A entropia do Brasil

Meia-noite. Primeiro minuto do dia 30 de outubro de 2022. O último domingo de outubro, conforme comanda a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, em seu artigo 77. Hoje, se faz História em meu país. Para o bem ou para o mal.

Falando em tempo, existia um mundo antes das 9h46 a.m. (horário de Brasília) do dia 11 de setembro de 2001 (uma terça-feira), e um outro mundo eclodiu, depois. Talvez, a depender do ano em que você nasceu, você sequer seja capaz de entender como aquele minuto mudou a história do Ocidente e, por consequência (poderíamos ficar apenas no aspecto político-econômico), a história do mundo.

Eu já falei “bem” sobre entropia. Quer dizer, eu já expliquei por aqui o conceito da termodinâmica, porcamente. Para quem não tem tanta disposição, segue a versão de uma frase: entropia é a medida pela qual se avalia a desorganização de um sistema. Qualquer sistema. O exemplo do jarro com bolinhas coloridas; vermelhas, do fundo até a metade; azuis, da metade até perto da tampa: você chacoalha o jarro, as bolinhas se movimentam e passam a se misturar. Quanto mais você chacoalha, mais elas se misturam. O tamanho dessa “desorganização” em face do sistema originário é a entropia. Um ponto central da entropia em sistemas reais é que, não importa o quanto você “balance a jarra” (interfira no sistema), o sistema não voltará ao estado original em que todas as bolinhas estavam separadas “organizadamente”.

Porém, a entropia não deve ser confundida com “bagunça”, sob o risco de se supor que tudo é melhor “na origem”. Ora, não fosse a “entropia” do óvulo fecundado no ventre da senhora sua mãe, tudo ficaria exatamente como estava no início daquele novo sistema (você, o “pra sempre girino” [zigoto]).

Seja como for, o Brasil – como quase tudo que existe – pode ser lido como um sistema. Na realidade, um sistema de sistemas; quase infinitos sistemas. Sistemas geológicos, sistemas biológicos, ecossistemas, sistemas de povos, de cultura, de economia, de política… Enfim… Sistemas… E todos eles passam por entropia.

É difícil fazer previsões, mas soa razoável supor que hoje, às 21h (também de Brasília), já saberemos o resultado das eleições gerais de 2022. Isso porque são menos votos (na maior parte, só para Presidente; apenas doze estados terão segundo turno para governador), e também porque é razoável esperar que a Justiça Eleitoral tenha aprendido com as lições e motivos que tornaram o primeiro turno mais lento (biometria, transferência de dados, processos…). Quer dizer que, em mais ou menos vinte e uma horas, nós poderemos medir a nova entropia do Brasil, enquanto sistema sociopolítico.

As decisões que os eleitores consagrarão nas urnas, hoje, percutirão efeitos importantes no jarro de bolinhas que é o Brasil. Por outro lado, como sistema real que é, o jarro do Brasil não está com a tampa fechada. Algumas bolinhas caem, outras entram. O sistema funciona, ora sob regime hermético, ora sob forte influência dos ecos de outros sistemas. Isso bagunça um bocado com as leis da termodinâmica e, consequentemente, com o conceito de entropia. Então, vamos mudar. Vamos pros comunistas 😈!

Foi Marx (calma, respira… não é sobre o seu temido comunismo, hoje, eu prometo) quem concluiu, após analisar a frase original de Hegel, que a história se repete duas vezes: uma como tragédia, outra como farsa. “Tragédia e Farsa”, no contexto em que Marx escreve, estão ligadas aos gêneros de teatro grego.

A tragédia grega é, bem, … trágica. A característica desse teatro é, basicamente, que o protagonista já inicia sua jornada em meio a tensões e incertezas e acaba infeliz e cercado por tragédias. A peça de “Édipo Rei”, que (spoiler alert) atravessa o mundo para não acabar casado com a própria mãe, graças a uma maldição por ter cometido parricídio, e ainda assim com ela se casa, é um exemplo clássico (em todos os sentidos) desse gênero teatral.
Já a farsa, no teatro grego, é o humor em sua forma mais escarnecida. A farsa não tem real compromisso com filosofias, discussões e críticas sociais (bem mais caras ao humor “moderno”), de valores morais ou (a)temporais. O objetivo real de uma peça de farsa é a gargalhada. Aristófanes é um autor famoso do estilo, e sua peça Lisístrata (ou “A greve do sexo”) é igualmente conhecida no gênero.

