito messiânico que essa horda decidiu seguir. É impossível lhe eximir da responsabilidade, igualmente. Palavras têm força, e na boca ou nos textos de pessoas pelas quais temos apreço, devagar ou rápido, passam a ecoar no nosso imaginário e formar – em parte ou no todo – a nossa opinião.

Não, um presidente que grita “vamu metralhar a petralhada” (sic) não está apenas fazendo um discurso. Não é mero simbolismo, figura de linguagem… Ele está, no médio ou longo prazo, autorizando a violência contra quem não concorda com ele(s). Ademais, praticamente tudo na vida humana é simbólico. O seu contrato de trabalho é simbólico, o casamento dos seus pais é simbólico, a escritura pública da sua casa própria é simbólica, e o contrato de aluguel também é.

A Lei. Especialmente a Lei. Essa é muito simbólica. É um símbolo de que nós todos, unidos pela língua, cultura, território e época, decidimos renunciar a boa parte da (senão a toda) capacidade física e coercitiva de obrigar o outro a fazer o que queremos, e depositamos esse poder em um terceiro ente, idealmente capaz de usar a força na hora certa e mediar a nossa coexistência de forma menos brutal, bestial, animalesca.

Quando um bolsonarista quebra os vidros do STF, ele não está ofendendo o ministro Alexandre de Moraes.

Quando um camisa-amarela fura o painel de Di Cavalcanti, ele não está machucando o Presidente Lula, muito menos a Di Cavalcanti que já está morto há 46 anos. Tampouco machucam os ex-Presidentes cujos quadros foram estilhaçados e jogados ao chão.

Quando um milico da reserva ou policial de folga, raivoso, irrompe contra o mobiliário do Congresso Nacional, em parte trazido da antiga capital nacional (o Rio), quebrando mesas e móveis centenários, ele não está fazendo Pacheco ou Lira chorarem.

Não é aos Presidentes dos Três Poderes que o Governador do DF, agora afastado, Ibaneis Rocha, deve desculpas. As desculpas são devidas aos 215.5 milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram seu patrimônio depredado por capricho e loucura, de forma bestial e animalesca.

Ou defecar sobre a fotocopiadora virou sinal de patriotismo? Que as palavras andavam sem sentido, vá lá, mas isso já é demais.

Quando um bolsonarista joga o escudo da República para tomar chuva, não é o ministro do STF que ele está agredindo. É a mim. É a você. O ministro agora é um. Amanhã será outro. Aquele espaço onde o STF existe (e onde existem os demais Poderes), é sagrado no sentido de abrigar o nosso pacto, a nossa esperança de que possamos coexistir enquanto sociedade, no mesmo espaço e no mesmo tempo, dividindo alguns (jamais todos) valores comuns e tornando nosso país em um lugar melhor de se viver do que já foi ontem.

O ato foi, até aqui, em vão. Serviu, isto sim, para acelerar o desmonte dos acampamentos golpistas e reaglutinar instituições da República que andavam, há muito, separadas. Mas parar nesse entendimento é uma visão demasiadamente otimista, até pueril, eu diria. O bolsonarismo finalmente mostrou a que veio. Se não podem vencer nas ideias e no voto, vencerão de outro modo. Vale-tudo. Barbárie. Terrorismo. Esse é o bolsonarismo.

Espero que o espelho não lhe mostre de camisa da CBF. Se mostrar, fica o recado de quem espera que você saia dessa: você está doente e imerso num mundo igualmente doente. Não dá para respeitar a Constituição, o nosso acordo de coexistência, ou acreditar no futuro da nação e ser bolsonarista. Simplesmente não dá. É uma questão de lógica. E de civilização.

Sobre a Polícia – Parte 2

A Polícia Militar (não só do RJ) tem que acabar…

Créditos da imagem: Zazen Produções

É sempre complicado quando nossos heróis nos trazem desesperança.

Capitão Nascimento é um personagem baseado no livro “A Elite da Tropa”, sendo o primeiro volume bem melhor que o segundo (vai por mim). Trata-se de ficção (em certa medida), portanto. Mas é um símbolo heroico nacional do homem honesto e incorruptível, lutando contra um Estado e sociedade igualmente falidos. Em Nova Iorque, eles têm o amigão da vizinhança, o Homem-Aranha. Os brasileiros têm o Capitão Nascimento. Fala um pouco sobre o nosso fascínio com a violência urbana, em sua forma in natura.

Porém, no filme “Tropa de Elite 2”, Nascimento narra como a Polícia Militar do Rio não mais representa o desejo de um Estado Democrático de Direito (aquele erigido por todos nós que somos parte da sociedade e que, em última análise, autorizamos a presente Constituição Federal a alçar o status que ela detém), mas, sim o desejo das milícias (organizações criminosas, formadas por policiais, militares e ex-*) no caso do Rio de Janeiro.

No caso nacional, mesmo onde as milícias ainda não são uma realidade alarmante, a Polícia não está mais a serviço tão somente da Lei. Ela serve a projetos políticos (de futuros delegados e tenentes/capitães/(…), eleitos deputados e senadores) e projetos de poder local de indivíduos que, uma vez investidos na função policial, esquecem-se que estão lá para servir a Lei e não se confundirem com ela.

No que depende da Ciência Jurídica (portanto, estou falando de como deveria ser), nem mesmo o juiz, que é definido como cidadão investido na jurisdição (ele pode dizer o que é direito e o que não é), se confunde com a Lei. Tanto é assim que o Código de Processo Penal diz, tanto no art. 155 (“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos(…)”) quanto no art. 381, caput + inc. III: “A sentença conterá:” + “a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão”. Portanto, não pode o juiz da ação penal prolatar (emitir) sentença pautada puramente em seu livre convencimento (o que pode ocorrer, em certa medida, no Direito Civil) sobre a culpa ou inocência do réu, mas tão somente fundamentar-se em fatos (provas, depoimentos, perícias…) e direito (Lei).

Contudo, a cada dia que passa, tudo isso está erodindo na sociedade brasileira. E o resultado será o que sempre acontece quando gente que não conhece limites se impõe, por força, contra gente que tenta se manter dentro da legalidade.

Mas, vamos devagar. Muito a expor, nem tanto espaço assim para fazê-lo livremente (se eu não me segurar, você não volta aqui nunca mais)…

Uma Polícia que mata, mas também morre demais…

Como prometi, na Parte 1: A ideia de que a Polícia mata demais é um tanto quanto surreal diante dos números oficiais.

Algumas pessoas dizem que “preferem encontrar com o bandido a encontrar um Policial”, o que me parece um grande exagero, embora eu entenda, com alguma calibração, o sentimento de medo sobre a conduta de quem pensa ser a própria Lei encarnada.

Falando de SP, em 2020, tivemos a morte de 49 policiais, sendo 39 militares e 11 (policiais) civis. No mesmo ano, as duas polícias mataram 814 pessoas. 780 foram mortos por militares, e 44 por (policiais) civis. Ocorre que 134 dessas mortes ocorreram fora do serviço, quando esses policiais estavam descansando ou no “bico” (e preciso lembrar: O bico existe, principalmente, porque o salário é uma vergonha. Ponto).

Mas, para não causar controvérsia, fiquemos com os números totais, sem separar “serviço” e “fora de serviço”. Comparar o número absoluto é um erro, mesmo que seja tentador. Já discutimos isso. Temos que comparar a população de cada grupo (policiais e não-policiais) para ter a dimensão correta do risco.

O contingente da PMESP é de 100 mil homens… Como expliquei, antes, o total de pessoas na rua não é de 100 mil, devendo ficar na casa dos 80 mil, fora os afastados (em 2020, quase 3 mil policiais foram afastados por suspeita de COVID-19; 43 morreram).

Mas vamos usar os números oficiais. 100 mil PMs. A Polícia Civil tem na casa dos 28 mil policiais. E a mesma história sobre pessoal na rua e interno se repete.

Então, temos (para facilitar) 130 mil policiais em SP (civis e militares). Em 2020, eles mataram, juntos, 814 populares do Estado de SP. E 49 policiais (das 2 forças) foram assassinados.

Agora, aplicando a taxa por 100 mil habitantes, temos que: dado/população x 100.000.

Logo, 44/130.000 x 100.000 = ~33.85 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil policiais, ~34 serão assassinados.

E para a população = 814/43.9 milhões (descontados os contingentes policiais) x100.000 = ~1.85 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil habitantes (fingindo que os policiais não são de SP), quase 2 morrerão em confrontos contra a Polícia Paulista (militar ou civil, tendendo bem mais à primeira).

Para fechar, tivemos 2.893 homicídios dolosos no estado de SP, em 2020. Vamos considerar que não estão inclusas, na estatística, as mortes por policiais (a fonte não deixa claro, mas trata as mortes causadas pela força pública em separado, logo, minha conclusão), e vamos somar a população policial do estado, para manter a conta justa.

Logo, 2.893/44 milhões x 100.000 =  ~6.57 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil paulistas, quase 7 serão assassinados por outras pessoas que não fazem parte das forças policiais.

Portanto, se você for um policial (e nem vou separar em militares e civis; os primeiros levam a pior de lavada), sua mortalidade está em ~34 para cada 100 mil policiais. Se você for um “paisano”, sua mortalidade causada por policiais é de ~2 em cada 100 mil conterrâneos, e de ~7 em cada cem mil, se o assassino for um civil (“paisano”) como você.

Não há dúvidas de que a percepção de que a Polícia (ao menos, a paulista) mata demais, vem sem a mensagem – necessária – que ela morre ainda mais.

A sensação de insegurança ao lidar com um policial é justificada porque, mesmo sem a morte como resultado, os casos de abuso de autoridade são muito frequentes, como demonstro via manchetes, mais a frente.

Porém, argumentos como “prefiro encontrar um bandido a um policial” não passam de exagero, sem ancoragem à realidade; aqui demonstrada de forma rápida (e sem extremo rigor, reafirmo).

Referência / referência / referência / referência

2022 não tem cara de que vai terminar bem…

Eu sei… Eu sei… Você odeia essa parte em que eu te lembro que sou um pessimista por opção, com forte predileção pela fundamentação cética na interpretação dos sistemas (que sofrem, todos eles, do efeito da entropia)…

Fica ainda mais difícil calibrar esse padrão de análise na cena política, já que eu realmente tenho muita dificuldade de acreditar no “Bem” como produto espontaneamente gerado pelas interações entre Homem e Poder… Toda vez que algo realmente bom ocorreu, veio depois de muita… Muita – deixe-me pensar numa palavra técnica para descrever isso… – Merda…

A recente decisão do Exército Brasileiro de absolver General Pazzuelo não decorrerá sem efeitos sobre as tropas (referência). Eu disse, na Parte 1, que, sendo militar, é melhor matar alguém do que quebrar hierarquia. Igualmente, vale dizer que é melhor matar alguém do que permitir insubordinação ao regulamento militar.

E este regulamento é claro no que tange à participação de militares da ativa em eventos políticos:

Decreto 4.346/2002: Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências.

Anexo I – Arts. 56 e 59: “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. + “Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”

Em resumo, a Lei, pública e de conhecimento irrefutável por parte do General Pazzuelo, foi jogada no lixo sem maiores consequências. Não é que isto (jogar a Lei no lixo) não aconteça diariamente no Brasil. Mas, antes, os militares tomavam cuidado com a participação política por se lembrarem que o mundo não tolera mais governos autoritários (exceto se você tiver algo MUITO importante para eles), sem impor aos ditadores do mundo subdesenvolvido, intervenções, vetos, sanções e todo tipo de represália da comunidade internacional.

Tal decisão (de não se envolver em política) não decorre de qualquer raciocínio ou autoanálise que tenha levado a tropa a considerar o desastre dos Anos de Chumbo, nem qualquer entendimento mais evoluído do valor e importância central de uma Democracia para os países que têm melhor qualidade de vida. Tanto é óbvio que os militares não se envergonham do passado ditatorial, que até hoje insistem em “comemorar” (referência) o 31 de março (que deveria ser 1º de abril).

Cientes de que uma reedição de 1964 faria com que o Brasil se tornasse pária internacional, os militares concordaram com a redação presente do R-4. E esqueçam a falácia de que se não concordassem, bastava Congresso Nacional e a Presidência imporem. Ninguém impõe nada aos militares brasileiros. Nada. O alto escalão decide o quanto ganham, qual a forma de aposentadoria, que lei os atinge, qual o poder de uma Comissão da Verdade… Sem o aval deles, esse R-4 jamais teria a forma que tem hoje.

Mas, agora, o R-4 já era (ou, ao menos, a parte que cobra certas abstenções por parte deles; abstenções mais que justas, se me perguntarem, já que são uma instituição de Estado e não de Governo). Se o General pode, em evento público e filmado por todas as câmeras de TV, subir num palanque, cercado de bandeiras pedindo fechamento do STF, Congresso, Intervenção, começar a falar da honra que tem em apoiar Bolsonaro; por que não poderia fazer o mesmo cada militar da tropa, usando dos mesmos argumentos do General?

A semente do Mal está plantada, como jamais esteve. Com toda a força que se poderia esperar. O autogolpe em 2022 é, para mim, uma realidade concreta. Se ele não ocorrer, não será porque ele nunca esteve em curso. Será tão somente por alguma intercorrência não previsível aos arquitetos do golpe (não se dá golpe sozinho. Lembre-se disso). Todo o discurso contra a segurança das urnas brasileiras, todo o assédio de Bolsonaro sobre tropas federais e estaduais (polícias) não é de graça. Ele se movimenta para recrutar homens com treinamento e acesso às maiores armas que o país dispõe. Ninguém mais nega isso (referência).

Para piorar, tudo indica que os próximos anos serão turbulentos em potências que estabilizam a região, como os EUA, à beira de uma nova guerra civil (referência / referência [em inglês]). Não é meu tema, hoje. Mas História não é a soma de eventos estanques como, lamentavelmente, se deduz do que vemos em sala de aula… A estabilidade de um “farol” na região, irradia para outros locais. A instabilidade, também. E certos movimentos têm uma relevância e importância que a simples leitura de datas históricas camufla, como se não houvesse ligação entre fatos A e B, no tempo e no espaço. Equívoco comum, mas perigoso.

Se ninguém mais nega, por que nada se faz contra isso?

Bem…

Bem…

Essa é uma questão… Que não consigo responder. Não entendo o cálculo. Não entendo mesmo.

Que o Congresso é uma zona quanto à organização e alinhamento de pautas e bandeiras, nós todos sabemos, e a fragmentação partidária é um grave problema do nosso sistema que permite a eleição de um Centrão, orgulhoso de seu “fisiologismo” (em outras palavras: apoia quem der mais poder para eles), jargão que, outrora, era motivo de vergonha.

Mas, mesmo diante desse Congresso fragmentado, Bolsonaro não pretende dividir o poder com seus atuais correligionários. “Como você sabe disso, Rodrigo?”. Olha… É só perguntar onde estão os ministros que ousaram dizer “chefe, talvez você não esteja entendendo bem isso daqui…”. E se você entende que “dividir o poder” significa que os outros façam tudo que você manda, sem questionar… Você e seu presidente (com minúscula, mesmo) têm problemas…

Portanto, não vai sobrar poder para ninguém. Só para os donos do golpe e os homens com o acesso às armas que manterão o golpe em vigor. É assim em todo lugar onde um golpe ocorre. Não será diferente em 2022, por aqui.

Essa é mais uma das vezes em que imploro estar errado. Não ganho nada, estando certo. Mas, é uma repetição da História, a meu ver. E os homens que não conhecem a própria História a repetem. O brasileiro médio é um péssimo aluno, então, eu temo muito. E tenho bastante a perder.

E como isso tem a ver com as polícias militares e a necessidade de acabar com o modelo vigente?

Desde que escrevi a Parte 1 desse artigo, muita coisa ruim, envolvendo forças policiais do Brasil (aqui, meu foco foi no Sudeste), aconteceu. Muita coisa ruim, mesmo:

Julho/2020:

Major diz que PM comete abusos há 188 anos e orienta escapar de filmagens em retreinamento (uol.com.br)

Vídeo mostra PMs sufocando entregador em Pinheiros: ‘não consigo respirar’ | São Paulo | G1 (globo.com)

‘Achei que iria morrer sufocada como George Floyd’, diz mulher negra que teve pescoço pisado por PM em SP | São Paulo | G1 (globo.com)

Após episódios de violência policial, bancada da bala de SP quer acabar com ouvidoria da polícia (globo.com)

Agosto/2020:

Homens que agrediram jovem negro em shopping no Rio são policiais militares | Jornal Nacional | G1 (globo.com)

Três policiais militares morrem em abordagem a falso policial civil em São Paulo | São Paulo | G1 (globo.com)

PM que pisou no pescoço de mulher negra em SP é indiciado por abuso de autoridade e caso vai para Justiça Militar | São Paulo | G1 (globo.com)

Novembro/2020:

Jovens são ameaçados e agredidos por policiais após pedirem ajuda para escapar de perseguidores – RecordTV – R7 Cidade Alerta

Abril/2021:

Policial sai de delegacia e dá tiros de fuzil durante manifestação de mulheres em Paraty; veja vídeo | Sul do Rio e Costa Verde | G1 (globo.com)

Policial assediada e ameaçada de estupro e morte por tenente pede medida protetiva no litoral de SP | Santos e Região | G1 (globo.com)

Maio/2021:

Operação policial com 25 mortos é a mais letal da história do Rio de Janeiro | Notícias e análises sobre os fatos mais relevantes do Brasil | DW | 06.05.2021

Eu omiti todas as ocorrências que envolviam apenas um policial, ou policial fazendo “bico”, para retratar um comportamento reiterado na relação entre a força policial e a sociedade.

O único caso particular que mereceu destaque foi o da Soldado Jéssica, que trabalhava no litoral paulista e recebeu as ofensas mais grotescas dos últimos tempos de seu superior, Tenente-Coronel Cássio Novaes. As conversas ocorreram via WhatsApp e há prints de vulgaridades que revelam uma podridão de caráter que não desejo reprisar por aqui. Embora o caso seja extremo, como já falei, na Parte 1, a presença de mulheres na PMESP é quase inexistente. E isso hipertrofia um machismo arraigado na sociedade, criando os “super-monstros” dentro da corporação, como este homem demonstrou ser.

Superado o horror da ação no Jacarézinho (RJ), haja vista que há pouco a adicionar no que já foi dito; de longe, o caso que mais me chama a atenção e reforça a ideia de que há algo de estruturalmente errado, ocorreu em julho de 2020: Um major da PMESP relata, em curso de reciclagem da atividade policial, que “a PM já comete abusos há 188 anos” (desde sua [re]fundação, portanto). O que os policiais têm que aprender a fazer é não serem flagrados…

Este caso é emblemático – embora muito menos violento do que a brutal incursão no Jacarézinho, ou do que o assédio moral e sexual de um superior hierárquico contra a policial – porque revela a mentalidade de um Oficial de patente elevada, com treinamento e – esperava-se – razoável discernimento de “certo” e “errado”, treinando os policiais que nos atendem. Todavia, o que ele quer passar à tropa é a ideia de que “se te pegarem abusando do poder de polícia, o problema é que você não é esperto”…

Eu já disse que não penso que “ser militar” torna a polícia mais violenta, per se. Tanto é verdade que a violência policial não é monopólio da ala militar que o caso mais brutal, no Rio, foi conduzido pela Polícia Civil. O problema é que se o militarismo não é a raiz da violência, ele ajuda a criar mecanismos e dinâmicas onde essa ideia de atuação violenta faz sentido e é até desejada por uma cadeia de comando muito “pesada”, que não pode ser contrariada sem enormes consequências, e pouquíssimo aberta ao contraditório, ao exercício da racionalidade, e à discordância quanto a atuação.

O que significa ser militar?