Portanto, quando Marx diz que a história se repete (como afirmou Hegel), adicionando que uma vez como tragédia e outra como farsa, o que ele queria explicar é que da primeira vez, os fatos históricos “inéditos” de uma nação são intensos, reais, vividos à flor da pele. Na segunda vez em que esses fatos ocorrem, são caricaturas, arremedos, uma cópia, uma emulação do que se deu no passado. O Brasil está diante de uma farsa. Ou melhor, estamos diante da farsa da farsa da […], pelo menos se recortarmos o arco histórico desde a Proclamação da República, em 1891.

Getúlio Vargas foi o primeiro, desde o fim do império, a realizar um golpe de Estado, concluso em 10 de novembro de 1937. Numa sociedade brasileira que via, com a mesma ojeriza típica que vemos hoje, o comunismo crescendo na Europa pós primeira-guerra e sendo Getúlio um admirador do Fascismo italiano que eclodia com força, desde 1919 naquele lugar, foi fácil falar em “nacionalismo, anticomunismo, valores nacionais”. Sim, você já viu esse filme, recentemente.

Depois (bem depois), em 2 de dezembro de 1959 (uma quarta-feira), um avião da Panair (vixe… faz tempo…), com políticos a bordo, foi sequestrado por brasileiros militares e terroristas que, admiradores cegos do populista Jânio Quadros (o “Vassourinha”), planejavam um golpe de Estado usando armas, explosivos, reféns de renome, aviões furtados da FAB […] para pavimentar o caminho para o grande líder. Em seu manifesto, os terroristas alertavam o povo brasileiro de que “o comunismo estava infiltrado em diversos segmentos da sociedade, incluindo o setor público. Havia corrupção das lideranças políticas, em especial no Executivo, além da omissão do Judiciário e do Legislativo” … Já viu essa ladainha? Pois é…

Jânio, eleito em 1960, renunciaria em 1961, com seu famoso discurso sobre as “forças ocultas”, e não esperava nada menos do que a recondução ao Poder (como confessou ao parente), após a renúncia, nos braços do Povo e dos Militares, para encontrar-se com um novo Poder, agora ilimitado. Tanto que renunciou, não sem querer, no Dia do Soldado, 25 de agosto… Deu errado. E deu TÃO errado, que a crise iniciada por Jânio, na renúncia, fundou as bases para o Golpe de 1964.

Aliás, lembra aqueles militares que sequestraram o avião da Panair com os políticos brasileiros dentro? Sim, eles foram anistiados por Juscelino Kubitscheck no mesmo ano do terrorismo perpetrado. E quer saber se eles ajudaram no Golpe de 1964? COM CERTEZA… Hehe… Ah, História… Você ainda me mata…

Tem ouvido falar em anistia para Bolsonaro e sua quadrilha trupe, especialmente da boca de um vampirão que aprontou altas confusões com uma turminha do barulho em 2017 e 2018? Pois é…

Teve, ainda, o nosso eterno caçador de marajás. Ah sim… O bonitão, herói-antissistema. Que confiscou a conta-poupança de toda a gente, e fez uma porção de brasileiros cometerem suicídio (sem brincadeira). Sim, o nosso primeiro presidente impedido, que andava demais pela casa da Dinda… “Pois é” outra vez…

Hoje, o Brasil, LAMENTAVELMENTE, não discutirá projetos, nem visões de política, governo ou sociedade. Hoje é sobre Civilização vs. Barbárie. Sim, não há qualquer exagero na afirmação. Viu Zambelli apontando uma quadrada na cara de um opositor político que não pediu perdão “por existir”? Como ele ousa afirmar que ela está errada? Viu o boletim de ocorrência onde ela narrou que “usaram um negro para agredi-la”? Isso é só uma pequena amostra de como se comportam os Camisas Negras tupiniquins de Bolsonaro. “ANAUÊ!” … Já ouviu ou leu essa palhaçada de “anauê” por aí? Pois é³…

Já se disse muito sobre o paradoxo da tolerância de Popper, e não vou esganiçar esse velho tecido que, a bem da verdade, nem foi muito desenvolvido por Karl. Ele propôs, mas não aprofundou.

O que você precisa saber para poder tomar a única decisão certa que restou, é que diante da barbárie, suspendem-se pontos de vista mais ou menos alinhados, e preferências por modelos e pensamentos econômicos vão para segundo plano. É exatamente por isso que gente que não tem nada a perder ou a ganhar com Bolsonaro, gente como FHC (um senhor, rico, velho, realizado), Pérsio Arida (economista responsável pelo plano Real e fortemente criticado pelo PT à época), Joaquim Barbosa (ex-Ministro do STF, ferrenho [mas justo] “juiz” da Ação Penal n°470 [o “Mensalão”]) estão todos apoiando o mesmo candidato. Eles e, claro, MUITOS outros… Pessoas como João Amoedo, como Simone Tebet, como Marina Silva… São tantas visões conflitantes no mundo da política, economia, sociedade… E, ainda assim, fechados em torno do nome de Luís Inácio Lula da Silva.

A razão desse apoio deles respeita a sabedoria da Navalha de Occam: Entre duas teorias que explicam igualmente os mesmos fatos, a mais simples tende a ser a correta. E quais são as teorias? Uma teoria é de que essa gente toda, com todo o currículo, vida pública, e história que tem, está do lado do “Ladrão de 9 dedos, comunista, da mamadeira de piroca e banheiro unissex, porque são satanistas, fechados com o islã [acrescente aqui a sua paranoia] e odiosos da família brasileira”. A outra teoria é “porque reconhecem que, com todos os defeitos, Lula é um ser humano e é um político bom, enquanto Bolsonaro não é nem um, nem outro”.

E esse é o ponto central: Eu divirjo de Lula no campo político-democrático. Falei sobre isso, ainda na quinta passada. Mas eu divirjo de Bolsonaro no campo do que é ser um ser humano. Eu divirjo com o “mito” (que apelido apropriado para alguém que mente o tempo todo) no andar de baixo da vida política, divirjo com ele no campo da civilização vs. barbárie. Não há doutrina política, no campo da democracia, que tolere “exterminar os adversários”, rir de gente sufocando na UTI, sentir um clima com menores que acabaram de entrar na puberdade… Eu vou parar por aqui, não porque faltam horrores para seguir, mas porque ele e seus fiéis seguidores têm pouca ou nenhuma vergonha de tais ocorridos.

No fim eu sempre soube, entristecido, de que “prego para convertidos”. Quer dizer, qual a chance de um bolsonarista alucinado ler este blog? Na real, eu atinjo um público tão, tão pequeno, que é difícil justificar racionalmente o porquê eu escrevo. A razão – que não é razão – acaba por ser sentimental. Esperança. Esperança de um cético. Esperança de que, sei lá… Aquele cara ou aquela mina, indecisos, morrendo de medo de Lula, seja por motivos fundados (corrupção, conchavos, ideologias), seja por motivos infundados (comunismo, mamadeira de piroca, banheiro unissex […]), acreditam que Bolsonaro é o mal menor… E podem cair aqui…

Eu estou aqui para garantir a você, como uma pessoa que nunca votou no PT antes de 2018, quando foi preciso ir contra Bolsonaro: Lula ainda é gente. Ainda é um político minimamente alinhado com o pensamento democrático (aquele sistema lá que garante que o seu vizinho mais forte não tenha paz, caso decida tirar sua vida pra ficar com sua propriedade e comer sua mulher, e zas e zas…). Lula ainda opera sob lógicas previsíveis de como um político atuará. Bolsonaro é o cachorro-louco. Comandou o Brasil como o moleque comanda a vendinha de limonada. Pode estar aberta, pode estar fechada, pode passar a vender cataventos com a mesma velocidade que pode sair do mercado. Isso NÃO É BOM para seu país. Essa governança desastrada, errática, imprevisível, personalista… Isso é PÉSSIMO para o Brasil. E eu nem falei do “efeito Bolsonaro” na sociedade. Estou falando só de razões e lógicas para não dar outros quatro anos para que ele termine de quebrar a banca. E ele vai. Prometo a você que ele vai.