Pessoas que se identificam como “de esquerda” costumam ter uma irracionalidade ao lidar com a palavra “militar”. Esta é similar à irracionalidade de pessoas “de direita” com o termo “descriminalização de entorpecentes”. Por isso, muita gente rosna contra termos, sem entender que eles têm seu lugar (eu deveria acrescentar “lugar de fala”, mas de boas de arranjar mais polêmica barata)…

A organização militar é uma necessidade do mundo real. Pensar numa nação sem forças militares é viver em um mundo cor-de-rosa em que todos respeitam todos, gratuitamente, bem como suas respectivas culturas e História. Só “porque sim”.

Para quem entende que isso não pode ser atingido com a atual evolução da espécie humana, a militarização de uma organização de defesa nacional é uma necessidade. E por quê? Tentarei explicar.

Para que serve a organização de uma instituição pública (entenda em sentido amplo) como, digamos, o SUS? A organização visa otimizar as estruturas para atender à missão institucional daquela “pasta”. Assim, o SUS terá um modelo organizacional que o permita lidar com Estados, Municípios, suas respectivas secretárias de saúde, e todos os órgãos que permeiam o conceito “saúde pública”, incluindo SAMUs, UBSs, ou mesmo a rede privada que requer do SUS, por exemplo, suporte nas filas de transplante de órgãos, ou vende seus serviços ao Estado. Ele se organizará para atender às interfaces que tem com cada um desses entes. Se a organização é vertical, horizontal, mista, isso não é meu foco.

Agora, qual é a principal missão de uma força armada de um país? As respostas podem ser variadas, mas eu vou te dar uma definição que acho boa o bastante para explicar a necessidade do militarismo. A função de uma força armada é proteger os interesses nacionais, sua soberania e território de ameaças externas, através do pronto-emprego de pessoal e material bélico.

Pronto-emprego” é a palavra-chave para se entender a função do militarismo como organização da instituição de defesa nacional. “Pronto-emprego” é a noção de que um grande contingente (dezenas de milhares, até… o EB tem aproximadamente 230 mil combatentes na ativa; o resto está em funções administrativas) de pessoas e de materiais precisam ser rapidamente deslocados para onde e quando for preciso, no intuito de proteger a nação de qualquer ameaça, da maneira mais rápida possível.

Para que este pronto-emprego possa ocorrer, a humanidade não criou nada melhor do que a cadeia de comando militar. Militares não recebem uma ordem superior e se juntam para discutir se: a) essa ordem é mesmo a melhor; b) se ela não pode ser feita mais tarde, ou em momento mais oportuno; c) que tipo de treinamento é preciso fazer antes da ordem ser executada (etc., etc., etc.)…

Perceba: O(a) militar passa a vida treinando para um dia que pode e pode não chegar. Esse treinamento, essa dura disciplina, são desenhados para que, na eventualidade de seu acionamento, ele(a) não titubeie diante das ações e medidas que deve tomar para reestabelecer o controle da situação, onde, quando e como tiver de ser feito.

Portanto, me parece muito razoável (e eu sequer consigo pensar em outro modelo tão eficiente para o fim de “pronto-emprego”) que a organização militar seja o tipo de organização que define as instituições de defesa de uma nação.

MAS… Segurança Pública NÃO é Defesa…

E aqui é onde a porca torce o rabo…

A missão do militar é repelir a ameaça à nação. A qualquer custo. A qualquer preço. “Eliminar/Neutralizar” são verbos comuns para confirmar que a fonte da ameaça não mais existe, dentro do teatro de operações militar. Essa ameaça é, em 99% das vezes, outro ser humano, de outra nacionalidade(idealmente) que aquela da força militar.

Mas aquele que nos amedronta no dia a dia; o ladrão, o assassino, não estão ameaçando a Segurança Nacional. Não são ameaças à nação (por mais que você queira dizer que “sim”, não. Lamento.). Eles são um problema – majoritariamente, mas não só – social, “um refugo” que a sociedade permitiu que o Estado ignorasse e que, agora, nos causa medo e pânico.

Veja: Se a Constituição de 1988 tivesse seus artigos 5º e 6º integralmente cumpridos, em primeiro lugar, o Brasil seria um dos dez melhores países do mundo; falo isso sem sombra de dúvidas. Em segundo lugar, a criminalidade seria algo extremamente incomum, mais voltada ao tipo de crime que vemos nos países de alto desenvolvimento humano, de natureza mais explicável pela psiquiatria, ou de menor potencial ofensivo (o furto simples ou a depredação, causados por jovens desajustados e revoltados).

Mas, nós, sociedade civil brasileira organizada, permitimos que o Estado brasileiro prometesse “as tampas” e não cumprisse quase nada. E não nos importamos com isso porque, francamente, nós não nascemos na favela, certo? Então, e daí que lá não tem esgoto encanado, não é mesmo? Essas pessoas que voltem para suas terras, bem longe dos nossos olhos e jornais – depois de construírem todas as nossas casas, nossas ruas e parques, nossos meios de transporte, e se for possível, deixem as mulheres (só elas) porque precisamos de babás, faxineiras, e zaz… – para morrerem no fim de mundo de onde vieram, já que o Estado não levou água, posto de saúde, escola,(…) até lá e, já dissemos… Não é problema nosso…

Então, qual é o meio ideal para controlar a raiva, o desprezo pela sociedade que os cerca e ao mesmo tempo exclui, e sufocar o ódio nessa gente – boa o bastante para nos servir na padaria, no caixa do mercado, ou lavar nossos banheiros, mas que “quer demais do Estado, enquanto senta e não faz nada” – que nossa sociedade apoiou o Estado a esquecer e reprimir? O cumprimento de condições básicas de saúde, habitação e educação? Claro que não! achando que meu dinheiro dá em árvore? Que sou comunista? Estou falando da repressão policial que, de quebra, é bem mais barata (pelo menos, na superfície) …

E aí, vem o artigo 144 da CF/88… Ele organiza a Segurança Pública (que, de novo: Não se confunde com Defesa Nacional).

E tá lá no §6º, essa bobagem aqui: “As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército(…)” … Pronto… Lascou-se tudo.

Em quase todo país é natural que polícias e outras forças de resposta à Segurança Pública, Lei e Ordem, apoiem suas respectivas forças armadas em momentos de confronto contra agressores externos. Isso não é novidade. Acontece que o Brasil “decidiu” (não foi o Brasil… Foram os militares da ditadura, através do seu lobby, que era o 2º maior durante a Constituinte, perdendo somente para os ruralistas [referência]) que policiais e bombeiros militares são força reserva do Exército. E como isso ferra com tudo? Bem, para começar, as Polícias Militares (onde os bombeiros também se enquadram) copiam, de cabo a rabo, a organização militar, a filosofia de “pronto-emprego”, os códigos de conduta militar – como na PMESP, o RDPM o faz – e toda a lógica de “questionar quase nada, cumprir quase tudo, eliminar ameaças”. Eu nem vou falar da IGPM (Inspetoria Geral das PM) que permite ao Exército passar por cima do Governador daquele estado em várias decisões… Se quiser se arrepiar (especialmente, com relação à minha previsão para 2022), vá ler o decreto-lei 667 e ver o poder que o EB ainda detém sobre todas as PMs do Brasil. “Não usar” não quer dizer “não poder”. A LSN deveria ter lembrado a todos disso.

Depois, vem o fato de que através do militarismo e da justiça militar, o policial militar ganha mais e mais a noção de que ele não mais é um cidadão brasileiro. Ele é um militar brasileiro. Outra categoria de povo. Outra categoria de cidadão, inclusive. Às duras penas, a sociedade conseguiu que policiais militares que pratiquem crime doloso contra a vida sejam julgados, como qualquer outro, em sede de Tribunal do Júri. No entanto, se um policial mete a mão na sua cara e te arrebenta os dentes, ele não será julgado pela Justiça Penal Brasileira. Ele será julgado pela Justiça Militar, dentro do rito militar, e dos códigos militares. Você poderia pensar que é “mais rígido/sério” que a lei comum. Espero que Pazzuelo tenha removido essa farsa da sua cabeça. Aliás, na Justiça Militar, o “padrão” é o sigilo e não a publicidade, como é no Direito que você e eu estamos submetidos… Portanto, você e eu nem ficamos sabendo de todas as palhaçadas que ocorrem por lá. Daí a impressão que lá é mais sério, talvez?!

Por fim, policiais militares não têm o direito de se indignar com sua própria condição sub-humana. Nas UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), vários foram os casos de polícias trabalhando em contêineres de metal, sem ar-condicionado, sem encanamento para água e esgoto (porque, afinal, estão dentro da favela), e por turnos MUITO SUPERIORES às 12h habituais (referência). E, se reclamarem, não posso dizer que vão terminar melhor do que começaram. Porque ordem não se discute; se cumpre. Mesmo que seja trabalhar como um escravo, em condições desumanas, indefinidamente. E é só um exemplo.

Eu disse, um pouco antes, que não penso ser o militarismo o que faz da Polícia Militar uma polícia mais violenta. E eu citei, como demonstração disso, que a ação policial mais violenta da história do Rio de Janeiro ocorreu pelas mãos de policiais civis. Então, qual é o ponto em desmilitarizar?

São “pontos”, no plural… Talvez, o principal é que as Polícias Militares são cobradas pelos Governadores e pelos respectivos Secretários de Segurança Pública, a darem resultados. E por “resultados”, o que esses Governadores realmente querem dizer é “não vai me deixar favelado incomodar gente importante, que isso dá merda na eleição!”… E Policiais Militares não atentam contra a hierarquia, lembrando o Governador que sem água encanada e condução digna é difícil pedir pro “paisano” se lembrar do que ele ganha sendo um cidadão exemplar; porque isso contraria toda a lógica militar.

Agora, perceba a incoerência: A Polícia Militar, por designação constitucional, não investiga (isso é papel da Polícia Civil ou Federal, que são as Polícias Judiciárias na Constituição). Se não investiga, não pode pedir ao poder judiciário pela emissão de mandado de busca, só por exemplo. Se não pode emitir mandado de busca, não pode solucionar crimes complexos que se dilatam no tempo, que têm suas bases de atuação em bairros ricos e de classe média ou inter-estados, e não pode, desse modo, fazer um trabalho excepcional de inteligência policial.

Tudo que a Polícia Militar pode fazer é esperar. Esperar pelo que? Pelo flagrante, é claro. Exceto… Exceto, se for na favela. Porque aí, se o policial suspeitar que naquela casa está o dono do morro, é só chutar a porta e pegar o meliante… E se não for a casa do meliante? Aí é só pedir desculpas ir embora, e fo#$%-S3…

Perceba que no sistema penitenciário brasileiro, o terceiro maior do mundo com mais de 770 mil presos (grande parte deles esperando o primeiro julgamento), o número de detidos por tráfico de drogas e afins é assombroso, quase 40%. Já, para crimes contra a pessoa (incluso aqui o homicídio, mas não só), o número é baixíssimo: ~11% (referência). Porque achar um homicida requer investigação de qualidade e inteligência para juntar as provas e apontar o indiciado. Já, pegar um traficante requer apenas uma “batida policial” de surpresa no “pé do morro”. E a PM também tem que ser produtiva, lembra?

Então, a grande pergunta é: O que me apavora mais como cidadão brasileiro, pagador de impostos, e privilegiado com esgoto encanado? Um moleque fumando um baseado, ou alguém matando pessoas? Nossa Segurança Pública vem respondendo, inclusive com números, o que parece preocupar mais o brasileiro…

E esse traficante preso é o “gerentão do morro”? Claro que não… É o “vapor”… O moleque… Ou o jovem adulto… Se for moleque, vai para a fundação Casa (se chegar a tanto, mas esse não é meu tema, hoje). Se for jovem adulto, vai para o sistema penitenciário. E uma vez no sistema penitenciário, ele precisa se “alistar” em uma das facções que mandam no sistema prisional (facções que existem com conhecimento e velada anuência do Estado, é claro). Ao se “alistar”, ele ganha proteção, mas também sai como uma dívida de lealdade. A proteção não é de graça. Esse virou soldado da facção e vai ter que pagar pela sobrevivência enquanto estava preso. De simples “varejista do tráfico” ele passará a segurança particular, ou até mesmo intimidador da sociedade, ou assassino de policiais. O que o seu novo senhor quiser. E de “vapor” que não me incomodava, ele passa a assaltar os lugares que eu frequento. Como sociedade, somos uma das mais burras. Contratamos os nossos problemas futuros.

E aqui vem a questão mais dura do assunto “Segurança Pública”: Quem fez tudo isso ser possível? O morador do morro, o policial, o governante?

Não. Nós. Nós todos. Você, lendo essa porcaria de blog. Eu, escrevendo essa droga de texto. Nós dois, perdendo tempo com isso, ao invés de cobrarmos que o Estado acabe com as favelas (não por meio de bombardeios [eu sei que tem quem ache tentador; recomendo terapia], porque a favela não é uma questão de Defesa/Segurança Nacional, mas sim, uma questão de Cidadania [que pressupõe que somos iguais perante a Lei], em primeiro lugar, e por último, e de forma mais utilitarista, de Segurança Pública).

Quando nós permitimos que a padaria venda Cigarro e Caninha, mas proibimos que alguém comercialize legalmente Cocaína e Maconha, estamos garantindo o moto-perpétuo do jogo de gato e rato entre policiais e traficantes. E não cabe mais nesse texto (que está enorme), mas eu ainda vou apresentar o tanto de falácias na discussão sobre legalização das drogas; de mentiras sobre “o gasto do contribuinte com saúde de viciados” (advinha: ele já existe), ao assombroso volume de dinheiro perdido em arrecadação por meio de tributos sobre tal comércio – que só no Brasil, movimentou R$17 BILHÕES de reais em 2018 (referência) – link corrigido. Para dar uma noção da catástrofe, Rio e SP gastam R$5,2 bilhões por ano, no combate às drogas (referência). Sabemos do resultado dessa guerra ao tráfico.

Então, a Polícia Militar existe para fazer com que nós, sociedade civil “limpinha” fiquemos a salvo daquilo que nós, sociedade civil hipócrita, permitimos que o Estado (que existe porque nós assim autorizamos) trate essa gente como coisa pior que bicho. Até que a Polícia faz m#$%^ daquelas que não dá pra disfarçar o cheiro… E aí, temos que responsabilizar alguém (contanto que não sejamos nós a assumir a culpa, solidariamente). E aí, culpamos as autoridades.

E as autoridades culpam os Comandantes. E os Comandantes, os Coronéis… Até… Chegar no soldado. Soldado que foi orientado pelo major a “bater, mas sem ser filmado”… E que fica puto com todos nós… Porque ele pode até ter feito supletivo, mas não é burro ao ponto de não notar a imensa hipocrisia entre o que queremos e o que pedimos. “Que todo criminoso seja reintegrado à sociedade!… Contanto que bem longe de mim”… É um dilema com seus méritos… Não estou dizendo que não é. Mas é hipócrita, ainda assim. “Dê um jeito nessa gente inconveniente, sem que me custe mais caro, e sem que pegue mal na mídia, e lá fora (pra eu poder viajar sem ser chamado(a) de conterrâneo(a) de genocida)”. Fácil!

Como deveria ser?

Propostas são inúmeras. Umas mais realistas, outras menos. Não se pode portar um modelo europeu que só conhecemos através de manchetes, e achar que ele vai funcionar aqui. Não vai. Não adianta desarmar a PM, enquanto traficantes têm acesso a armas cada vez mais impressionantes (incluindo mísseis, já falei). Ao mesmo tempo, não adianta seguir atirando com fuzil neles, porque seguiremos abrindo vagas no RH do crime e mantando inocentes aqui e acolá. O ódio crescente agradece. E não, “não vale tudo”, porque isso não é Defesa (mesmo lá, o vale-tudo tem regras). É Segurança Pública.

Então, qual o caminho? Se eu disser que sei, serei como todos os especialistas da TV que eu critiquei. Não sei se há um modelo único. Não sei, por exemplo, se Polícia Comunitária funciona para uma metrópole como SP. Não sei se cidades do interior, com menos orçamento, podem lidar com inteligência policial de alto custo, como câmeras, drones, IA… Não sei.

O que sei é que temos de parar de cobrar os Policiais Militares por resultados. E eles têm que deixar de ser militares. Temos que mudar o foco da Segurança Pública de combate às drogas para combate aos crimes contra a vida (porque, para mim, perder o celular, mesmo que doloroso pra quem suou pra comprar, é sempre menos do que perder a vida). As ações de Segurança Pública têm que ter mais inteligência, e menos pressa. O policial não pode se afobar…. O suspeitou entrou no morro? Tudo bem… A gente espera… Temos todo o tempo, recursos, tecnologia, e disposição pra prendê-lo hoje, amanhã, daqui 10 dias, um mês. Ele vai ter que sair. Se não sair, já está em prisão domiciliar. Contra os do morro ele não é louco de atentar. E nós não vamos perder um homem ou mulher (da força pública ou da sociedade excluída que mora na favela) numa guerra desnecessária, criada e incentivada por gente que lucra com o dinheiro sujo do tráfico e com a violência que decorre dele (e que gera pânico e todo um mercado que lucra sobre esse pânico [mais grades em casa, mais apólices de seguro, mais alarmes, mais armas, mais empresas de segurança particular, mais blindagem de veículos…]).

Não sei qual é a solução, e não sei se ela serve para todos. Sei que passa por ter uma força policial que mata menos (ela não é a que mais mata, mas, idealmente, deveria matar perto de zero). Sei que passa por ter uma força policial que não se confunde com a Lei que ela jurou proteger e fazer cumprir. Sei que passa por valorizar os policiais como seres humanos, com medos, desejos, necessidades. Tanto quanto os criminosos que os movimentos sociais – acertadamente – não cansam de defender como seres humanos, com direitos e expectativas. Sei que passa por encarcerar menos, julgar com mais velocidade e qualidade, cometer menos injustiças. Mas, também, mostrar ao policial que a diligência dele não é em vão, e que quando ele prende com evidências e provas, o verdadeiro marginal não sai da cadeia mais rápido do que ele, fazendo papelada.

Sei que passa por não ter mais uma organização militar na Segurança Pública. Porque a força pública não serve para, via pronto-emprego, eliminar a ameaça. Ela serve para pacificar o meio-ambiente onde os cidadãos convivem, e lembrar a todos que há uma Lei e que esta serve para todos e alcança a todos.

Não, Segurança Pública não é item de supermercado (como eu disse na parte 1), onde basta comprar mais para ter mais. Quem acha que a solução é simples, precisa revisitar a mensagem de Mencken:

Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.

E o meu sonho de ser Policial Militar?

Depois de tudo que eu escrevi, e reconhecendo que minha inteligência não é medíocre (no sentido literal da palavra)… Você acha que eu teria estômago para usar a farda por quanto tempo? Chuto que se não morresse logo, eu iria durar… 2 anos. Logo, ia ter que ver ou até fazer algo com que não concordasse. E aí acabou. É claro que como empregado da minha empresa, faço coisas que não acho as mais eficientes, objetivas, sensatas. Mas nunca me pediram para fazer nada moralmente errado. E isso me basta.

Eu amaria ser militar. Sério. Já pensou conseguir ser um piloto de caça? Ou estar na elite dos atiradores do Exército… Sempre treinando para proteger meu país, desenvolvendo uma precisão e um grau de reflexos extra-classe. Ter uma farda bonita, uma insígnia de “machão”, estilo BOPE, na boina… Já pensou? Eu pensei. Por muito tempo.

Mas, tudo isso… Todo esse treinamento… Essa ordem… Essa “incapacidade” (desejada pelo modelo organizacional) de pensar antes de fazer… Essa habilitação ao “pronto-emprego”… Tudo isso…

…Para atirar no vapor, filho do cara que levantou a parede do apartamento que eu moro, e neto da mulher que limpa o banheiro do restaurante que eu frequento(tava)?

Obrigado, mas… Não, obrigado.

Sobre a Polícia – Parte 1

Crédito da imagem: Revista IstoÉ, via Youtube

Para quem assiste muitos filmes de suspense, a paródia será conhecida:

Precisamos falar sobre a Polícia…

E este não é um assunto prazeroso para mim… Na verdade, dialoga diretamente com uma parte de mim que sempre quis ser militar, especialmente, na Polícia Paulista. Cheguei muito perto, mas deixei esse sonho para lá, depois de algumas idas e vindas.

Tenho boa quantidade de familiares na “Força Pública” (do bisavô ao irmão, passando por todos os outros “degraus”), e tenho um pai que foi militar durante o fim da ditadura iniciada com o golpe de 64 (e que prestou o serviço obrigatório à FAB e à Justiça Militar), além de outras influências como a década de 1990 inteira, todos os seus filmes e séries (para citar alguns: Máquina Mortífera, Duro de Matar, TopGun, Passageiro 57, e só todos os duzentos filmes de roteiros “cópia-e-cola” do Steven Seagal)… E ainda tinha CyberCops, Giban, Jiraya, Black Kamen Rider, e todas as N séries japonesas estilo “Super Sentai” das Redes Manchete e Record… Falar que esse período do audiovisual nas TVs brasileiras, cheio de enlatados importados, não alimentou o sonho em alguma medida seria infantilidade agora.

Assim, estar perto da farda era uma realidade minha. E desejar “combater o mal” (o que não foi um termo claro, durante boa parte da minha vida) foi constante da minha infância e juventude, como foi para boa parte que cresceu em lares comuns da zona leste paulistana, fazendo e vendo as mesmas coisas que eu. Eu não lembro de alguém que não brincava de “polícia e ladrão”, e todos os amigos odiavam ser da equipe de “ladrões” (então, todos revezavam para que ninguém fosse “o mau”, por muito tempo).

Assim, falar sobre a Polícia é um pouco como falar sobre Kevin (salvadas as devidas proporções, já que não dei à luz a PMESP): É lidar com o incomodo e até a dor de ter de reconhecer que há algo profundamente errado (no entorno e) com aquilo que eu sempre quis tão bem. Também não posso dizer que sou neutro ao tema, como demonstra o meu histórico familiar. Mas, farei meu melhor, aqui, para apresentar um material tão neutro quanto posso me forçar a ser ao fazê-lo.

Para que este não seja um texto cem por cento enfadonho, eu vou mesclar fatos e pesquisas com minha própria história, e contar o causo de como quase fui militar; mas, deixei passar. Talvez, ao invés de 100%, eu atinja 200% no índice “mas que lixo!” da opinião pública (que se digna a ler esse fim-de-mundo em forma de blog), mas, hey!… Eu, ao menos, tentei…

Antes de tudo, uma discussão sobre terminologia

“Negro”, “Preto” ou “Afro-brasileiro”?

Essa é uma discussão que, sozinha, merecia um artigo exclusivo.

O racismo (não o crime, pois, “racismo” é crime específico, tipificado no diploma 7.716/89 e consiste, grosso modo, no ato de impedir alguém de fazer algo [exemplos: Acessar um restaurante, obter um emprego…], por conta da cor de pele, etnia, religião(…)) é parte do constructo social e é, portanto, estrutural no Brasil.

Por ser estrutural, não poderia deixar de se fazer presente na língua, a forma mais típica para cometer a injúria qualificada (não “agravada”, nem “majorada” – são coisas distintas) por fatores raciais. Aqui, sim, o crime mais frequente na sociedade brasileira. Art. 140, §3º/CP.

Ao longo do artigo, eu decidi por usar a terminologia do IBGE, e chamar a cor e o povo de “preta” e “pretos”, respectivamente. E eu faço isso, contrariando até o que me foi ensinado dada a questão histórica no Brasil.

Nos EUA, “nigger” (que, literalmente, é o nosso “negro”, mas soa por lá como “pretinho”, com significado de inferiorização) é termo altamente ofensivo à comunidade de ascendência proeminente africana de lá. O termo comum é “black people” (literalmente, pessoas pretas). E após os vários confrontos das décadas de 60 em diante, os diversos movimentos sociais tentaram combater o senso de inferiorização, incentivando e promovendo a ideia de orgulho das raízes africanas (como não citar “Black ‘n’ Proud” de James Brown?), usando um termo que já existia antes mesmo da independência americana: “African-American”; embora ele só tenha “pegado” no começo dos anos 1990. Por aqui, temos algumas publicações, entidades e pessoas que dão preferência ao “Afro-brasileiro”, também buscando essa valorização da raiz desta parcela do povo.

Vou começar dizendo porque eu jamais vou adotar “afro-brasileiro” como termo “certo” para determinar os brasileiros de pele escura: Porque eles são brasileiros. Não afro-brasileiros. Assim como eu não sou luso-espano-ibero-sergipano-(coloque aqui o que quiser)-brasileiro. Assim como minha noiva não é nipo-brasileira. Ela nasceu aqui, então é brasileira. Como todo o resto de nós.

Os negros/pretos (ainda mantenho certa divergência aqui) que nasceram no Brasil são brasileiros. Não são afro-brasileiros. E por isso, eu nunca vou adotar o termo “afro-brasileiro”. Se o pai ou a mãe de um sujeito tiver nascido em algum país da África, podemos conversar sobre o uso, mas ainda assim, se ele adotou a cidadania brasileira, para mim ele é brasileiro, ponto.
Estas pessoas são meus conterrâneos, meus compatriotas, e não vou tratá-los (nem para o bem, nem para o mal) como “povo apartado”, só por terem uma raiz genética diferente da minha. Se nasceram aqui, são tão brasileiros como eu. E eu sou tão brasileiro quanto eles. Jus Solis para todos.

Aliás, essa construção tem sido pervertida nas últimas décadas, exatamente onde começou: Nos EUA. O que começou como valorização da “raça negra” americana vem sendo capturado por supremacistas brancos como uma forma de dizer que “há americanos e semi-americanos”. Então, nos EUA, a conversa de que Fulano é “african-american”, e que Sicrano é “asian-american”, e que Beltrana é “latin-american”, e até os índios ganharam o “native-americans”, tem ganhado a função de delimitar claramente “quem é quem no jogo”… Os “true americans” são chamados tão somente de… “Americans”. E isso não é bom para uma comunidade que quer superar o racismo, definitivamente. Aliás, muito dos que se auto-denominam “african-american”, mal sabem que não são…(link corrigido)

Assim, algo que começou como uma tentativa de recuperar o orgulho de uma raiz que sempre foi inferiorizada e estigmatizada no Ocidente de matriz europeia, hoje é usado para lembrar, veladamente (por ora), que há os “semi-americanos” e os “americanos por inteiro”. E eu não vou colaborar para que o mesmo aconteça com o Brasil, um país de sociedade já tão segregacionista, tão feita de guetos e grupos, tão egoísta. Abraçar essas terminologias vai no oposto do que eu sonho para este país: O dia em que vamos parar de brigar organizados em gangues comungando dos mesmos arquétipos; e passaremos a brigar por todos nós, juntos.

É por motivo extremamente parecido que não chamo “favela” de “comunidade“. Enquanto eu acho que os moradores da favela não têm que ter vergonha de sua situação, visto que a maior parte não teve seu direito constitucional à moradia respeitado pelo Estado, eu também penso que “comunidade” tenta normalizar uma situação que jamais poderia ser normal. Aquele modelo de habitação não é digno, e não deve ser normalizado, nem por quem mora lá, nem por quem está fora, sob o risco de todos se darem por satisfeitos com aquela vergonha nacional para o Estado e para a sociedade que permitem, de mãos dadas, que nossos compatriotas sigam morando naquelas condições.

Resta, então, o problema entre “preto” e “negro”. Os termos são, historicamente, o inverso do caso “black” e “nigger”, nos EUA. Historicamente, “preto” foi usado, no Brasil, como ofensa. A infame expressão “serviço de preto” não seria refraseada como “serviço de negro”. Assim, sinto que estou fazendo “algo errado” ao chamar alguém que tem a pele da cor preta de “preto”. Mas, também preciso me lembrar que, originalmente, “negro” era um termo pejorativo quando foi usado por aqui, no início da escravidão na nossa história .

O costume é fator determinante para uma língua viva como o Português e não posso ignorar que todos estamos acostumados com “negro” como a forma “correta” de nominar as pessoas com pele escura.

Esquecendo o aspecto histórico, o IBGE (e todas as demais instituições que fazem estudos demográficos) “acertadamente” (de um prisma linguístico e “frio”) fala em “pretos e pardos”. E “preto” é tecnicamente perfeito como nome (substantivo) da cor de pele; porque “negro” é um adjetivo e não o nome de uma cor. Eu sou branco (dentro do Brasil, claro) e Fulano é preto. Perfeito.
Porque se Fulano é “negro”, então eu preciso ser “alvo”… E isso seria bem bizarro.

Assim, fico dividido entre abraçar, desmistificar e corrigir um erro histórico, adotando o termo “preto” para pessoas com alta melanina e uma raiz genética mais ancorada em povos africanos do que a minha; ou, posso manter o “negro” que a própria comunidade brasileira abraçou em sua cultura (exemplos básicos: Raça Negra, Negritude Jr., e por aí vai), além de tantos poetas e pensadores que usaram o termo “negro” em poemas e contos enaltecendo o sofrido povo africano escravizado, ainda nas épocas de colônia do Brasil… O termo, sinceramente, não importa por si… O seu uso e entonação determinam a ofensa, a meu ver.

Por fim, vamos à história da “raça negra”: Não existe “raça negra”. Ponto. A raça é uma só: Raça humana. O DNA de pretos, brancos, asiáticos, latinos, europeus(…) é idêntico, exceção pelas partes em que se determinam cor dos olhos, tipo de cabelo, cor de pele, altura(…). Mas, somos á mesma espécie. A mesma raça. E nossos filhotinhos (quando frutos da miscigenação) 100% funcionais (biologicamente falando) são a maior prova empírica desse fato.

Eu vou tentar (mas, confesso me sentir um pouco desconfortável) adotar o termo “preto” ao longo do texto. O objetivo é naturalizar o uso, e combater o tom pejorativo. Veremos se vai dar certo.

A fundação

Há um problema de escopo. A atividade policial não é uniforme, nem mesmo em um Estado falsamente federativo como o nosso Brasil (onde há baixa independência dos estados-membros). Alguns locais partem de uma polícia metropolitana em sua forma de atuar, enquanto outros apostam numa polícia comunitária (fundada no profundo conhecimento de um bairro ou parte dele), e as regiões da dimensão de São Paulo acabam adotando um misto de experiências e roteiros para tentar chegar num denominador comum; mas, na prática, “policiamento” é sempre um tema de difícil concepção e mais difícil (ainda) implementação e gestão. Sempre desemboca no controle de um cidadão sobre outro e isto é sempre conflituoso.

Algumas pessoas, ao comentar “Segurança Pública” (que não é só “polícia”, espero que você saiba disso), acabam falando em tom professoral sobre o que não entendem em absoluto; o que não é novidade em nenhum tema, depois da Internet.
Como exemplo desse completo despreparo, cito o fato de que combater a criminalidade de roubo a celulares em nada tem a ver com combater crimes contra a vida (o homicídio sendo o mais comum), ou o tráfico de drogas; só para citar alguns exemplos.
Porém, grande parte dos que se propõem ao debate, incluindo alguns “especialistas”, em meios de comunicação, nunca deixa claro sobre o que está tratando ao falar em “Segurança Pública”.
O problema é a falta de supressão à atividade criminosa? É a baixa qualidade investigativa? É o alto número de homicídios? Ou é o roubo de cargas? Cada um desses temas tem um universo solo de conceitos, fatores, problemas, e não podem ser tratados da mesma forma; se você quer que der certo… Claro

Todos querem mais segurança e isso faz todo sentido, óbvio, mas, segurança contra o que? Nosso patrimônio é resultado, por vezes, de uma vida de trabalho duro. Mas, a morte é o único evento na existência humana para o qual não temos remédio (ainda). E se você mora no Brasil, onde os números anuais de mortes violentas são piores do que os do Iraque pós-2003 (sem exageros, só pesquisar; já tratei disso no passado, mas antes deste blog), “morte violenta” é algo que deveria te preocupar, como cidadão.
Para a maioria dos cidadãos, se fosse possível, cada rua de São Paulo (e do país) teria um tanque de guerra com scanners térmicos e batedores de plantão. O fato de que isso custaria uma fortuna aos cofres e, consequentemente, aos contribuintes (nós), é coletivamente ignorado, todavia.

No fim, a maioria de nós acaba achando que “Segurança Pública” é como um item de prateleira de mercado… Se você quer mais dela é só “comprar mais”… Mais policias, mais carros, mais armas, mais tudo. Obviamente, esse é um entendimento equivocado do tema.

Para caminhar para algum lugar, é preciso se definir o “conjunto-problema”, pois, ao discutir genericamente, acabamos presos em generalizações ou suavizações, que explicam pouco ou nada.

A Polícia que melhor conheço é, obviamente, a Paulista.

A organização da polícia brasileira é complexa (novidade por aqui [dica: sarcasmo]).

Temos a polícia judiciária (Polícia Civil), responsável, originariamente, por alimentar os processos da Justiça Brasileira contra os cidadãos que infringem a lei; temos a polícia ostensiva (Polícia Militar), originariamente, cuidando do espaço público e tentando prevenir/suprimir a atividade criminosa, à priori, pela própria presença; e, temos a polícia de jurisdição nacional/federal, a Polícia Federal, que é uma polícia proeminentemente judiciária (focada nos crimes contra a União e os interestaduais), mas que também tem ações ostensivas nas fronteias (especialmente em portos, aeroportos, entrepostos em fronteiras secas…) e com operações táticas visando coibir e atacar o contrabando internacional dos mais variados tipos e naturezas, além de ações contra associações criminosas nacionais e transnacionais. Ainda temos GCMs, IBAMA, PRF, Agentes da RFB e tantas outras organizações com poder de polícia… Mas, fiquemos assim…

Focarei na polícia que tem o maior número de queixas por violência policial: A PM.

A PMESP tem sua origem nas primeiras décadas do Brasil Império, período que começa com a Independência de Portugal, em 1822, e termina com a Proclamação da República em 1889 (via um golpe contra o então Imperador, Pedro II; este período pós-império, que veio a ser chamado de “República Velha”, e que termina na Revolução de 1930 (outro golpe, agora, contra o Presidente Washington Luis e, também, o eleito Presidente Julio Prestes que jamais chegou a tomar posse, tendo seu cargo entregue a Getúlio Vargas pela conspiração mineira-gaúcha-paraibana)… Revolução de 30 que motivou a Revolução de 1932, que comemoramos no último 9 de julho, em São Paulo, e foi contra um governo de métodos ditatoriais de Getúlio, cobrando a elaboração da nova Constituição [a anterior, de 1891, foi extinta pelo regime de Getúlio], finalmente promulgada em 1934)…

Parece-me que a primeira lição a aprender aqui é que, na nossa história, a Polícia nunca dependeu da estabilidade institucional do Império, da República, ou de seja lá qual fosse o sistema político, para existir. Embora a Polícia exista para manter um regime legal que uma dada sociedade edificou, durante todos os golpes e mudanças, a Polícia brasileira ficou do lado que parecia “ter mais corpo” (o lado vitorioso).

Sua missão, bem distante do “servir e proteger” – que é um conceito absolutamente moderno de Polícia (e mundialmente inexistente no grosso do século XIX para trás) – era muito mais ligada à ideia de atender aos anseios governistas de suprimir qualquer incidente desinteressante às metas do governante. E embora isso não seja uma exclusividade da Polícia brasileira, o que parece ter havido por aqui é que ela, enquanto instituição, jamais evoluiu de “Guarda a serviço do ‘dono’ do país/estado”, para um modelo de instituição atemporal e apolítica; este último adjetivo, utilizado no sentido de que ela exista e tenha uma missão que não depende da política momentânea de alguém que veio para o Poder, mas vai passar, como todos os outros; pois, ela, a Polícia, não passa e não pode agir ao sabor dos tempos.

O modelo de policiamento ostensivo que temos no Brasil é fruto da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro.

Dom João VI cria, em 1809, a “Divisão Militar da Guarda Real de Polícia”, copiando o modelo lisboense para seu novo lar fluminense; tal divisão seria o embrião, mais tarde, da Polícia Militar Fluminense. O modelo de Lisboa e de Porto, que adotaram por lá a “Guarda Real de Polícia”, também não é inédito. Pelo contrário, é fortemente inspirado na francesa Gendarmaria (uma reformada Marechausée [formação primordial de marechais que protegiam o território francês] com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, às portas da revolução francesa – e todos seus efeitos sociais), e que protegia os comerciantes e delegações nas estradas Reais francesas contra saqueadores e bárbaros – sendo uma das primeiras formações no Velho Mundo com homens armados por ordem Real, especialmente para a função de proteger uma dada sociedade (Gens d`Armes, de onde vem “Gendarmaria”, significa, literalmente, “Homens armados”).

Com Independência da colônia brasileira, em 1822, a Guarda Real se desorganizou (já que a formação da Guarda era esmagadoramente de portugueses, fiéis ao trono). A Regência Provisória organiza, então, em 1831, o corpo de Guarda Municipal Provisória, convertida, pouco depois, para “Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte” por força de decreto imperial, sob a Regência de Feijó (sim; aquele Regente); lei que também autorizava o mesmo nas demais províncias do Império brasileiro. Estava pavimentado o caminho para a Força Pública Paulista.

Já no fim de 1831, a Assembleia Provincial de São Paulo, sob a tutela do Presidente da Província, Brigadeiro (Rafael) Tobias Aguiar (o mesmo que empresta as iniciais às companhias do 1º Batalhão de Choque, a ROTA – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) funda o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, com cem praças à pé e trinta praças a cavalo. “Os 130 de 31”, diriam os aficionados por história militar nacional…

Em 1871, com o advento do “Inquérito Policial” como parte essencial da separação entre “Polícia e Justiça”, separa-se aquela Guarda Permanente em 3: Brigada Policial, Corpo de Guardas Cívicos, e Corpo de Guardas Cívicos do Interior. Muitas outras divisões e junções ocorreriam até que, em 1970, a Força Pública (que reagrupou a tripla divisão, já citada) se fundiria com a Guarda Civil, originando a denominação atual de “Polícia Militar” que conhecemos. Houve mais mudanças, mas são menos relevantes ao enredo.

A segunda lição, aqui, é que a origem da “Polícia Militar” não tem a ver com o golpe de 64, a truculência, a barbárie, e tudo o que se sucedeu nos últimos terríveis 20 anos de ditadura do século XX brasileiro. Sua origem militar remonta à sua essência de Guarda Real, ainda em épocas de Império.
Não estou tentando “tapar o Sol com a peneira” aqui, e dizer que o militarismo os torna mais humanos, pois, o militarismo é, essencialmente, o adestramento do “bicho-homem” em algo que suporte condições desumanas, como requisito para que este possa restaurar uma dada ordem (boa ou má), pela força e pela violência, em momentos de ruína social.

Mas, isso é tema para mais tarde. O que me importa, aqui, é dizer que eu não entendo que a Polícia Militar é violenta por descender da polícia da Ditadura; ela esteve lá, enquanto Polícia do Estado Totalitário, e tem seus episódios de vergonha pelo terror estatal que ajudou a perpetrar (como também deveriam ter vergonha os terroristas pró-comunismo, organizados em grupos como o MR-8, COLINA, MOLIPO(…), e todas as formações paramilitares em prol de regimes ditatoriais aos moldes do soviético e chinês, naquela época).