No lado humano, existencial, Bolsonaro é o oposto do Cristianismo que a raça humana conheceu no século XX (e XXI). Talvez, no século XII, durante as Cruzadas, Bolsonaro fosse tratado apenas como “um homem de uma fé cristã um pouco aguerrida” … Estupra em nome de Deus, enfia a espada no bucho em nome de Deus, taca fogo na aldeia em nome de Deus… Mas, não chegaria a assombrar seus contemporâneos de idade média. Na releitura de um Deus de amor, que é feita na modernidade, no entanto, Bolsonaro não se encaixa como Cristão. Se ele é Cristão, o Satanismo é a salvação de todos nós (por ser o oposto da religião do grande líder, eu suponho).

Repito: talvez você esteja fora de órbita tempo o bastante para não saber que sua adida, Carla Zambelli, reeleita para deputada federal por SP (por que, SP? 😢), sacou uma arma na região central de São Paulo, capital, e perseguiu um homem de visão política oposta à dela. Alegou, em boletim de ocorrência, mais tarde, que teriam “usado um negro” para agredi-la. Está vendo? Não é sobre política com essa gente. É sobre humanidade. E é sobre barbárie. E eles querem dar continuidade ao governo onde está tudo bem que pessoas saiam por aí, apontando pistolas na cara de quem os irrita ou incomoda.

Ao votar 22, por medo de Lula, você, querendo ou não querendo, diz para eles, com o poder de anistia que seu voto carrega, que o terrorismo deles é bem-vindo na sociedade brasileira. Concordando comigo ou não, ao votar 22, você acredita que para chegar aonde você quer chegar, tudo bem empilhar alguns corpos no caminho, inclusive literalmente. “Se não tem outro jeito”, não é mesmo? Acontece que tem outro jeito. Eu estou afirmando que tem.

O mais triste é constatar, abestalhado, que eu conheço uma grande parte desses votos no 22 que não vêm do esgoto em forma de gente que Carla Zambelli é e ratificou ser, na tarde de hoje. Muitos, como eu disse, só tem medo e paúra do que Lula representa no imaginário de cada um deles. E estão achando que Bolsonaro é o mal menor. Análise equivocada, repito.

Quer dizer: como votar e reeleger “um ladrão condenado por corrupção”? Eu não vou contestar a tibieza desse ponto. Vou jogar com sua premissa. Lula é um ladrão. Ok. Do outro lado, temos um terrorista que (supostamente) planejou explodir batalhões do Exército, por não aceitar o salário. Também, um sádico (sem suposições) que riu de gente morrendo asfixiada. Também, um (suposto) “normalizador” de relações entre velhos de 70 anos e garotas de 14 (olha o tamanho da acrobacia que faço para não o chamar daquilo que ele [não eu] deu a entender que é). Também, um xenófobo que quer mandar em todos os brasileiros, mas tolera – eu não consigo imaginar que Bolsonaro goste de ninguém a não ser dele – só uma pequena parte deles. Ah, e também é o chefe de uma família muito unida e muito ouriçada que só comprou [ao longo do tempo] cinquenta e uma propriedades usando dinheiro vivo, no todo ou em parte… Ainda bem que ele não é corrupto, para além do monstro que é… Preciso continuar?

Vocês estão com medo de votar “no ladrão” e estão em paz de votar no proto-ditador fascista. Fascista, sim… Umberto Eco, pensador italiano contemporâneo, falecido em 2016 [portanto, não: ele não é um comunista contra Bolsonaro – mas seria contra, se vivo estivesse], listou catorze características comuns no fascismo em seu rápido e prático livro “Fascismo Eterno”. Compre aí, leitura curta e rápida. Bolsonaro atende à TODAS elas. Vamos ver se estou mentindo? Algumas dispensam explicação, mas vou dar, assim mesmo:

1 – Culto à tradição (Deus, pátria, família – ANAUÊ!).