A violência não é uma característica exclusiva das Polícias Militares brasileiras, ou das ostensivas mundo a fora. Porém, o fato de que é a Polícia Militar a encarregada de fazer o patrulhamento ostensivo a torna em permanente contato com a população, e aí é onde a violência policial mostra sua pior face: Nas ruas e becos escuros de um país com séculos de atraso em sua infraestrutura e dignificação da moradia (ainda que esta esteja no art. 6º da Constituição de 88, como direito de todos nós), problema que, de modo algum, é exclusivo de São Paulo. Este estado é o 2º melhor (dados de 2016), atrás apenas do Distrito Federal, no IDSM(índice de desenvolvimento sustentável para municípios) da FGV, com nota “geral” em 5,71 e obtendo a maior nota para a composição “habitação” (5,73) do mesmo índice. O terceiro mais bem qualificado no IDSM, o Rio Grande do Sul, vem com nota geral em 5,55 e habitação em 5,40…

Quando temos medo de quem deveria nos proteger…

Uma das coisas que mais me entristece nesse assunto é ter de dar substancial razão à crítica daqueles que dizem que têm mais medo do highlight (para os mais antigos: o giroflex) do que do bandido.
Enquanto o exagero da fala não me escapa (e demonstrarei, na parte 2), eu admito que o agente policial contemporâneo tem agido com mais violência e imprevisibilidade do que em outros momentos.
Tempos atrás, eu faria pouco caso e até atacaria (no campo da discussão, claro) a pessoa que dissesse a frase de abertura desta seção. Usaria um velho bordão no qual eu sempre acreditei (mas, já não acredito mais):

“Quem tem problema com a Polícia, tem problema com a Lei”…

E eu sempre me considerei “do lado da lei”, então… Bem, voltaremos nisso, daqui a pouco.

Eu dou razão a quem tem medo porque, eu entendo que a atuação da PM na periferia é completamente distinta da atuação desta mesma PM em bairros de alto padrão. Logo, o local em que você mora, determina o tipo de tratamento e truculência que você sofrerá, e este é um fato.

Como não citar o patético vídeo protagonizado por um PM e um “novo rico”, em Alphaville?

Este vídeo é prova cabal de que se você mora numa periferia, será tratado de um jeito, e se mora em um bairro rico, será tratado de outro. E isso é tudo, menos Justiça.

E, se você é “pró-Polícia”, talvez me pergunte, já se exaltando, “e queria que o Policial fizesse o que?”.
Bem, ele tinha duas rotas:

a) Partir para cima do agressor, prende-lo à força, após este se negar a cumprir ordem Policial (legítima e legal, pois, trata-se de flagrante, e dispensa o mandado); ou
b) Chamar o reforço, cercar a residência, e esperar que o agressor ceda, pelo cansaço. O que é mais inteligente e menos arriscado do que a opção “a” (que segue válida, dentro do conceito do uso moderado e progressivo da força, constante nos manuais de qualquer Polícia do mundo.).

Agora, é mandatório notar que ele nunca cogitou a opção “c”, utilizada frequentemente nas periferias mais esquecidas de SP (ZS [Grajaú, Jardim Ângela] e ZN [Brasilândia] sabem bem do que falo, a seguir):
c) Invadir a casa, sem identificação no fardamento e cobrindo o rosto com touca-ninja para não ser reconhecido, com a arma na mão e apontado para o agressor, enquanto o parceiro usa munição de elastômero (“bala de borracha”), cassetete, ou spray-de-pimenta para derrubar o “marginal” no chão, para algemá-lo e encher ele de porrada na rota para a Delegacia, onde vai ser apontado no B.O. que o suspeito “caiu da escada”, ou “se debateu” (e se esse rico, nojento e desprezível, não age como marginal, eu já não sei o sentido das palavras). E isto é “o final feliz” na periferia, porque, dependendo da falta de humor do agente, a munição real será utilizada.
Se a mulher com a criança no colo falasse alguma coisa do tipo “deixa ele!”, espero que o agente considerasse tratá-la com o mesmo respeito que usa na períferia, com a mulher dos suspeitos e dizer “cala a porra da boca, sua vagabunda imunda”.

E tem um lado importante aqui: O cabo, na filmagem, é conhecido como alguém extremamente pacífico e paciente. E isso é ótimo para ele e para a comunidade que ele serve. E eu não queria que ele fosse o monstro do paragráfo anterior. O que me irrita é saber que se ele trabalhasse em outro bairro, dificilmente ele manteria esse perfil.
Assim que o policial é transferido para uma região nobre, vindo de uma periferia, ele já é advertido pelo “01” que “as coisas ali na área são diferentes”.

No fim do dia, eu realmente entendo quem diz ter medo da Polícia. Eu não tenho, eu a conheço bem, e eu ando em bairros relativamente seguros e tranquilos de São Paulo. Mas, para quem não teve escolha senão morar nas periferias, a realidade é muito distinta da minha. Eu vim de uma periferia e eu sei que as coisas mudam.

Outro ponto que não posso negar é o sentimento de impotência do cidadão comum. Se um bandido te faz mal, você disca 190.
Mas, para quem você disca se o “190” te faz mal? Para a Corregedoria? E você imagina que eles vão chegar em tempo de abordar os maus policiais em flagrante? Ou você vai sofrer do o trauma do abuso policial e terá de torcer para sair vivo dessa (o jovem Guilherme Guedes, de apenas 15 anos, não saiu do seu encontro com o Sargento da PM, Adriano de Campos), para, se não estiver morrendo de medo de represálias, fazer uma denuncia que provavelmente não dará resultado (você se lembra do número da viatura, ou do nome e ranking do policial?)? Sabemos as respostas.

A violência policial com fundo racial

A violência policial é um problema muito atual nas Américas (e eu estou fazendo um esforço enorme para ter um foco “pequeno”, porque não posso permitir um escopo tão grande como “a função da atividade policial, no mundo” – por uma questão de evitar absurdos, e não escrever sem fundamentação).

O caso Floyd, nos EUA, pode custar a corrida presidencial a Donald Trump, no fim deste ano. E enquanto o simpático Garotão-Laranja já vinha capengando depois de todas as cretinices que aprontou – como sugerir que acometidos pela COVID-19 considerassem injetar cloro nas veias; e sempre fazendo Escola, com seu pupilo (ou seria seu “puppy”?) brasileiro querendo competir pelo pódio da asneira – definitivamente, a morte de George Floyd foi o caminhão dos Bombeiros jogando gasolina ao invés de água, numa fogueira que já vinha ardendo muito bem, obrigado.

O caso Floyd não é um episódio isolado (quem dera…) e a violência policial, especialmente contra pretos, é tema recorrente na sociedade estado-unidense. Lembrando de outro preto, morto por enforcamento – tal como George Floyd – Eric Garner, em 2014, que também morreu “na forca policial” (eu disse forca, sem cedilha, mesmo).
E aqui, faço uma pausa, esquecendo toda a tragédia nessas mortes, para me apegar a um problema técnico: Os agentes policiais envolvidos foram tão mal treinados (ou maldosos; você escolhe) que mataram as vítimas através de sufocamento ( = falta de ar), quando as técnicas usadas são técnicas de estrangulamento.
Para quem não entende a diferença, técnicas de estrangulamento visam cortar a corrente sanguínea na região do pescoço através da pressão aplicada sobre as artérias, levando a vítima da técnica ao desmaio em pouquíssimos segundos. E não os ~9 minutos de asfixia para Floyd, ou as 11 vezes em que Eric Garner disse “I can’t breathe… Esses dois homens pretos morreram, literalmente, enforcados. A fonte da afirmação sobre a técnica sou eu mesmo, pois, eu treinei (não só) para isso, por alguns anos. A fonte sobre a natureza das mortes é pública. Basta procurar por “coroner’s report” + o nome das duas vítimas de execução policial.

Coincidência macabra: Ambos morreram avisando os agentes policiais, com as mesmíssimas palavras:” I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”). É claro que é a frase óbvia a se dizer quando não se consegue inalar o ar [que é diferente de oxigênio, só pra constar, viu Datena…]); porém, é mais uma coincidência macabra da forma da violência policial especialmente contra a população preta nos EUA; isso é fato para mim. A agonia de morrer lentamente enquanto luta para tragar o ar é muito maior do que levar um tiro na nuca; e embora isso não seja um campeonato da morte mais horrível, eu sei qual dos dois fins eu detesto mais.

Outro detalhe que só piora tudo: No caso de Garner, a ocorrência se deu no Estado de Nova York, onde a Polícia havia banido o estrangulamento como técnica de retenção de suspeitos desde 1993.

Modo geral, eu entendo e defendo que a legitimidade de decidir se um(a) cidadã(o) é culpado(a) ou inocente cabe ao juiz (ou um júri), com base nas provas e testemunhos produzidos pela investigação policial, e apresentados através do Ministério Público; e não cabe a tarefa de condenar ou inocentar à opinião pública, à vizinhança, ao jornal, aos programas de auditório, e muito menos a um blog, escrito por um qualquer.
Isso tudo dito, como confiar que se “fez Justiça” quando esta se alimenta de inquéritos policiais feitos por colegas de profissão do acusado (que nem precisam ser amigos do acusado; basta pensarem que amanhã, podem ser eles no banco dos réus), e com juris quase sempre compostos, desproporcionalmente, por brancos? No caso de Garner, o policial foi inocentado. No caso de Floyd, parece-me que também será (os agentes tiveram a fiança, caríssima, paga por “crowdfunding“, o que significa que muita gente – que deve vir a compor o juri – concorda com a atitude dos policiais; e eles estão livres para sumir com provas e ameaçar testemunhas)… Igualmente, nos dois casos, os pretos jazem a 7 palmos de profundidade na terra. Pelo menos, o tratamento é homogêneo, não é mesmo?

Diferentemente dos EUA, onde apenas 13.4% dos mais de 350 milhões de habitantes são pretos, o Brasil tem uma demografia bem diferente: Dos seus quase 211 milhões de habitantes, meu país tem aproximadamente 51.14% de pardos e pretos.
Chama-me a atenção que na composição desta porcentagem, a maior parte se declare “parda” (43.42%), com uma minoria dizendo-se preta (7.52%).
Claro que isso tem forte reflexo da nossa miscigenação intrínseca, quase inexistente nos EUA – ou, no resto do mundo, para ser justo com o Brasil. Mas, também há o fato de que, na realidade, muitas pessoas querem ser “qualquer coisa” menos pretos (ou “negros”). O preconceito racial também dá suas caras através dos censos nacionais.

Então, poderíamos dizer que, no Brasil, a violência policial ocorre menos voltada à cor da pele? Não é tão simples assim.

O Atlas da violência – obra indispensável para quem quiser discutir, com qualidade, o tema “Segurança Pública” no Brasil – compilado pelo IPEA, nos mostra que dos 60.559 (faço questão de escrever por extenso: sessenta mil, quinhentos e cinquenta e nove) homicídios contra o sexo masculino, no ano de 2017, 46.217 (quarenta e seis mil, duzentos e dezessete) mortos eram homens pretos. Para mulheres, não melhora: 4.936 (quatro mil, novecentas e trinta e seis) mulheres mortas em 2017. 3.288 (três mil, duzentas e oitenta e oito) eram pretas.

Quer dizer que do universo de homens mortos de forma violenta, em todo o ano de 2017, nos trágicos números de guerra brasileiros, 76.32% eram pretos. No número das mulheres, das quase 5 mil, 66.61% eram pretas.

Se esses números não fazem soar nem um singelo alarme de que há algo perturbador acontecendo com os brasileiros de cor preta, eu lamento informar, mas você perdeu sua humanidade em algum lugar da sua história. Torço para que, um dia, você a reencontre. E não: Como falarei a seguir, não estou imputando o quadro somente à Polícia.

São Paulo tem números bem menores de homicídios (como o Sudeste como um todo; e faz sentido, dada a menor população [comparando com o país] e o maior IDH) e quando usamos métodos estatísticos de comparação, as proporções de mortos “não-pretos” vs. pretos melhoram bastante (no número geral, o Brasil tem 31,59 mortos por 100 mil habitantes, e São Paulo tem 10,27 mortos por 100 mil habitantes – quer dizer que a cada 100 mil brasileiros, quase 32 serão assassinados; e quase 10,5 a cada 100 mil paulistas):

Em São Paulo, dos 4.134 homens mortos por violência em 2017, 2.002 eram pretos. Significa que 48.43% dos mortos eram pretos. Mas não dá para “bater palmas” (nunca daria, só para deixar claro). Como demonstro a seguir, “pretos e pardos” representam, grosso modo, 30% da população paulista e são, praticamente, 50% das mortes violentas do Estado. A situação para esta cor de pele segue, portanto, perversa.

Para mulheres, o número é mais condizente em sua distribuição vs. demografia: Das 495 mulheres mortas por homicídio “simples”, em 2017, 166 eram negras (33.54%). Novamente: Este número deveria ser zero. Mas, ao menos, ser mulher e negra não aumenta o risco do homicídio sem qualificadoras (mas, aumenta outros riscos como da violência doméstica, feminicídio; e não é meu foco, hoje).

No entanto, é óbvio para mim, mas surpreendente para outros, que a PM não responde pelo total desses números de mortes. Na realidade, como veremos a seguir, em São Paulo, a cada 3 mortes, uma é causada pela Polícia Militar. Assim, de fato, ser preto no Brasil, é correr muito mais risco de morte, mesmo no Sudeste, onde a coisa está melhor.

Mas, esta não é uma violência causada somente pelo braço armado do Estado contra os pretos. Há uma guerra entre facções e criminosos, matando mais pretos do que brancos (porque há mais pretos em regiões perigosas, do que brancos) e a PM é apenas a menor parte disso. Não significa “passar pano” e dizer que a Polícia mata pouco, ao matar um terço dos mortos por violência, no meu Estado.
Idealmente, ela deveria matar zero; ela não é paga para matar, mas para garantir a Lei Brasileira, e a Lei Brasileira diz, via sua Lei Maior, que a vida é um direito inviolável (caput do art. 5º/CF).

Contudo, também significa dizer que a violência entre os moradores de periferia (onde a maioria é preta ou parda), mata mais pretos do que o braço punitivo do Estado mata. O maior inimigo do preto é a violência das gangues na comunidade em que vive, estatisticamente falando.
A Polícia vem em segundo lugar. Mesmo que este fato incomode alguns que procuram, só e somente só o viés de confirmação de suas crenças e preconceitos (no caso, contra a Polícia). E claro: A violência epidêmica dessas regiões é culpa, sim, do Estado (mas não da Polícia, que só vai lá quando todo o resto falhou; a saber: Família, moradia digna, educação de qualidade, oportunidade de emprego digno e de rendimento compatível com o custo de vida…).

Aqui, não tem espaço para opinião: Os números são esses, o IPEA merece todo o respeito, e se você não respeita a seriedade da instituição e de seus números (excluindo eventuais equívocos que eu tenha cometido ao compilar os resultados, óbvio), o problema e a cegueira são só seus e não do IPEA (ou meus). Pode parecer truculência gratuita com a opinião alheia, mas eu já disse que não vou mais tolerar os intolerantes, e negar estatísticas do IPEA (acreditado por inúmeras instituições nacionais e estrangeiras) é como negar a própria realidade.

Por que eu queria ser Militar?

Eu queria ser Militar. Não tinha dúvidas durante toda a minha adolescência. Preparei-me para isso, por anos.

Eu tentei – e fui um fracasso – ingressar na AFA, em Pirassununga: 10 vagas para piloto, para os COMARes do Brasil todo (só em São Paulo, o Anhembi estava lotado de candidatos em suas arquibancadas). Bem… Eu me achava preparado… Mas, não era tão bom assim… O nível da prova não deixa muito a desejar na comparação ao que eles exigem de um cadete ingressante no ITA… As questões de física (matéria em que sempre fui bem, no Ensino Médio) me davam a impressão de que eu já era um piloto treinado. E na prova de inglês, analisamos, sintaticamente, a oração “Ave Maria”; em inglês… Arcaico… E isso não é piada da minha parte.

Ciente das minhas limitações e ciente de que eu não tinha chance contra os filhos de militares de carreira da FAB, estudando em colégios preparatórios de alto nível desde o início da vida (enquanto eu vinha sempre de escolas periféricas), percebi que essa janela estava fechada desde o dia em que nasci.

Mas, existia uma segunda chance para o sonho da farda. Se eu não poderia estar entre os melhores da FAB, eu poderia estar entre os melhores da PMESP. “A barra baixaria”, mas, como explico a seguir, só um pouco.

Assim, tracei o plano e calculei onde eu chegaria, o mais rápido possível: Eu estaria na 2ª Companhia do 4º Batalhão de Policiamento de Choque de São Paulo; que abriga os grupos de elite da PMESP.
Sendo a 1ª companhia, o COE (Comando & Operações Especiais), e a 2ª companhia, o GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais). A primeira, especializada em operações em áreas florestais e “selvagens” do estado; a segunda, em operações especiais em área urbana.

Claro, eu tinha um plano B: Se minha nota em Barro Branco não fosse suficiente, eu aceitava ficar no GRPAe, grupamento responsável pelos “Águias”.

Como se pode ver, sempre tive metas simples. Sonhos contidos e de fácil completude. Yeah, right

Ser policial, para mim, era uma questão, àquela altura, de excelência e vocação.

Excelência porque eu não me imaginava patrulhando ruas, diariamente. Eu queria estar nos grupos que solucionavam o “insolucionável” (perdão pelo neologismo). E não é fazer pouco caso com quem patrulha ruas, porque, é óbvio que este é o trabalho mais importante de qualquer Polícia que quer evitar o crime. A violência do cotidiano não é a do tipo que precisa de tropas de elite. Mas, o que eu queria fazer comigo mesmo era me submeter ao rigor absoluto de um dos treinamentos diários e permanentes, mais difíceis do mundo.

Eu queria estar “pronto para a Guerra”, por 30 anos da minha vida, mesmo que a Guerra jamais viesse. Tente se lembrar das últimas três vezes em que você viu o GATE trabalhando. Vou falar a última vez que lembro de vulto do GATE na mídia: O caso Eloá. E foi uma tragédia. Tudo que poderia dar errado “no teatro de operações especiais”, deu. E os culpados são os membros daquele grupo que eu queria integrar, não obstante eu entenda a argumentação de que a mídia muito atrapalhou. Mas, sinceramente, pensando com mentalidade de militar: “Desculpas são para quem não tem competência”. Assim eu pensava, quando me imaginava operando num grupamento de Táticas Especiais. Eu treinaria ao ponto de estar sempre pronto para o inesperado, o absurdo, ou inconcebível…

Ler esse último parágrafo, tantos anos depois, é um pouco constrangedor; sou obrigado a confessar.
Um dos homens mais brilhantes em termos de registros militares, o atirador de elite, Chris Kyle, um Navy Seal, membro da elite (da elite) dos Estados Unidos, foi morto ao confiar em um colega de farda ensandecido.
Para o Rodrigo de ~18 anos, faltou ao Kyle prever o imprevisível. Para o Rodrigo de 34, a vida é pura contingência e a exceção é, de fato, quando ela segue seus planos. Você prevê e planeja para tanto quanto pode, mas a regra é que a vida sempre pode mais do que você pensa ou planeja. Para o bem e para o mal.

Aliás, o GATE surge de um incidente similar ao de Eloá, em fevereiro de 1987, quando a pequena Tabata (com apenas 3 meses) é feita refém por ex-estudantes do ITA, fora de si, (gente muito inteligente, ironicamente; e não os temíveis marginais do tráfico de drogas que pairam no imaginário coletivo), ameaçam matá-la, em Mogi das Cruzes. O teatro de operações termina com os criminosos mortos e a menina salva, apesar de um ferimento de faca causado pelos criminosos. Depois disso, o GATE é considerado uma necessidade indiscutível.

Bem, eu queria ser parte desta Elite. Precisão, controle sobre o corpo, sobre a máquina, sobre as emoções, sobre a situação… E atividade policial de elite era a minha rota escolhida. Esqueça as forças especiais federais. Várias estão sucateadas pelo desprestígio do próprio Comando que está mais preocupado em investir naquilo em que pode faturar (seja faturamento político ou mesmo monetário).

O GATE – e, em alguma medida, o COE – possui equipamentos muito melhores do que boa parte das Forças Especiais brasileiras. É uma tropa menor, limitada quanto à jurisdição, e no estado mais rico da nação. É até óbvio que seja mais bem equipada, no comparativo.

Aliás, entrar no GATE é como entrar na Engenharia da NASA: No mundo, só outros 6 cursos de formação de Policias Especiais são considerados tão difíceis quanto o do GATE: BOPE (no RJ), GIGN(França), GSG9(Alemanha), SWAT(especialmente a mais antiga, de L.A.), LE RAID(França), OMON(Rússia). Chamo a atenção de que dois dos sete cursos estão no BR (GATE e BOPE). Isso também fala do tipo de violência que se espera combater.

E, então, a vocação: Acho importante discutir o caráter um tanto quanto religioso da palavra “vocação”.

Vocação” descende do termo em latim, “vocare”, que significa “chamar”. Portanto, quem tem vocação, “atende ao chamado”. Ninguém diz que você está pronto para aquilo. Você simplesmente sabe que está. Você simplesmente sabe que aquele é o seu chamamento; o seu lugar…

A vocação de ser Padre, de ser Professor, de ser Médico, de ser Policial… Perceba: É totalmente possível se habilitar professor fazendo um curso online de 2 ou 3 anos. Isso nunca fará de você um Professor vocacionado. O mesmo para as outras profissões que requerem vocação. Nem todas requerem. Mas, em boa medida, é fácil notar quando as pessoas têm vocação para uma área ou não. Aquele Professor fazendo milagres em uma escola em frangalhos (o que é uma realidade lastimável e comum, acrescento), na periferia de algum canto abandonado deste país; ele (ou ela) tem vocação.

E eu sentia a vocação. Eu sentia o chamado para perseguir uma perfeição quase desumana, me submeter a uma carga brutal de treinos e torturas psicológicas (porque fazem parte do treinamento), visando me tornar pronto para o trabalho que poucos podem realizar. Se fosse preciso perder o dedo para salvar a mão, é o que eu faria. Se meu colega de farda se tornasse uma ameaça, no meio da operação, eu faria o que fosse preciso para proteger o teatro de operações que me foi ordenado garantir.

Dou a você o direito de rir. Vai na fé. Eu ri ao reler o que escrevi. Mas, isso, aos 34 anos. Dos 11 aos 21 anos, isso foi uma certeza tão cristalina quanto a absoluta necessidade de inalar ar (e não “oxigênio”, relembro). Ainda tive uma recaída aos 27 anos. Mas, “quis a Contingência” encerrar essa fase para sempre (acertei praticamente todas as questões objetivas, mas, misteriosamente, minha redação teve a nota zerada – alegaram extravio de minha parte).

Se você me conhece ao vivo, hoje, deve ser ainda mais engraçado: “Como essa rolha de poço achou que seria parte da elite da polícia paulista?”… Entendo a crítica.
Mas, aos 20, eu era outra pessoa. Cheguei a atingir 15 barras pronadas e 40 abdominais-remador, em 1 minuto, cada. Corria, sem sofrer, os 3km em 12 minutos, e só desapontava na corrida de 50 metros: 8 segundos. Como eu disse, hoje eu me canso só de olhar para esses valores. Mas, esses eram meus números, ~15 anos atrás. A menor pontuação seria a corrida de 50 metros. No resto, eu ficaria com 80 ou 100 pontos (o máximo). E a parte escrita não era uma piada (na época, ainda era a FUVEST a fazer a admissão em Barro Branco e a VUNESP nos concursos de Praça) e a relação candidato-vaga para a Academia era absurda (“dava pau” em Medicina na USP, só para constar).
Mas, eu acreditava, sinceramente, que eu conseguiria ficar entre os 160. E, para minha meta, a nota de entrada não importava.
O que importava era a classificação na saída. Quanto mais perto do topo, melhor. O primeiro escolhe para onde vai, de acordo com as vagas disponíveis. E, depois, o segundo. E, então, o terceiro… Eu podia entrar em 160°, não me importava. Lá dentro, eu seria o Diabo. Esse era o plano…

Uma Polícia treinada para proteger ou para matar?

Vamos manter o escopo da análise em São Paulo.

São Paulo é um país. Tudo bem: Não é… Mas, poderia ser. Com seus mais de 44 milhões de habitantes, meu estado de origem “deixa no chinelo” muitos países conhecidos da Europa. Suécia (~10.2), Portugal (~10.28 mi), Bélgica (~11.46mi), Holanda (~17.28 mi). E briga com a Espanha (~46.9mi). Assim, considerar que a população de SP o habilita à categoria de país, não é exagero.

Em extensão territorial, a briga fica ainda melhor: Com seus quase ~248 mil km², o estado é maior que o Reino Unido inteiro (243 mil km²). E só para te lembrar: O Reino Unido contém a Grã-Bretanha, mais a Irlanda do Norte (que fica numa ilha à esquerda da anterior). E a Grã-Bretanha contém a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales… Esse é o tamanho de SP.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo é, atualmente, formada por mais ou menos 100 mil homens e mulheres, no entanto, o efetivo nas ruas é da ordem de ~80 mil policiais. O resto opera o administrativo da Força Pública; do RH ao treinamento, passando por centros de formação etc.. E não estou considerando os afastados do serviço por inúmeras razões.

Aproximadamente 64% são brancos. O que não está em desacordo com a demografia Paulista e não tem nada de errado (embora o jornalista tente dar este viés). Em São Paulo, “pretos e pardos” somavam, no Censo 2010, 30.5% dos 42 milhões de habitantes. Os brancos, por outro lado, atingiam 67.9% da população do estado. Em outras palavras, podemos até dizer que a distribuição de “etnias” dentro do efetivo policial reflete a realidade demográfica do estado.

Já, quando o assunto é gênero, a PMESP continua muito distante da realidade demográfica. Num levantamento de 2016, dentre os 100 mil policiais militares, não mais do que 15% eram do sexo feminino. E nada indica que houve mudança substancial nesse percentual. O estado de SP, no entanto, tem 51.33% de mulheres, para seus mais de 44 milhões de habitantes, hoje. Considerando o número de Coronéis na ativa (cerca de 60), apenas 3 são mulheres, de acordo com o relatório da própria PM, em 2011; o que também diz muito sobre o número de mulheres ingressando na Força.

creditos: PMESP ®2011
créditos: PMESP ®2011

69% dos policias nunca fizeram um curso superior (no universo de mulheres, 57% têm nível superior antes do ingresso na PM), além do próprio curso de formação policial que, hoje, é tido como Superior tecnólogo em Segurança Pública (grau concedido aos Praças [Soldado, Cabo, Sargento, Subtenente]), num curso integral que costuma durar 1 ano, a depender do momento da Secretaria de segurança pública – SSP (“momento” = pressa).

Por outro lado, Barro Branco, a Academia da PM Paulista, forma os Oficiais (Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel), no grau de bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. A carga integral do curso (com o primeiro ano em regime de internato e outros três anos) é suficiente para que o recém-formado em Barro Branco possa obter o bacharelado em Direito, cursando apenas mais um ano de estudos em uma Instituição de Ensino Superior comum. Não me recordo da fonte, mas, me lembro que o mesmo valia para o bacharelado em Administração.

Assim, é possível notar alguns abismos “logo na largada”: A formação dos Oficiais da PMESP é incomparável com a formação dada aos Praças. Os Oficiais saem com um repertório humano e acadêmico absurdamente superior ao dos Praças, ainda que haja os Oficiais medíocres, que apenas passam raspando pelas provas internas. Mesmo assim, há muita distância da formação recebida pelo melhor Praça para o Oficial minimamente aplicado.

O salário também. Enquanto o Soldado 2ª classe tem o salário-base em R$3.000 reais, o salário-base do 2º tenente (o primeiro ranking logo após os 4 anos de Academia) é na casa dos R$6.700. E pasme: São Paulo não tem, nem de longe, o melhor salário para suas Polícias. Só para humilhar com a pior “das minhas armas”, no Distrito Federal, Soldados 2ª classe da PM ganham o equivalente a 50% do salário de Policiais Federais (que está na casa dos R$11 mil) e vêm brigando, ao lado dos Policiais Civis, para equipararem o salário em 100% (“Todos são iguais perante a lei”… Certo… Só que não…), afirmando que eles patrulham a mesma população que a PF, por estarem no DF. Agora, basta Bolsonaro assinar para que isso possa ocorrer.

A questão é que, uma vez “na rua”, a atividade policial não se equaciona por essas diferenças de formação e salário. Pelo contrário: É óbvio que a proporção de Praças é muito maior do que a de Oficiais (como seria a proporção “funcionário/chefe”, em qualquer empresa). No entanto, esses indivíduos, preparados ou não, bem-remunerados ou não, atendem às ocorrências do “país” que é São Paulo, do mesmo modo. A sua experiência como cidadão (ou cidadã), ao ser abordado por uma viatura com Oficial presente pode vir a ser bem diferente da experiência com o veículo formado somente por Praças. E não tratemos das exceções, mas sim da regra, por aqui.

E é claro que cargos e salários não são justificativas para a deformação de caráter. E é claro que há Oficiais cometendo crimes, mesmo sendo relativamente bem pagos. E é claro que há Praças realizando um exemplar serviço de segurança pública à população paulista e visitantes do estado, respeitando a lei e os valores humanistas, como homens cheios de diplomas e títulos jamais o farão.

Mas, remeto-me à questão apresentada por um antigo blog da Folha, que me inspirou a fazer Direito e que, infelizmente, deixou de publicar conteúdo novo. O blog se chama “Para entender direito”. Era feito por profissionais da área Jurídica e voltado a treinar os jornalistas a entenderem “as regras do jogo” para prevenir que estes publicassem (muitos) absurdos, em matéria de Justiça e Direito. Pois bem, este blog, nos idos de 2000, publicou uma matéria falando sobre a questão da violência policial, histórica e, em algum grau, crônica, na nossa sociedade. Já nos “finalmentes“, o artigo assim dizia: “Se pagar bem o policial não é certeza de que este agirá dentro da lei, pagá-lo mal é certeza do incentivo à corrupção e ao recrutamento de baixa qualidade”.

Pense bem nisso, agora: Se você tem “tutano” nessa sua cabeça, o suficiente para ganhar bem mais que um soldado, ou, até mesmo, ganhar mais do que um tenente, qual é a probabilidade de você vestir uma farda, trabalhar em uma organização de valores rígidos e dogmas, por vezes, sem propósito real?
E que tal vestir um colete a prova de balas em uma viatura que não tem ar-condicionado, no verão paulista de Ribeirão Preto? Blindagem da viatura? Você está louco. Poucas viaturas, destinadas a grupamentos de choque (como a ROTA) devem começar a ter blindagem parcial no futuro, mas a licitação, com a crise econômica, já foi suspensa – sabe-se lá quando retomarão.

E, que tal enfrentar a organização criminosa mais perigosa do país, com armamentos assustadores, como fuzis e metralhadoras anticarro (calibres FN 5.7×28, por exemplo) e antiaéreas (calibres .30 e .50)? E mísseis (como o Stinger que estavam negociando, ou aquele aprendido em 2005)? Bem, se você me disser que você quer essa vida, mesmo assim… Eu acho que você é mais louco do que eu era.

Porque, diferente do “eu, jovem”, você assumiu que sabe da sua competência para ganhar mais do que qualquer cargo inicial da Polícia Militar paulista. Além de ter seus fins de semana (ou quase todos), as madrugadas e tudo fora das 40 ou 44h semanais, só para você. E, ainda assim, você prefere a organização anacrônica, cheia de ritos “religiosos” sem justificativa prática, e que vai te colocar na linha de frente do arsenal que sabemos que o crime tem (e fico pensando sobre o que não sabemos)…

Como você imagina que são treinados os policiais que passaram para o cargo de soldado segunda classe, com salario inicial por volta dos 3 mil reais/mês e recrutados das camadas da população com menor instrução formal e, geralmente, da mesma periferia em que a maior parte das pessoas que sempre foram de classe média, temem passar perto?

Você imagina que, numa dada semana do curso de formação, eles têm uma longa reflexão sobre a atividade policial, sobre a necessidade de lidar com uma sociedade conflagrada, ignorante e com conceitos sociais rudimentares, com tensões sociais históricas, de uma perversidade ainda maior, justamente contra aqueles tidos mais fracos (as crianças, os idosos, as mulheres), e um descaso sistemático e histórico do Estado de Direito?

Ou, talvez, você imagine que eles recebam uma grande mesa redonda para discutir porquê o Estado brasileiro deixa a favela ser criada, crescer, crescer mais, até explodir em ódio quando um morador de lá é baleado pela Polícia (sendo criminoso, ou não), ao invés de garantir que o “déficit habitacional” (termo polêmico) seja de ZERO? Dica “de grátis”: Sempre foi possível zerar o déficit. Não acredite em quem te diz o contrário. Mas não é tema pra agora.

Ou, ainda, talvez você imagine que eles discutam, por semanas e meses, o porquê de um Estado que cobra tantos impostos e encargos só usar o braço armado que eles agora farão parte para oprimir aqueles que se insurgem, sem jamais entregar a todos eles (os que se insurgem e os próprios polícias, que também viveram e cresceram na periferia) o que ordena a Constituição Federal e tudo o que emana dela; texto legal que eles jurarão defender, ao receber a farda pela primeira vez…

Se você cogitou “sim” para qualquer parte dos parágrafos acima, eu só tenho uma pergunta para você: Sua mãe sabe que você usa entorpecentes?

Os policiais, no curso de 12 meses (já cogitaram fazer em 8, quando calcularam mal as baixas por aposentadoria, afastamento por problemas psiquiátricos etc.), aprendem:

  • Sobre conduta militar (o temido e famigerado RDPM – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar – Lei complementar 893/2001).
  • Sobre a Hierarquia e a Disciplina como os únicos valores inquestionáveis. Quebrar a hierarquia ou cometer um erro grave de indisciplina é garantia de exoneração. A prisão em Romão Gomes (o estabelecimento carcerário para PMs, em São Paulo) dependerá de quase nada além de um “sim”. “Ampla defesa” e “Devido Processo Legal” são temas ainda estranhos na Corporação (mas, melhorou, mesmo que timidamente, na última década).
  • Sobre como passar o uniforme, com vincos na calça e o nível certo de lustre na bota (não estou brincando).
  • Algum tempo (mas bem menos do que um civil pode imaginar) manejando armas de fogo, típicas da operação. Mas não todas: Diferentemente do crime organizado que ensina o moleque de 12 anos a usar um Fuzil, o nível de armamento ensinado na PM depende do seu ranking e lotação. O básico é a Pistola .40 e a “Calibre 12” que “tem fama”, mas não se compara ao poder de fogo de fuzis e submetralhadoras.
  • Um pouco “sobre lei”. Se der um terço do tempo de curso, pode bater palma.

No resto do tempo, o treinamento passa por “criar casca” nos recrutas, força-los a trabalhos desprezíveis à atividade policial (como arrancar grama com a mão, para limpar um jardim imenso), ficar em pé em posição de sentido por uma hora inteira, embaixo de Sol a pino, e outras idiotices que EM NADA contribuem com a formação de um futuro policial de alto nível para a sociedade).

Nesse tempo, eles não são treinados para “atirar para matar” como algumas fontes civis sugerem – o método de tiro que eles treinam na academia é o método Giraldi, e este não é feito para aumentar a letalidade, mas para garantir a baixa margem de erro do alvo (escolhendo as áreas maiores do corpo) e garantir o rápido cessar da agressão que se repele.

A PM não é hermética à Sociedade

No futebol, toda vez que cenas de violência entre torcidas surgem, os comentaristas dos canais que assisto se apressam a dizer (e o dizem, acertadamente, para mim) que o futebol não é um mundo à parte da sociedade na qual ele está inserido. Assim, a violência que explode nos estádios não deveria surpreender tanto o expectador atento, já que vivemos em uma sociedade violenta e conflagrada, o tempo todo. E se você supõe que isso é uma impressão equívocada, sugiro voltar a analisar o Atlas da Violência do IPEA com o devido apreço.

Do mesmo modo, eu costumo dizer que a PM é tão violenta quanto a sociedade que a mantém. Mantém com impostos, com políticas e diretrizes; mas principalmente, mantém com mão de obra.

Um dos lemas dos PMs é “Paisano é bom, mas tem muito”. Paisano = Eu e você. Além do erro de português (porque a interlocução adjetiva correta é “à paisana”, e “paisano” é substantivo para o nativo de algum lugar [vs. um turista, por exemplo]), o que se revela é um senso, mesmo que carregado de humor (o animus jocandi, no empolado latim jurídico), de superioridade da tropa com relação aos civis; civis que os PMs juraram proteger quando decidiram se tornar Policiais, ainda que nem todos se recordem bem disso.

O motivo dessa superioridade advém, primeiro, do fator enraizado na sociedade brasileira de que “militares são melhores do que o resto do povo” por motivos e razões que não cabem agora, mas que abordarei, mais tarde.

O segundo motivo é a impaciência da tropa com o conjunto de fatores que fazem com que sejam acionados para separar brigas familiares, especialmente entre marido e mulher e, mais tarde, na delegacia, presenciam a mulher tentado salvar o agressor do processo. Outro ponto crítico é o sentimento de injustiça, após uma ou duas horas de perseguição (eles usam o termo “acompanhamento”, pois, não podem fazer de tudo para perseguir o suspeito) e, logrando êxito em prender o suspeito em flagrante, vê-lo sair da delegacia após preencher um termo circunstanciado (o famoso TC), por vezes, antes mesmo da liberação do próprio policial (que tem uma grande burocrácia pela frente).

Os tramites em um flagrante consomem, sem qualquer exagero, de 2h a 8h do tempo de um policial, a depender das circunstâncias. Para o PM, isso inclui o tempo de ser recepcionado na delegacia civil, entregar o suspeito, narrar sua versão e apresentar provas e, depois, no batalhão, fazer o BOPM (Boletim da PM), que não é interligado ao BO feito pela Polícia Civil.

Um tramite para uma ocorrência de agressão leva de 2h a 3h. Se for um flagrante de tráfico de drogas, o tempo passa facilmente das 6h de processo. E se o Policial Militar, após 12 horas de atividade, faz um flagrante na última hora do dia de trabalho, essas 2 a 8 horas entram na conta, de graça – Hora extra? Você só pode estar brincando.

Esse sentimento de impunidade, misturado ao sentimento de que o cidadão aciona a Polícia, faz ela se envolver em questões e picuinhas familiares (por vezes, a PM é acionada apenas para “assustar” o outro lado) para, depois, ver a parte reclamante desistir da ação, (quando o policial já tomou arranhadas, garfadas, e todos os outros objetos atirados), atingindo ~16 horas de trabalho, literalmente à toa, tornam o “paisano” um “cliente” dos mais problemáticos e dos mais odiados, especialmente para os PMs há muito tempo na profissão.
O paisano é visto como um elemento ruidoso, indisciplinado (especialmente, se comparado à carga de disciplina militar), inocente (pejorativamente falando), que cai em golpes e armações rudimentares e que requerem grande estupidez por parte da vítima, e que envolve a PM para fazer chantagem ao outro, mas não para ver a Justiça legal efetivamente ser cumprida.

A formação dada aos Praças não é dirigida a formar “agentes assassinos”, como a sociedade brasileira insiste em afirmar por meio de pseudo-intelectuais (porque, se são mesmo intelectuais, têm que ao menos considerar o que considero aqui [não necessariamente com a mesma conclusão, já que não me suponho dono da verdade], e não simplesmente afirmar que o treinamento visa o óbito dos suspeitos que eles enfrentam) e porta-vozes nas mídias das mais diferentes matizes.

Mas, a maioria jamais se debruçou, sem paixões ou clubismos, sobre o ambiente tóxico onde esses Polícias trabalham, e a condição terrível e inerente a ele. Todos se apressam (e eu faço coro com estes) para dizer que muitos dos criminosos são fruto do ambiente em que crescem e vivem, e que com estrutura, apoio familiar, social e do Estado, além de oportunidades para lidarem com o que está errado, a maior parte não seria criminosa. Eu fico enraivecido de não ver a mesma ótica, benevolente e principiológica com os Policias, seu ambiente tóxico, sua falta de apoio social, estatal, e a falta de mecanismos para que eles possam lidar com o que está errado. E acredite: TEM MUITA COISA ERRADA dentro da Polícia Militar.