2 – Rejeição ao modernismo (é um perigo DANADO que dois homens se casem [pra quem?]).

3 – Culto à ação pela ação (pensar antes de fazer é para os fracos).

4 – Discordância é traição (*cof* *cof*, Mandetta, *cof* *cof* , Bebbiano, *cof* Santos Cruz […] ).

5 – Medo das diferenças (“as minorias têm que ser curvar às maiorias! Taóquei?”).

6 – Apelo à frustração social (“eu vim pra mudar tudo isso aí” – mesmo fazendo parte “disso aí” há 26 anos…).

7 – Obsessão por um enredo (“estão querendo acabar com a sua família, táóquei?”).

8 – O inimigo é perigoso, mas, ao mesmo tempo, é fraco e desprezível (não temos medo do lixo do PT, mas se perdermos, foi roubado…).

9 – Pacifismo é o mesmo que abraçar o inimigo (“Vamos fuzilar a ptralhada!”).

10 – Desprezo pelos considerados fracos (“Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”).

11 – Todos têm que ser criados para serem heróis (e, se você é um herói e o seu líder supremo pede seu sacrifício… Tá esperando o que?)

12 – Machismo e armas. (Preciso explicar?)

13 – Populismo seletivo (um recorte do estrato social representa “o nacional de verdade” [o branco, macho top, que curte sertanejo, evangélico]; o resto é inimigo).

14 – O Fascista não tem vocabulário (uma coisa é se comunicar de forma simples e clara. O que Bolsonaro faz é um culto à pobreza intelectual. Já notou que ele não consegue não falar em relacionamentos ou órgãos genitais ao dar exemplos?).

Olha aí… Um homem italiano, com o currículo de Umberto Eco, morto em 2016, quando nós não sabíamos que éramos felizes no Brasil, escreve sobre o Fascismo que viu em primeira mão na Itália, lista catorze comportamentos dos grupos fascistas… E Bolsonaro “gabarita a prova” (deve ser o primeiro 10 da vida dele).

Então é isso, meu caro leitor e minha cara leitora: Hoje, votamos contra a barbárie. Não tem nada a ver com concordar com Lula, para um enorme número de eleitores a votar 13, hoje. Eu me incluo nessa lista. Se Lula vencer, estou na oposição democrática a ele, já em 1 de janeiro (também num domingo). Mas, hoje é contra a repetição da História brasileira como farsa. Hoje é contra o fascismo que, didaticamente explanado em catorze elementos por Eco, é gabaritado pelo candidato à reeleição presidencial.

Mas, como não poderia deixar de ser, eu tenho uma mensagem que pode ser triste de aceitar, mas precisa ser aceita: É impossível reverter a entropia do Brasil. Não há jeito de nossa sociedade voltar a ser o que era. Não há jeito de não sabermos mais que há, no meio de nós, muitos que riem e se comprazem na ideologia fascista de um homem que acredita que há fracos e inimigos dentro do povo que ele quis governar. E a esses fracos e inimigos ele reserva atitudes como as de Carla Zambelli ou Bob Jeff (que ganhou esse ar de nome gringo como apelido da tropa porque… Porque o fascismo brazuca é assim: se tiver que prestar continência para a bandeira americana, sendo presidente do Brasil, que mal tem? Eles são o exemplo de força, tá tudo certo…).

Não, não há como reverter a entropia. Nunca mais seremos os mesmos. A nação nunca mais será a mesma. Se o pesadelo acabar e Bolsonaro perder, serão mais dois meses até a passagem da faixa. Dois meses de guerra intensa do sequestrador do avião que chamamos de Brasil, e que vai forçar tudo que pode para conseguir anistia para si, seus comparsas e sua família. Fora os alucinados reconduzidos ao Poder por mais quatro ou oito anos, graças a um povo que se choca, mas não reage, como disse o Vassourinha.