Também, me parece equivocado dizer que o militarismo cria uma mentalidade assassina, por si só; muito embora, eu conceda, de pronto que ajudar a pacificar as relações, ele não ajuda; ou seja… Se não faz mal, bem é o que não faz. O militarismo endurece o cidadão, o deixa pouco sensível à natureza falha dos seres humanos e, principalmente, o militarismo prega que os fins justificam os meios, e conquistar o objetivo é mais importante do que a ética (ou a falta dela) envolvida na manobra – e esse é o maior problema quando pensamos no policiamento em um Estado de Direito (onde os fins jamais justificam os meios).

Por outro lado, o militarismo mantém na linha uma multidão de 100 mil homens e mulheres que, não fosse o modelo, provavelmente fariam greve com enorme frequência, por melhores condições. E sim, a greve é ilegal para agentes armados (militares ou não), porém, enquanto os civis apenas respondem ao processo comum, os militares enfrentam os crimes militares de motim e revolta, previstos no RDPM, com penas bem mais duras e sem todo o aparato legal que o civil encontrará em seu favor.

Por fim, o que fica nítido para mim é que 50% do problema do serviço policial e sua inerente falta de qualidade cívica, jaz no recrutamento de baixa qualidade e assim o é, em larga medida, pois, o pagamento é totalmente incompatível com o risco e com a natureza da atividade policial, motivando boa parte daqueles que não detém os atributos que esperamos para o exercício da atividade policial.

O desrespeito deles pelos civis, devido à dureza da formação militar que exige deles uma inflexibilidade superior ao mediano, faz com que os civis problemáticos, e que são seus maiores “clientes” (o abuso de álcool, as brigas em família, de vizinho contra vizinho – e não o combate a criminosos armados), removam outra parte da boa-vontade dos policiais. O sentimento de injustiça ao lidar com o suspeito em flagrante que deixa a delegacia antes deles, leva o resto do espírito de “fazer o melhor” embora.

Pode soar elitista e eu aceito a crítica de bom grado, porque eu a encararia assim, tempos atrás. Mas a verdade, para mim, é que estamos recrutando o grosso da Polícia Militar no mesmo lugar e faixa de inteligência (para o serviço policial) que o crime organizado se abastece. A diferença é que ao invés do lucro do tráfico, se abraçaram a algum sonho de criança, ou idealismo (como os que eu tinha).

Também, me incomoda muito a compreensão e o “abraço” de intelectuais e movimentos diversos aos criminosos, sob a argumentação de que faltaram oportunidades e estrutura à maior parte dos criminosos; fatos com os quais, sim, eu concordo. Mas também falta estrutura e apoio aos Polícias que também vêm – em franca maioria – das mesmas periferias esquecidas por todos, e isso quase sempre não está no discurso de quem ataca a Polícia. No fim, a tragédia da PM é a mesma tragédia do crime, e há apenas o pobre matando outro pobre; com ou sem farda. Os verdadeiros vilões estão em outra liga.

Trabalhar na Polícia exige vocação. E vocação vem de sonhos e ideiais. Mas sonhos e ideiais não aguentam, por muito tempo, o que eles vivem nas ruas…

Em breve Um dia, a parte 2…

Espírito Santo: A Ameaça Fantasma

O Espirito Santo viveu uma violência, nas vias públicas, assustadora, logo após uma greve da Polícia Militar desse estado. Mas, o que o Espirito Santo esconde de perigoso, para o país, como um todo, é o que a maioria não está se atentando.

By Tânia Rêgo/Agência Brasil [CC BY 3.0 br (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en)], via Wikimedia Commons
(ES) – Homens do Exército Brasileiro, atuando em Vitória, sob efeito de GLO (Garantia de Lei e Ordem) – (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Olhe a imagem, acima: O que você vê?
A tensão que salta dos homens fardados? A aparente tentativa das moradoras da região de demonstrar que não temem uma eventual repressão de um Estado tentando recuperar o controle sobre parte de seu próprio território? O sentimento de hostilidade que uma viela impõe, em uma região de clara construção desordenada (e, não difícil supor, ilegal)? A suposta ameaça dos homens, em posição mais elevada de terreno, talvez, em desafio à Ordem que os fardados deveriam trazer?

Bem, tudo isso está na imagem. E você estaria certo(a), se verificasse isso tudo.

Eu, por outro lado, não consegui tirar o olho da composição da fotógrafa que, intencional ou não, foi extremamente oportuna à fotografia como registro jornalístico e histórico, no melhor estilo “uma imagem vale mais que mil palavras”: A placa, afixada no poste, onde lê-se “Rua sem saída“.

Sem Saída…

“Sem saída”, é o exato resumo do sentimento que acredito que muitos capixabas sentiram, ao lidar com a volta da barbárie, anterior ao conceito básico de Sociedade Democrática, em uma “pequena” (porque, poderia ter sido bem pior) amostra do que é a falência total das funções primordiais de um Estado de Direito.

Quando Jean Jacques Rousseau escreve “Do contrato social”, ele não deixa espaço para dúvida quanto a função central de um Estado: Garantir direitos e impor deveres através do monopólio da Força (ou “violência”).

Tal monopólio é obrigatório porque, no Direito Natural em que todo ser vivo nasce, a Força é o instrumento central da manutenção do Direito: Eu posso o que você não pode, porque sou mais forte do que você. E você, em relação ao seu vizinho mais fraco, pela mesma razão.

Oras, sendo o Direito Natural tão mais benéfico aos que detém o maior poder natural (ou seja, o maior músculo, a maior arma, o maior poder de fogo), por que diabos eles teriam abdicado disto, em troca do Direito construído pelo Contrato Social? Bem, não há como resumir a resposta de Rousseau, já que ele escreveu um livro todo só para isto. Para não obrigar a leitura (muito embora, eu recomende, fortemente), vou tentar resumir este porquê, com uma síntese da própria obra de Rousseau, e outra sentença do, também francês, pensador, Etienne de La Boétie, respectivamente:

  • A Força não produz Direito. Por ser um elemento da física, nenhuma moralidade pode advir da Força. Logo, os direitos provenientes do uso da Força duram tão somente o tempo em que esse elemento físico puder ser sustentado, e tal tempo é sempre finito. O “verdadeiro” Direito descende de ideais. E ideais perduram indeterminadamente, enquanto forem benéficos à uma sociedade, em um dado período histórico.
  • Frágil por natureza, de onde, a todo instante despontam os escândalos pois, o tirano não tem amigos, não ama, nem é amado: “O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apóiam mas, se entre-temem. São cúmplices”.

Considerando, especialmente, o  que Etienne propõe, é fácil perceber que, na tirania e violência, não há amizade mas entre-temor. Em uma releitura minha, para sair de 1552:

O Dono do morro não dura mais do que o tempo que conseguir ser mais assustador em violência e possibilidade, do que aqueles que o servem, e que desejam sua morte e seu trono, em simultâneo.

Considerando essas idéias, fica mais claro o porquê de homens fisicamente fortes concordarem em se equivaler com homens mais fracos. Bem, pelo menos, boa parte deles. A “beleza” do Contrato Social está em propor que, ao abrir mão do Direito Natural, baseado na força que cada individuo é capaz de gerar, todo mundo ganha um Direito Cívil, legítimo por descender de ideais partilhados e onipresentes, defendidos e aspirados pela massa daquela comunidade.
É, também, tal troca que permite ao mais forte dormir como um bebê, sem temer que o mais fraco o assassine enquanto ele tenta dormir. Não há cúmplices porque o poder é entendido, assegurado e compartilhado por todos, e não mais imposto do mais forte ao mais fraco. Como a força não gera direito, matar que  tem mais do que eu, não me garante nenhuma vantagem sobre a minha vitima, já que desgraçarei minha imagem, serei encarcerado (ou mesmo, morto), e não vou ter conseguido tudo o que desejei, do mesmo modo.

Tudo isso, para dizer que a função básica do Estado é o monopólio da violência, como fonte, garantia e até mesmo ameaça para que cada um cumpra seus deveres, respeite direitos alheios e assim, possa ter seus próprios direitos garantidos e preservados.
Mas, se outras fontes, paralelas ao Estado legitimo, podem gerar a mesma ou ainda mais violência do que o próprio Estado, então, todo o sistema de garantia de direitos e cumprimento de deveres, corre o risco de implodir.
Como o cidadão(ã) não tem mais a garantia da proteção de seus direitos, sua lealdade ao Estado e ao Contrato Social é seriamente ameaçada, e ele passa a flertar com o retorno ao Direito Natural, já que este parece, ao menos, mais garantido do que aguardar por um Estado omisso que não virá resgatar a Lei e a Ordem de outrora.

146 mortos não são nada: O verdadeiro pavor está na disposição de cada um…

146 mortos em 10 dias? Isso não é nada. Nada. Estamos falando do país que, em 2014, matou 143 pessoas, diariamente, de forma violenta. 143/dia… 146 em 10 dias, capixabas? Isso não é nada para nosso record. E todos sabem como nós somos competitivos. Vamos lá, Espírito Santo! Vocês não estão nem tentando…

Mas, o verdadeiro pavor vem das cenas de saques, espancamentos, assalto de pessoas completamente vulneráveis, depredação da coisa pública, ataque aos meios de transporte: O horror do que se passa na sociedade capixaba está na disposição de grande parte de sua população em abraçar o caos social, como meio legitimo de ser e estar.

Para um país cujo o povo se gaba de ser pacífico e não estar em guerra, as cenas gravadas em Vitória dão conta de uma cidade na iminência da falência moral (não religiosa: mas, de olhar o próximo como alguém que poderia ser você e, daí, respeitá-lo, pelo simples exercício da empatia).
O silêncio era absoluto nas ruas, e o estado de depredação dos patrimônios era muito grande nas vias mais tradicionais do comércio capixaba, lembrando um local, pouco antes da tormenta, ou da invasão de tropas inimigas.
Igualmente tragicômico, para mim, foi o video veiculado na mídia, de um carro tocando “Imagine” de John Lennon, e projetando a palavra “Sem medo” em paredes, enquanto as pessoas gritavam “hurru”, por trás de grades e completamente apavoradas para pisar fora de suas casas (ou seria, “de seus cárceres”?). NADA contra a esperança. Mas, para o bem ou para o mal, palavras de ordem não corrigem a falência estrutural de medidas e políticas de segurança pública, e a erosão dos tecidos sociais do nosso povo. É, simbolicamente e na minha opinião, como tentar vender a imagem de um povo resistente e “raçudo”, por cima dos 146 corpos mortos, empilhados.

O maior pavor está na disposição malévola de cada cidadão. Claramente, muitos dos saqueadores não eram, até então, gente envolvida com roubos e furtos. O efeito mais nocivo dos eventos de Vitória para o imaginário do brasileiro (e, em algum grau desconhecido – por ora – no imaginário estrangeiro) é perceber que na falta de agentes fardados que façam o policiamento ostensivo (portanto, que é exibido com fins de manter o “fantasma” da punição no “radar” de cada um), qualquer cidadão brasileiro, mesmo aqueles sem passagem por crimes, se convertem logo à marginalidade, e implantam a imagem de um Estado em ruínas. Em pouco tempo, as ruas da capital do Espírito Santo, pareciam tiradas de cenas de filmes apocalípticos.
A central diferença é que, para meu completo pesar, a única praga devastando o local, não era uma horda de zumbis, ou uma raça alienígena, mas sim, o próprio povo que lá morava.
Um pequeno desequilíbrio no sentimento e na contabilidade/percepção do risco de sofrer uma sanção, e o brasileiro, mais uma vez, mostra o pior que pode ser.

E, se essa onda de paralisação afetou o Espírito Santo, por que não afetaria outros estados?

A Ameaça Fantasma…

By Tânia Rêgo/Agência Brasil [CC BY 3.0 br (http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/deed.en)], via Wikimedia Commons
Vitória (ES) – Clima de tensão durante protesto de moradores em frente ao Comando Geral da Polícia Militar do Espírito Santo em Maruípe. Militares do Exército fazem a segurança da região (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Eu já falei, por aqui, sobre o que penso quanto ao laço entre Segurança Pública e Nacional, e citei algumas razões que acredito explicarem o que há de errado com esse pilar da democracia, em nosso país. Não vou repetir aquilo tudo.

Mas, o que muito conterrâneo meu ainda não percebeu é que a situação das PMs, no Brasil, é um gigantesco barril de pólvora. E estamos brincando de acender e apagar o paviu, faz um tempo.
E o Espírito Santo foi, apenas, uma degustação do que pode vir por aí, se o governo federal não for capaz de cobrar dos estados o que a Constituição de 1988 os obriga (por exigência de seus antecessores [governadores] aos constituintes, diga-se de passagem):

  • Capítulo III – Da Segurança Pública
    • Art 144: (…)exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
      • §6 “As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
  • Resumindo: Segurança pública é dever regulatório e executivo da autarquia ESTADUAL, e não da União.
    • CURIOSAMENTE, como está ocorrendo no Rio de Janeiro, os estados, falidos, tentam empurrar a conta de sua incompetência para a União. E quem paga a conta do deslocamento  e manutenção das tropas, para estados onde a má gestão arruinou as finanças? O país inteiro.
    • Muitas pessoas dizem “onde está o governo federal que não intervém!?”, mas, por ignorância, ou por pura falta de noção de que políticas e manutenção de direito custam dinheiro, supõe que, como um pai, a União deve ficar acudindo estados que faliram por ingerência, tampando as consequências nefastas do populismo como ideal de gestão econômica, o tempo todo, em todas as ocorrências.

Muito mais por sorte do que por competência, a situação da paralisação policial ainda não se alastrou pelos estados falidos dessa nação, mas, o governo do Espirito Santo será decisivo na “jurisprudência” que deve ser utilizada para analisar outras eventuais paralisações de funcionários públicos tão críticos quanto militares estaduais, e que tipo de resposta, futuros movimentos similares devem obter se pressionar o governo de uma forma “indefensável”, dada a imensa gravidade da situação.

Mais do que isso, o tecido social brasileiro está fortemente desfiado. Temos um momento de muitas tensões políticas, uma total crise de representatividade com os políticos eleitos e sua distância das metas e das demandas de quem os pois lá, mais uma série de indicações duvidosas em cargos públicos, e tomadas de decisão ruins.

Os Policiais estão errados. Mas, a Sociedade também está…

Não há porque perder tempo, relativizando:  O artigo 142 da CF/88, §3, inciso IV, fala exatamente da proibição do direito de Greve ao Militar. Ponto. O crime, além de Constitucional, também é Militar, legislação muito mais “dura” em sua condução e aplicação, do que o Direito Penal “Comum”. Na verdade, e sem tornar eterno este artigo, afirmo que a militarização é uma das últimas amarras que faz a Polícia ostensiva brasileira trabalhar, mesmo sendo tão odiada e abandonada. Com certeza, um contra-senso para muitos que pedem a desmilitarização, mas, exigem que a tropa volte ao trabalho, imediatamente.

Além disso, a lei federal 7.783, que regula o direito à greve, é explicita ao dizer em seu artigo 11, que:

“(…)os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.

Em resumo, nenhum policial, militar ou civil, tem direito à greve como meio de reivindicação por melhores condições de trabalho, à luz da legislação brasileira vigente.

Não obstante à essa obviedade, ano após ano, assistimos à greves de Policiais Civis e Federais, além das “operações padrão”, que nada são além de uma “greve branca”, onde o servidor público bate ponto, mas não faz nada. No entanto, a parada dessas polícias, não causa efeitos tão visíveis quanto a paralisação da Polícia Militar.

Nunca vimos, em um passado um pouco mais distante, a paralisação de policiais militares. Pense em 10 ou 20 anos atrás, e notará que essa força, responsável pelo policiamento ostensivo, nunca parou de trabalhar, independentemente das condições oferecidas. O primeiro protesto grevista, pós-democratização, nesse tipo de organização, ocorreu somente em 2014, na PM da Bahia.

Temos uma Polícia Militar odiada pela população que ela deve proteger, abandonada à própria sorte quanto à investimento em materiais de trabalho (coletes balísticos vencidos ou fora das especificações, viaturas “baixadas”, esperando peças e sem nenhuma blindagem [muitos policiais morrem, no Brasil, só por entrar de viatura na “rua errada”] e armas que disparam com o simples chacoalhar do corpo, com dedo fora do gatilho), sem treinamento adequado e sem remuneração que justifique melhores recrutas.

Re-significando um artigo do Blog “Para entender Direito“, “se pagar bem a Polícia não garante sua qualidade, pagar mal é uma receita certa para o desastre”.

Para ficar no básico, um policial em São Paulo, treina tiro a cada 12 meses, se der sorte. Vários especialistas em Segurança Pública, no entanto, recomendam um treinamento trimestral, que, muito além de mirar em alvos de papel, e ficar cheirando a pólvora, deveria cobrir:

  1. Correção de falhas com ambas as mãos;
  2. Simulações de falhas de funcionamento de diversos tipos;
  3. Recarga tática e de emergência com qualquer mão;
  4. Manipulação de travas e mecanismos com as 2 mãos;
  5. Baixa luz e julgamento (tomada de decisão) de tiro;
  6. Disparo enquanto deslocando-se para o abrigo;
  7. Disparo com uma mão;
  8. Disparo e correção de falhas de várias posições de “policial abatido”;
  9. Enfrentamento de múltiplos alvos.

A primeira idéia que deve ocorrer em muitos que lerão isso é que “não devemos treinar o policial para ser mais letal, ensinando-lhe a ser melhor com armas de fogo”. E é por esse tipo de afirmação que acredito que engenheiros não devem fazer operações cardiológicas, e mecânicos não devem lecionar botânica.

Se cada um ficar no seu quadrado de competência, a sociedade vai bem mais longe. Supor que um policial é mais letal  por conhecer melhor o equipamento (e o framework que envolve o emprego desse equipamento) que protege sua vida, é o mesmo que supor que um piloto de fórmula 1 é mais perigoso que o jovem recém habilitado, nas estradas.

 Então, temos uma tropa que é mal recrutada (porque tem um salário que espanta qualquer candidato de nível melhor), mal treinada, odiada, tida como inimiga de boa parte da população, e alguém se espanta quando eles decidem parar? Para mim, o espanto é ter dado certo por tanto tempo, a despeito de tudo o que se constata em erro.

O rompimento entre Sociedade e Polícia é pra lá de cretino porque, nós, sociedade, deveríamos nos lembrar que abrimos mão do Direito Natural, por alguma razão (porque os tiranos são sempre mortos por sua “linha sucessória”). A Polícia é a realização da idéia de “Monopólio da Força/Violência” que faz o Estado ser respeitado, as leis, cumpridas, e os Direitos, individuais e coletivos, garantidos.

Se a Polícia é má, corrupta, ineficiente, é bom lembrarmos que ela não recruta estrangeiros (só brasileiros e, no máximo, nacionalizados), somos nós, sociedade, que  desprezamos seu trabalho, sua formação e importância, e nós que não ligamos se ela é sucateada e arruinada por iniciativas da gestão pública, década após década.

Em uma sociedade, como a nossa, que crê ter uma miríade de direitos, mas pouquissímos deveres, não é difícil entender como chegamos ao ponto em que estamos. Achamos merecer muito, sem fazer absolutamente nada, e vemos deveres de todos outros para conosco, enquanto só temos o dever de reclamar do que não temos. Mergulhados nesse egocentrismo, não conseguimos perceber o óbvio: O que explodiu em Vitória, foi só o que ocorre todos os dias, à meia-luz, e em becos escuros.

Mas, análogo a pedir um prato em um restaurante baiano, não importa quanto tempo demore, a conta sempre chega.
E se a piada lhe pareceu ofensiva, para mim, mais ofensivo é ouvir de alguém que se considera inteligente, que estaríamos melhor sem a Polícia.
Somente um louco que ignora a essência humana, em especial, a essência do nosso povo, pode propagar as bobagens de uma sociedade auto-regulada, como algo viável.
Na ausência de um Estado Uno, monopolizador da Força, o Contrato Social é rasgado; o tecido social é destroçado, e o país inteiro se torna um pesadelo ampliado, aos moldes exatos do que vimos ocorrer com o infeliz povo capixaba.
O extrato que forma nossa nação, sem o medo da repressão estatal, não é 1% melhor do que vimos em Vitória.

Do Povo, Pelo Povo, Para o Povo: A Violência é o melhor que temos à oferecer, uns aos outros?
O Espírito Santo parece dizer “Sim”.

Mas, por que – e, de novo – a França?

França: Território nas cores da bandeira e o símbolo de Luto por cima dele.
O território francês, nas cores da bandeira nacional, sob o símbolo do luto de uma nação que está, tristemente, se acostumando com o Terror. Fonte: Montagem própria com Wikipedia + Internet.

Começar o texto com uma pergunta que não pode ser respondida – ao menos, não com “‘A’ resposta certa” – não é a jogada mais inteligente…

Por outro lado, fazê-la, parece-me inevitável: Afinal: Mas por que, de novo, a França?

É preciso lembrar tudo o que já ocorreu – de ruim – no território onde os Gauleses viveram, e fazer menções à alguns aspectos que, talvez, e só talvez, possam explicar o porquê do Terror ter escolhido a França como seu novo alvo predileto.

O número de ataques à França não é pequeno. É o país desenvolvido, mais atacado pelo DAESH (ou ISIS, como preferir…), em todo o mundo ocidental, desde o começo da escalada do novo emissário do Terror.

O primeiro ataque da organização à França, ocorreu entre 7 e 9 de Janeiro de 2015, quando a sede parisiense da revista “Charlie Hebdo” foi alvo de 2 atiradores, os irmãos Kuachi, franco-argelinos, com pouco mais de 30 anos. Na mesma série, outro atirador na mesma faixa de idade, Amedy Coulibaly, tomou um comércio de donos Judeus. Ao todo, 17 pessoas foram mortas durante 3 dias em que a França ficou acuada e trancada, dentro de casa, enquanto as autoridades tentavam achar os terroristas.

Depois, em Fevereiro de 2015, um homem de 30 anos, esfaqueia 3 soldados que protegiam uma rádio Judaica em Nice. Sim, a mesma do lunático motorista do Caminhão da última quinta-feira.
Intrigantemente, o agressor tem o mesmo sobrenome do terceiro atirador da primeira onda de Terror. Não há divulgação concreta sob o parentesco dos 2 (mas, no caso da Charlie Hedbo, sabe-se que eram irmãos e nacionais descendentes de argelinos).
Sendo o primeiro terrorista capturado vivo (os 3 primeiros morreram), Moussa declara, em depoimento, “ódio à França, ao Militares, ao Governo, e aos Judeus e Infiéis”.

Após essas duas ocorrências, em Abril, outro Argelino, Sid Ahmed Ghlam, com visto de estudante, é detido em Paris, sobre suspeita de homicídio, e de estar preparando um atentado contra os trens da cidade, onde o objetivo seria “matar 150 infiéis, ou mais”. O alvo secundário era a Basílica Sacré-Coeur.

Mais tarde, em Junho de 2015, um homem é decapitado em Lyon, dentro de uma fábrica de combustíveis. O autor é o seu funcionário, Yassin Salhi, de 35 anos. Ele é nascido na França, com pai argelino e mãe marroquina. Depois da decapitação, envolto em bandeiras com símbolos do Islã, ele tenta explodir toda a planta, mas, sem sucesso. Foi capturado pelas forças policiais.

O ponto mais assustador é atingido em Novembro de 2015, quando Paris sofre uma série de ataques coordenados, com o pior ocorrendo na casa de Shows “Bataclan”. 130 pessoas foram mortas, e 350 ficaram feridas.
Salah Abdeslam, o único envolvido com o atentado a sobreviver nas buscas e confrontos policiais, se nega a comentar qualquer questão relacionada ao caso, após ter sido extraditado para a França, tendo sido capturado depois de uma longa operação no território belga. Com 26 anos, e de origem Belga, é o terrorista mais novo da lista, até agora. Com pais de origem Argelina, ele engrossa a lista de ligações com aquele país, e os atentados na França.

No mais recente episódio de Terror na Gália, o motorista Mohamed Bouhlel, tunisiano de 31 anos, atropelou e matou 84 pessoas (mais dezenas de feridos, em estado crítico), ao longo de 2 quilômetros, percorridos com um caminhão-baú, na Promenade des Anglais (Passeio dos Ingleses), onde a cidade de Nice comemorava a data histórica da Queda da Bastilha (14 de Julho) que é fundamental na história da Revolução Francesa.
O DAESH assumiu a autoria do ataque, mas, tudo ainda soa incerto. As fontes, versões e fatos vão se desdobrando, e os órgãos de inteligência ainda não sabem com quem Mohamed se relacionava, seus contatos no celular e no computador, e detalhes que ajudem a compreender a dimensão de seu ato.
Por ora, apenas um casal de Albaneses que ajudaram Mohamed com acesso à armamento, foram detidos, por SMS com conteúdo incriminador, trocado entre o marido e o Mohamed.
Entre a chance de blefe do DAESH, as alegações de algumas fontes de que trata-se de um ato de um desequilibrado mental que foi indevidamente capitalizado pelo grupo terrorista, nenhuma hipótese pode ser totalmente descartada, ainda.

Não vamos falar sobre os ataques em Orlando, San Bernardino, e Boston (EUA), Bélgica, Iraque e Turquia, pois, falar da França já rende assunto o bastante. No entanto, parece evidente a escalada da violência do grupo terrorista e, não somente, algo pontual e localizado.

Alguns analistas apontam que, embora o DAESH mire em todo o ocidente, a França, por ser simbolo das Revoluções que pavimentaram o Iluminismo, a forte crença de seu povo em valores como Democracia, República, e Laicismo, é um contraponto absoluto à tudo que o DAESH prega e deve ser destruída, como prova maior da determinação dos terroristas.
De maneira mais objetiva (ou menos simbólica), podemos citar o tratado de 1916, Sykes-Picot, assinado entre França e Reino Unido, que acabou com o império Otomano, criando fronteiras artificiais (de onde surgiram, por exemplo, Síria e Iraque), destruindo a base do sonho de muitos radicais, sobre um Califado que dominasse todo o Oriente Médio, por vezes, referido como Oumma (Comunidade de crentes).
Todos esses motivos podem ser a real causa do porquê Abu Mohamed Al-Adnani, porta-voz oficial do DAESH, disse, em 2014, “Mate com pedras, facas, ou seu carro (…) em especial, os sujos e desprezíveis franceses”.

Jovens, homens, 30 anos, nacionais, com descendência islâmica.

Não se trata de profiling (preconceito), mas, como eu identifiquei, ao longo da história recente dos ataques à França, existe sim, um padrão de “recrutamento”.

A esmagadora maioria dos agressores tem a origem na Argélia.

A Argélia é um país entre o Norte da África e o Saara, e já foi colônia francesa. A colonização não foi nada pacífica (a França invade a Argélia em 1830, mas só toma o território, por completo, no meio do século XX), e, para não chegar às 8000 palavras, eu vou resumir dizendo que houve um “mini-apartheid” aos moldes dos colonizadores holandeses, na África do Sul.

Só ao fim de vários conflitos é que a França estendeu direitos de cidadania aos Argelinos muçulmanos (por anos, eles não eram considerados cidadãos, e os índices de analfabetismo – por exemplo – eram agressivos para essa parte da sociedade).

A independência Argelina só ocorre no fim do século XX, e é pavimentada através de muito terrorismo. A guerra civil é uma realidade entre tropas francesas, a FLN (Frente de Libertação Nacional), e a  OAS (Organização do Exército Secreto).

A FLN representa parte da sociedade reprimida pelas décadas de opressão dos colonizadores, e o OAS é um braço radical do Exército Argelino, guiado por um general Islâmico, sendo que o terrorismo é a arma de ambos. Depois, OAS e FLN se enfrentam, com mais terrorismo.

Em 1962, Charles de Gaulle, presidente francês, se vê forçado a assinar armísticio com essas organizações, onde reconhece a independência da Argélia, e garantia de direitos aos franceses, ainda residentes na Argélia.

Ao fim do processo, apenas 1% de Cristãos restam no território e, o novo governo, formado pela FLN, edita decreto que restringe o culto ao Cristianismo, e a perseguição aos Cristãos começa. Terrorismo, como se percebe, é o triste meio pelo qual a Argélia é constituída, ao longo de sua história recente.

E a França está no epicentro disso tudo, por todos os seus atos e medidas com sua ex-colônia.

Mais que isso, o processo, em larga escala, contínuo, de imigração da região do Maghreb (o noroeste do continente Africano) para a França, e a criação de “ghettos” ao redor de Paris, onde essa população é “estocada” – na falta de palavra melhor – só aprofunda a gigantesca cisão com o sentimento de pertencimento desses indivíduos, dentro do território francês. Antes de supor a culpa dessas pessoas, é bom lembrar que a França bancou e patrocinou essa imigração, para fins de reconstruir a nação no pós-guerra, onde o país encontrava-se devastado pela ocupação alemã, e demais desdobramentos históricos.

A França é mais vulnerável ao terrorismo?

Difícil de responder (comparado à quem?), embora tudo indique que não.

A França é a quinta maior economia do mundo (PIB nominal), sendo a segunda maior, dentro da Europa.

A França também tem o terceiro maior orçamento militar do mundo. Mas, em contrapartida (para compreender o risco à que está exposta), também é o país mais visitado por turistas, no mundo todo. Por ano, são 82 milhões deles. Para ter uma idéia do que isso representa, a população regular da França é da ordem de ~65 milhões. Significa que, praticamente, “outra França + 1/3” entra e sai das fronteiras do país, todos os anos.

Como líder mundial, a França pode se orgulhar de ser uma das nações fundadoras da União Europeia, além de possuir a maior área e a segunda maior economia do bloco. Também ajudou a fundar a Organização das Nações Unidas, além de pertencer ao G8, ao G20, à OTAN, à OCDE, e à OMC.

Acredito que, diante do exposto, fica difícil supor que a França não invista valor considerável na manutenção de sua Segurança Nacional, ou que seja imatura em lidar com imigração, controle de fronteiras, e etc. Ela investe muito (o 2º maior investimento), e ela lida com um volume de estrangeiros, sem igual (sua própria população + 1/3).

Mas… O terrorismo nas fronteiras francesas, não é aquele “terrorismo regular”, hollywoodiano, que tanto nos acostumamos a imaginar com os filmes da década de 80 e 90.

Como o perfil dos agressores bem demonstra, a gritante maioria é de franceses (e não de estrangeiros, viajando com a missão de perpetrar os ataques, furando barreiras e controles de imigração…), descendentes de pais com outra nacionalidade (em especial, argelinos). Portanto, a guerra travada contra o terrorismo, não consegue gerar um “escudo protetor” no país, porque seus inimigos nasceram e estão lá dentro, desde sempre. Não há barreira ou proteção a ser superada.

Na minha opinião, a recente política externa da França, com fulcro na relação às suas colônias, começa a cobrar um alto preço. Especialmente, a forma como esses imigrantes foram tratados – renegados aos ghettos parisienses – parece gerar a condição perfeita de mágoa, não-pertencimento, frustração, segregação, e ausência de identificação com os valores nacionais, tornando esses indivíduos, alvos perfeitos para o recrutamento da organização terrorista, o DAESH.

O que pode ser feito?

Cansativo fazer um texto para o qual as respostas são vagas, ou imprecisas, e onde não há consenso.

O que a grande maioria dos cientistas políticos e professores de Lei vão dizer (não sem oposição respeitável e considerável) é o seguinte:

  1. A guerra ao DAESH precisa ser feita e levada, em seus territórios de domínio. Se colocar homens em solo, talvez (e só talvez, já que pode não haver real alternativa), venha a ser má idéia (como outras forças de ocupação já demonstraram ser, antes), continuar lançando bombas teleguiadas, não fará nenhum efeito na força do grupo terrorista. Não funcionou, até agora.
    A guerra precisará ocorrer porque, atualmente, o poder físico e territorial do DAESH mantém o grupo armado, alimentado, organizado, com moral e poderoso. A idéia de que o DAESH estava acabado, com os recuos no território Iraquiano, foi enganosa e descolada da realidade. Na verdade, a aceleração dos eventos de Terror, e o número de ataques, sugerem exatamente o contrário: O DAESH tem ficado cada vez mais poderoso e tem células em diversos países. Estima-se que, atualmente, o DAESH está atuando em 50 países, seja por meio de territórios dominados, ou países alvos de ataques.
  2. A guerra ao DAESH não se resume à ação militar. O DAESH criou um novo tipo de Terror, onde o agressor não atravessa fronteiras, mas, para desespero das autoridades, nasce e vive, desde o princípio, no seu alvo. Essa capacidade mobilizante, e de propaganda que atinge, principalmente, homens jovens, por volta dos 30 anos, residentes nos países-alvo, e com descendência de famílias de fé Islâmica, precisa ser estancada e combatida. O discurso e a retórica do DAESH precisa deixar de ser tão contundente nos corações e mentes dessas populações. E se é tão efetivo, é sinal de que essas populações estão desassistidas e isoladas da sociedade desses países; motivo pelo qual à mensagem é tão efetiva.

De um ponto de vista histórico, o radicalismo islâmico tem sido sustentado, muito por conta do abismo no desenvolvimento social desses povos. A miséria do indivíduo é justificada como fruto do seu distanciamento da lei de Allah.
A distorção do Corão – não obstante o fato que seu texto seja, por vezes, patrocinador da guerra abençoada (embora, ela possa ser interpretada, de forma light, como uma “guerra” só no campo da fé e das idéias) – para justificar a Jihad, tem o poder de arrebatar aqueles que estão completamente descrentes de uma chance de vida digna.
Vale dizer, também, que tal radicalismo não é exclusivo do Corão. A Bíblia do Cristianismo, em seu Velho Testamento, justifica atrocidades não muito distantes do que pregam os radicais do Islã.

A diferença é que o ocidente continuou seguindo em frente, e chegou no século XXI (com seus defeitos e qualidades, cabe enfatizar).
As sociedades do Oriente Médio, no entanto, parecem ter parado no século XI, e ainda vivem os dilemas e valores das épocas das Cruzadas européias: Sociedades com castas claras e intransponíveis, hierarquias familiares, e dogmas inquestionáveis, a submissão da mulher ao status de objeto e propriedade e, por fim; o triste conceito de que, em nome da fé, não há limite, nem ato que possa ser execrado, diante da aprovação de uma deidade – que, curiosamente, só pode ser ouvida por alguns indivíduos que nunca se matam, mas mandam outros para a morte.

Como fica a Rio 2016?

Quantas vezes já citei esse evento? Bem, pode parecer sensacionalismo, mas, não é brilhante, nem exige uma mente maligna e genial, perceber que o evento que concatena dezenas de países, será um alvo muito tentador ao DAESH e outras organizações que propagam sua ideologia pelo Terror (exempli gratia: Al-Qaeda).

Para se ter uma idéia, vamos à breve análise:

A Copa de 2014, no Brasil, teve ~350 mil pedidos de credenciamento, entre autoridades, delegações, jornalistas, profissionais envolvidos com os jogos, e etc.

A Olimpíada de Londres, em 2012, teve ~420 mil.

A Olimpíada do Rio, já tem 460 mil pedidos de credenciamento. Destes, 11 mil foram indeferidos.
E já sabemos: Nesse mar de gente, 4 deles estão, comprovadamente, envolvidos com o terrorismo internacional.

Não quer dizer que um ataque ao Rio é inevitável. Mas, quer, sim, dizer que o alvo interessa.

O Brasil e a Segurança: A barbárie será, um dia, só um capítulo de nossa História?

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Foto de Andréa Farias / Agência O Dia / Rio de Janeiro

Bar·bá·ri·e
sf
1 Multidão de bárbaros.
2 Ação própria de bárbaros; atrocidade, barbarismo, crueldade..
3 Hábito de bárbaros.
4 Falta de civilização; atraso, barbarismo, grosseria, selvageria.

– Michaelis Online

Bem, não é preciso ser genial para perceber: O Brasil é um lugar muito inseguro.

“Uau! Parem as prensas! Já foi muita revelação para o meu fraco coração…”. ¬¬

Bem, eu acho que preciso ser mais enfático, mesmo: O Brasil é um lugar muito inseguro, comparado à países em guerra… Acho que melhorou, (a compreensão da desgraça) né?

Segundo o Atlas (também conhecido como “Mapa”) da Violência de 2016 (curiosamente, você não vai achar o estudo no site do IPEA [o link está “quebrado”, às vésperas das Olimpíadas, mas, isso pode ser só mais uma teoria conspiratória infundada, da minha parte], contudo, ele foi encontrado aqui:
http://infogbucket.s3.amazonaws.com/arquivos/2016/03/22/atlas_da_violencia_2016.pdf), o Brasil perde 59 mil e 500 indivíduos para a violência, todos os anos, com base no ano de 2014. Não há – ainda – consolidação dos dados para 2015 e 2016, o que é esperado para um estudo de consolidação estatística, feito por um órgão público.

mapa-violencia
Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica e MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM

Em termos de taxa média, são 29,1 mortos para cada grupo de 100 mil habitantes, e isso é relativamente importante para não tornar o número, puro golpe midiático.

Explico-me: Se você mora em um país com 324 milhões de compatriotas (demografia dos EUA), a morte de 2.6 milhões de indivíduos por ano é absolutamente regular (dados, também, de 2014). Se seu país tem menos de 2 milhões de habitantes (como na Irlanda do Norte), por outro lado, 500 mil mortos anuais são 25% de toda a população – e seu país vai falir, ou ficar vazio (não necessariamente nessa ordem), em pouco tempo.
A taxa média nos ajuda a comparar laranjas com laranjas, e bananas com bananas, portanto.

Então, para te fazer perceber a estupidez do nosso número, aqui vai um TOP-5 macabro: Países com conflitos deflagrados (em guerra), os mortos em 2015, e a taxa para cada 100 mil habitantes.

País – População – Mortos em 2015 – Mortos/100 mil habitantes

Síria (Guerra civil[2011] + DAESH [ou “ISIS”]) – 17 milhões – 55.219 – 323,58

Afeganistão (desde 1978, em guerra) – 35.6 milhões – 36.345 –  102,09

Iraque (desde 2003) – 37.1 milhões –  21.433 – 57,77

Somália (em guerra civil, enfrentando insurgentes e engolfando até o Quênia, desde 1991) –  55.9 milhões* – 4.365 –  7,81
*Somália e Quênia somados, já que os mortos estão em todos os lados.

África (continente enfrenta o Boko Haram desde 2009) – 235.6* – 11.651 – 4.95
*Nigéria + Camarões + Níger + Chade somados: Todos sob ataque dos insurgentes.

Então, comparando a taxa nacional de mortes violentas para cada 100 mil habitantes, compensa continuar enfrentando o Boko Haram, ou morrendo de fome e na facada na calamitosa Somália. Você está mais seguro lá, do que aqui.

Em números absolutos, isso fica ainda pior. Nós matamos, violentamente, 59.5 mil brasileiros/ano. Isso é 7.7% acima do país com a guerra mais violenta no momento; a Síria. Portanto, matamos uma Síria por ano, mais 8% arredondados. Compensa, pelos 8% a menos de risco, ficar por lá.

E só ficamos “bem na foto” (se é que se pode dizer isto), pela média nacional… Se olharmos a taxa de mortos/100 mil habitantes nordestina, compensa (no, primeiro caso, por MUITO) ficar até mesmo no Iraque:

Alagoas: 63/100 mil;

Ceará: 52,2/100 mil;

Sergipe: 49.4/100 mil.

“Legal, estou convencido: Somos um país muito violento. Mas, o que tem de novo?”

Esse é, sem sombra de dúvidas, o maior problema: Não há nada de novo.

Sequer nos chocamos. Sequer nos apavoramos. Somos, enquanto sociedade, cidadãos, pais, irmãos, amigos, colegas; entorpecidos, anestesiados para “a Síria que morre” violentamente por ano, em nossa pátria. Melhor não citar “a outra Síria”, morta no trânsito brasileiro, anualmente, também.

A guerra do Vietnã durou 12 anos para os EUA (que entrou em 1963), e matou pouco mais de 58 mil norte-americanos. E o choque social dessas 58 mil mortes, ao longo de mais de uma década, pode ser sentido em movimentos sociais e frentes nacionais contemporâneos, ferrenhos em criticar a política externa norte-americana atual; horror e revolta provocada e mantida pela morte de militares, ao longo de uma Guerra de 12 anos e que já completou 36 anos de fracasso.

12 anos de combate. 58 mil militares mortos.

Matamos mais que isso por ano (crianças, mulheres, jovens e, não só militares [não que a vida de alguém valha menos, em função de sua profissão, claro]), sem remorso, sem susto, sem piedade, sem horror; conformados, calados, resolutos, resignados, apáticos… Nada mais nos comove, enquanto nação, enquanto sociedade civil; sociedade civil que é parte tanto da solução, quanto do problema.
Matamos sistematicamente, no que parece um macabro compromisso com a sustentação desses números, ano após ano, como se fosse um record a ser mantido e superado. Nosso maior desafio anual. Sabe como é: Com a gente, o negócio é deixar a meta aberta e dobrar!

Mas, “tristemente”, temos um desafiante nos destronando, e é hora de matar mais, porque o brasileiro não desiste nunca!

No momento, lamentavelmente, a coroa é da Venezuela com 90 mortos por 100 mil habitantes/ano. Oficialmente, o país que não está – declaradamente, ao menos – em guerra, mais violento do mundo.

Um tema pra lá de comum, quando esses números aparecem é:

“Ah, mas, no Brasil, a polícia mata demais! Quem mais morre são os negros, os pobres, os desassistidos e marginalizados!”.

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Foto: André Gustavo Stumpf – PM-DF

O mote, acima, tem uma porção de informações comprováveis, e outra porção de mitos, desinformação, e intenções questionáveis. Já adianto…

Verdade é que de 2013 para 2014, a letalidade policial subiu 37,2%.
Estima-se que ~3 mil pessoas foram mortas pelas forças policiais em 2014. Isso representa, no entanto 5% do total de mortes registradas no período. Embora pudesse ser perto de 0% e, embora possamos aceitar uma conspiração no sentido de que esse número está sub-notificado (aceitemos 10%, então, para a alegria dos opositores ao trabalho policial brasileiro; não obstante os dados de SP, RJ, sejam considerados realistas até por entidades ligadas à bandeiras típicas dos Direitos Humanos), ainda há que se falar em 90% dos 53 mil mortos, que não vêm da prática ruim do policiamento.

Mais: Para cada 4 pessoas mortas em confrontos com a Polícia, um policial morreu. A população do Estado de São Paulo? 43 milhões (segundo o SEADE). E a população da Polícia Paulista (PM, Civil, Cientifica)? 138 mil. Faça as contas da taxa por 100 mil, você mesmo, e diga-me quem deveria estar mais aterrorizado.

Também é verdade que jovens negros têm muito mais chances de morrer do que jovens de outras etnias (147% a mais, segundo o Atlas/2014). Mesmo considerando que mais da metade da nossa população é de negros e pardos (51%, segundo o Censo 2010), 147% a mais de chances, não é um número relativizável.

No entanto, o que se ignora é que educação é um fator preponderante de exposição à morte pelo crime. Grupos de jovens de 21 anos, de qualquer etnia e cor de pele, com menos de 7 anos de estudo formal, têm 16,9 vezes mais chances de morrer violentamente, do que aqueles que estudaram. Não é muito difícil supor, então,  que há uma grande abstenção escolar (maior do que nas demais etnias), entre os grupos de etnias afro-descendentes.

E, oras: Se mais da metade da nossa população é de negros e pardos, e se a Polícia “só” tem autoria em 5% (convencionamos 10%, para agradar os que acham o número sub-notificado), então é bastante provável que negros e pardos estejam matando negros e pardos, ou, o número de Carecas do ABC seja estrondosamente maior do que apontam as autoridades.
Brincadeiras (de mal gosto, eu sei; como os números que ignoramos) à parte, a guerra entre gangues rivais não é ficção. É a realidade periférica da nação.

Pedro Paulo Soares Pereira, “vulgo” Mano Brown, vocalista dos Racionais MC’s, em uma entrevista ao “Roda Viva” da TV Cultura, em 2007, declarou que para ele, o Brasil convive com 3 grandes enfrentamentos:

  1. Os ricos contra os pobres.
  2. Os negros contra os negros.
  3. Os brancos contra os negros.

Não obstante a minha discordância com os critérios dele para montar a lista, não posso negar que ele está muito mais envolvido com a conscientização do combate à violência, ao menos na periferia de São Paulo, do que eu estou. Deve, portanto, ter algum pesar em assumir essa consideração, tão triste para um líder (oficialmente ou não) do movimento de Consciência Negra.

Vou propor um rápido exercício: Só 5% dos 59 mil brasileiros morrem em confronto policial, então, pelo menos outros 50% têm que, seguindo a lógica, ser fruto do confronto entre os próprios criminosos. E outros 45%, imagino, entre criminosos e população. Não há, no estudo, números separados por “criminosos mortos” e “pais de família mortos”.
Toda essa divisão (exceto pelos 5% mortos pelas forças policiais), é arbitrária, claro.

Logo, tirando o que é morte por confronto com a polícia, não temos como saber quem morre mais:  Cidadão por bandido, ou bandido por bandido.
Então, antes de mais nada, longe de ser “bonzinho e amável”, o brasileiro é um indivíduo violento, só pela simples reflexão dos números expostos, até o momento, e sem falar da violência estatal.

Para dar “mais alento” à todos nós, fica o “calmante” de que para toda a criminalidade registrada nas delegacias, não são apurados mais do que 8% dos crimes.
Desses 8%, 2% são homicídios.

Eu vou diminuir – só um pouco – nossa vergonha, e não vou contabilizar o fato que juntando a estatística de mortos pela violência, e do mortos no transito brasileiro, matamos 2 guerras da Síria/ano.
Em resumo, sem falar de doenças, velhice, acidentes domésticos (todos estes, grandes ofensores da mortalidade nacional), só o crime e o trânsito superam os 100 mil mortos por ano, com facilidade e margem folgada.

A Segurança Pública como um “braço” da Segurança Nacional.

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Foto: Wikipedia.org – Forças Especiais em revista, no 7 de Setembro.

O capítulo “Segurança Nacional”, no Brasil, é bem complicado, controverso e feito de avanços e atrasos mensuráveis em décadas, em atos sub-sequentes.

Por “Segurança Nacional” quero significar aquela que se faz para proteger a Nação de agressores externos e internos, quanto aos interesses do Estado que, por sua vez, representa a sociedade que o empodera, e os interesses desta última, deve defender.

“Segurança Nacional” ≠ “Segurança Pública”

A Segurança Pública, de acordo com a nossa Constituição (art. 144), é assunto destinado aos estados. Daqui, já desdobra-se um dos efeitos dos anos de Ditadura: A desconfiança dos estados, em relação a uma Federação (União) intervencionista, levou os constituintes a garantirem a autonomia estadual quanto ao assunto, no Pacto Federativo.

Portanto, a organização, investimento, e políticas públicas que pautam as polícias civis, militares e órgãos correlatos, é do Chefe do Executivo Estadual (Governador[a]). Já a Polícia Federal é de responsabilidade do Chefe do Executivo Federal (Presidente).

Assim, temos essas situações bizarras de um Estado informatizando suas delegacias e interligando sua polícias com GPS, sistemas de câmera e OCR de placas de carro e etc. (SP), e um Estado onde as novas turmas de Policiais Militares são dispensadas ao meio-dia, todos os dias, por falta de dinheiro para pagar o almoço dos alunos (RJ). No entanto, mesmo sem a carga horária esperada, pode apostar que estes últimos estarão nas ruas, sem nenhuma reposição da carga perdida.
É claro que, sob a lupa, nem SP, nem RJ, têm seriedade no investimento (não só de verba, mas de qualidade e planejamento) que fazem para a Segurança Pública. Mas, essa “liberdade administrativa” total, gerou um desequilíbrio difícil de transpor, aprofundado por anos, e que gera aquele triste mapa do começo desse artigo.

A Segurança Nacional, no entanto, é uma política muito mais abrangente, e essencialmente, mais militarizada.
Segurança Nacional que, aliás, inexiste em nossa lei Federal, e muito menos na Constituição.
Não vou contar a longa história (acreditem, é bem mais longa do que vou expor). Vamos ficar com a curta:

A idéia de “Segurança Nacional” aparece, no Brasil, no pós Segunda Guerra Mundial. Especialmente, os militares de carreira com grau de oficialato, foram mandados para os Estados Unidos da América que treinou e ensinou o conceito norte-americano nesse assunto.
É bom contextualizar que o pós WW-II, é o começo das tensões entre URSS e EUA, e isso leva às páginas da bem conhecida Guerra Fria. Assim, os EUA, abertamente, ajudaram países a “resistir” ao avanço comunista, e esse programa de treinamento de militares era uma das faces desse portfólio.

Dessa leva de militares de carreira, formados nos moldes das escolas dos EUA, nasce a ESG (Escola Superior de Guerra), instituída pela lei 785/49, e diretamente ligada ao Ministério da Defesa.
Não respondendo á nenhuma das 3 forças armadas, mas, formada por todas elas, a ESG tem a missão atual de prover Altos Estudos de Política, Estratégia e Defesa, sendo um órgão de puro desenvolvimento Acadêmico (inclusive para civis), e não tendo desenvolvimento de táticas e exercícios militares práticos em seu currículo. Puras estratégia, política, diplomacia, e inteligência compõem a grade dos cursos.

A ESG tem uma história muito polêmica, pois, era considerada uma Escola de formação do pensamento conservador de Direita. É dessa escola que surge o embasamento para o Ato Institucional nº 1 que, entre várias medidas arbitrárias, tem a agressiva medida de mudar a eleição presidencial para o modelo indireto, colegiado (embora as pessoas apenas se lembrem do nome “AI-5” [que não é uma divisão ou um grupamento, mas, uma lei], é o AI-1 que inicia, legalmente, a ditadura no Brasil).

Mas, é também essa linha de pensamento que fundamenta a ESG, que fundamentaria o capítulo de Segurança Nacional da Constituição de 1946, e mais tarde, a própria ESG aumenta o entendimento de “Segurança Nacional” na CF/1967 (inclusive, com pena de morte para os crimes contra ela),  e que estabelece os padrões de atuação, engajamento, e estruturação da proteção Nacional, bem como dos órgãos de inteligência, como o finado SNI (Sistema Nacional de Inteligência), sendo um órgão que, a despeito do seu triste emprego ditatorial, era muito avançado e organizado.

Com a redemocratização brasileira e, tendo em vista a grande fobia militar dos constituintes de 88 (que excluíram o capítulo de Segurança Nacional, e substituíram pelo atual capítulo III, “Segurança Pública”), culminando com a ascensão de Collor, em 1990, o presidente (que viria a ser impedido) decreta o fim do SNI. O fim do órgão não é só um momento de vácuo administrativo e executivo, mas, gera tal desordem na Inteligência brasileira que os operadores do Sistema deflagraram uma crise (que ficou conhecido como Escândalo dos Arapongas, na década de 90) onde espionavam candidatos e oposição, a serviço dos poderosos de Brasília.

Atualmente, o termo “Segurança Nacional” aparece apenas uma vez na CF/88, e sequer dá-se o tom do que ele significa para nossa Nação e para a própria lei. É mera citação, vazia e sem contexto.

Como não temos Segurança Nacional – nem o conceito, nem a lei, nem “nada” – as idéias são difusas, espalhadas, pontuais. Não há um grande plano, esquematizado, construído ao longo dos governos, e incrementado conforme a evolução do cenário global, das ameaças regionais, e dos objetivos do Estado Brasileiro. O que interessa é o agora. O que interessa é a Urna, no próximo turno.
E que Deus salve essa terra, de seus inimigos e vilanescamente interessados. Porque nós, povo, não temos nenhum compromisso respeitável com esse capítulo.

Para não passar total vergonha, podemos citar o SISFRON, projeto elogiado e estudado em países como os EUA, patrocinado e mantido pelo Ministério da Defesa Brasileiro, e que junta um tripé de vigilância, inteligência, captação e triagem de dados e informações, mais o emprego de grupamentos e equipes especializadas, nas áreas de fronteira mais perigosas do Brasil.
Atual e lamentavelmente, o programa só existe na fronteira com a Bolívia e Colômbia. Devido ao forte “tremor” político, o programa perdeu espaço, pauta, destaque, investimento e orçamento.
Seu futuro é, agora, incerto. Mesmo sendo internacionalmente elogiado, o programa que seria um grande aprendizado à Segurança Nacional, não tem prestígio em uma Nação onde população e políticos, só sabem discutir segurança de uma maneira remediativa, pontual, midiática e sensacionalista.

A ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) que foi recentemente instituída no ano de 1999, por FHC, tem seus acertos e melhorias, mas, não é preciso ser genial para saber que inteligência – do ponto de vista militar – é algo mantido com dinheiro. Inteligência não dá votos, em um país que não tem nenhum interesse no assunto.

Afinal, como todos sabem– e se não sabem, não deviam falar com a propriedade que demandam, sobre o assunto – o crime organizado brasileiro é totalmente baseado no tráfico de drogas e armas.
O “senhor do crime e seus asseclas”, nos morros desse Brasil à fora, não mantém seu controle com pistolas .380 (as únicas à disposição da população para auto-defesa, de forma legal) mas, com armas que, por vezes, sequer o Exército brasileiro possui.
A porosidade da nossa fronteira é conhecida para qualquer um que acompanha as apreensões de drogas e contrabando em geral. São dezenas de toneladas anuais.
A droga é a mercadoria do Morro. E a droga é a moeda que faz o caixa, o capital do crime. E a droga não é feita aqui (via de regra).

Então, quando pensamos em Segurança Pública de qualidade, ela é, na verdade, uma necessária decorrência de uma política séria, embasada, e de longo prazo, sobre o assunto “Segurança Nacional”. Sufocamos o contrabando internacional, e as drogas param de abastecer os morros, e as armas de longo alcance ficam sem munição e reposição.

Já vimos que, como programa, projeto de Estado (e não de governos que se sobrepõem e se recusam a continuar as idéias boas dos antecessores) a Segurança Pública é minada pela “liberdade administrativa”, como me referi, anteriormente.

E agora, com a completa ausência de um plano previsto, elaborado e amparado em lei, para falar em Segurança Nacional e começar a combater a origem do dinheiro do crime (as drogas que entram por todas as fronteiras nacionais), e a força que este emprega em sua manutenção territorial (as armas de grosso calibre e letalidade de “nível militar”, também, “imigrantes” em abundância, via fronteiras), fica bastante claro que a solução para a violência, no Brasil, está muito, muito distante.

O Brasil, diante das Olimpíadas, e a missão aterradora de fazer um evento pacifico, diante das ameaças do DAESH, e de uma ameaça bem mais presente: O crime do Rio.

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Colagens do DAESH, Comunidades do Rio ocupadas, e os Anéis das Olimpíadas. Imagens com reuso e modificação, para fins não-comerciais, autorizados.

Não quero me estender nesse tópico, mas, sinceramente, como um dos futuros expectadores dos Jogos, estou severamente preocupado com as Olimpíadas do Rio, a iniciarem-se em 4 de Agosto de 2016.

Mais do que com minha própria segurança, não consigo deixar de ver a falência de estratégias de Defesa e Segurança Nacional com décadas de bagagem, como é o caso da França, da Turquia (esta que, ao contrário da Europa, vive com a violência terrorista há muito tempo) e pensar: Como um país tão imaturo em, praticamente, tudo… Estamos prontos para enfrentar as ameaças externas e internas, à segurança e integridade de um “mini-mundo” a estadiar no Rio, pelos próximos 2 meses???
A França acaba de sofrer mais um atentado em seu território, e não faz nem um ano do Massacre na Casa de Shows de Paris. A Turquia lida com carros-bomba, regularmente. A estratégia de Defesa e Inteligência das duas nações (em especial, da França), está ano-luz do que engatinhamos por aqui. E não foi suficiente.

O Chefe do Estado Maior, Almirante Ademir Sobrinho, fez questão de demonstrar profunda tranquilidade com as informações disponíveis, e ratificou que as agências norte-americanas, europeias, e até Israel, trabalham ativamente com a ABIN e as Forças Armadas brasileiras, para detectar qualquer ameaça aos jogos. Mas, saberia a CIA, ou o Mossad, como monitorar as favelas da Maré, ou o Complexo do Alemão?
A pacificação do Rio falhou, miseravelmente, e basta ver o resgaste cinematográfico, recentemente perpetrado no Hospital do Rio, ver as faixas das organizações Policiais no saguão dos aeroportos, mais as recentes declarações de Eduardo Paes à jornais estrangeiros, para saber que, não: Não está tudo bem.

Polícia Interligada, Inteligência, Melhor armamento, Treinamento… É isso? Essa é a solução para a violência cotidiana, no Brasil?

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Foto: Wikipedia.org – Criança em lixão no Distrito Federal.

Não… Infelizmente, diferente dos vídeo-games de simulação, colocar delegacias, aumentar a verba da Segurança (Nacional e/ou Pública), abrir acadêmias de Inteligência… Nada disso; nada disso resolve o índice de “sucesso” do crime no Brasil.

A teoria básica para um Estado bem-sucedido, é fundada em três pilares:

  • Educação Pública, de qualidade, do fundamental ao médio (procurem os dados da nossa performance no PISA; é para morrer de desgosto).
  • Saúde Pública, Universalizada, ou, pelo menos, saúde privada, plenamente acessível (procurem o teste que o SUS idealizou [IDSUS] e em que ele mesmo não passou).
  • Segurança, em toda a sua complexidade e dimensão (releiam o post :-p ).

 

O Brasil é péssimo, em todos esses aspectos. Quero ver algum contra-argumento. Sério: Quero ver. Por favor, me animem com alguma boa notícia, em algum desses temas… É sério: Vou ficar grato.

Quando penso nas fileiras de candidatos às carreiras das Ciências exatas (famosas por gerar tecnologia, patentes, indústria, empregos)…
Quando penso no perfil estudantil da maior parte dos candidatos às carreiras de professorado (os piores alunos são esmagadora maioria dos que querem lecionar, no Brasil)…

Mas, principalmente, quando penso nos salários das profissões disponíveis para quem tem uma escolaridade tão triste, como a grande maioria da periferia… E comparo com o dinheiro (e o poder) que o tráfico e o crime oferecem à todos eles…
Colocando-me nos calçados (quando tem) de um menino, cujo pai é inexistente, e a mãe é uma viciada em crack; frequentando uma escola falida, com uma quadra esburacada, livros didáticos com erros de matemática, português, grafia de palavras… Professores com dificuldades de ler e compreender um texto…
Quando penso nesse menino… Nessa menina… Não consigo ver como pode o Estado Brasileiro; como pode a lei brasileira do Estado legítimo, ser o caminho escolhido para trilhar, desse futuro “projeto de problema social”.

Não: Não estou a fazer NENHUMA abonação, atenuação, ou sequer relativização sobre o certo e o errado: Obrigação de cada cidadão é de fazer o bem e ponto, independente da história de vida, pois, não existe Estado; não existe Nação, não existe nenhuma dessas construções sociais, sem a presença de cidadãos responsáveis, honestos, dedicados ao bem; exatamente o que esperam do país em que moram.

Mas, isto tudo dito e ratificado… Insisto que, não vejo como convencer um jovem engolido por esse mundo nefasto em que nasceu e cresceu, e como convencê-lo da validade de jamais desistir do bom caminho.

Afinal, diante da total privação de esperança, o homem deixa de temer o mal.

Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois, quem não espera o bem, não teme o mal.

– Nicolau Maquiavel