Em nome do Paradoxo de Popper, espero que o governo brasileiro seja como os EUA – olha que paradoxo – e cace os terroristas que sequestraram o nosso avião, até o fim (deles). Porque se o Brasil for o mesmo Brasil que sempre teima em perdoar (para ajudar o presidente atual: como a mulher espancada e traída, que sempre acha que o marido vagabundo e violento vai melhorar), que sempre teima em se chocar sem reagir, nós vamos – sem sombra de dúvidas – repetir a história, de novo, como farsa; senão já, daqui a quatro anos.


Muitas foram as fontes que me inspiraram a escrever este artigo. Deixo duas das mais importantes:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2022/10/nos-cem-anos-da-marcha-sobre-roma-vale-lembrar-por-que-o-fascismo-triunfou.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

https://premium.canalmeio.com.br/edicao/192437/

Sobre o 7 de Setembro e o voto útil

Créditos da imagem: Sérgio Lima / poder360.com.br

AVISO: Este é um artigo de opinião. Portanto, não há extensa pesquisa ou fontes a serem citadas, como eu geralmente faço. Tudo o que digo a seguir é minha, e só minha, opinião e nada além.

E a vida já não é mais vida

No caos ninguém é cidadão

As promessas foram esquecidas

Não há Estado, não há mais nação

– Hebert Vianna

Hoje, 7 de setembro de 2022, os brasileiros deveriam comemorar os 200 anos do “7 de Setembro”; a data histórica que marca a independência da então colônia para com a Coroa Portuguesa, colônia que viria a se tornar a nação brasileira.

“Deveriam”, sim, porque os brasileiros não puderam comemorar a data. O presidente atual lhes negou o direito. Pelo menos, negou para os ~68% que não estão apoiando a reeleição dele (a porcentagem obviamente reflete apenas o universo de eleitores habilitados, mas, projetemos que ~100 milhões podem representar a opinião 210 milhões [e, de fato, representarão, já que eles decidirão o que está por vir na política, para todos que moram aqui]).

Bolsonaro, como fez e faz a todo momento, sequestrou uma data nacional instituída há 200 anos. Já havia sequestrado a bandeira nacional, a camisa da seleção brasileira de futebol (que não mais pode ser a “canarinho”, se quiser ser de todos nós), bem como sequestrou as Forças Armadas, instituição que deveria ser do Estado democrático de direito brasileiro, e não do Jair. Agora, sequestra um feriado nacional, uma data histórica da maior importância (já viu filmes estado-unidenses sobre o 4 de julho? Imagina se alguém sequestrasse a data em prol apenas de uma parcela da população daquele país), e o direito dos brasileiros de reconhecer o valor cívico e histórico da Soberania nacional.

O que Bolsonaro (e seu comitê de campanha) fez hoje, claro, são apenas novos episódios de possíveis crimes (no plural) para a longa lista de suspeitas que recaem sobre o candidato à reeleição. Se não há tipificação para “sequestro de data nacional”, há tipificação para o abuso de poder econômico e desvio das funções (ou uso indevido) da máquina pública. Tipificações presentes tanto na Lei das Eleições (Lei 9.504/97) em seu art. 73 e incisos, combinado com o art. 74 do mesmo diploma, quanto na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) em seu art. 22 e incisos.

Bolsonaro não foi Presidente do Brasil, nem Chefe de Estado, no 7 de Setembro. Foi, isso sim, candidato em comícios em Brasília e Rio de Janeiro (em São Paulo ele não participou dos atos, e o ato na Paulista não tinha o envolvimento direto de militares, até onde me consta). Comícios bancados pelo Estado brasileiro, pelo erário, pelo imposto de todos nós. Ainda usou as Forças Armadas para realizar o mais caro comício que se tem notícia (tem ideia de quanto custa ativar a Esquadrilha da Fumaça em prol de um candidato? E mobilizar navios de guerra? E lançar paraquedistas? E montar palanques? E patrulhar milhares de pessoas com forças policiais e de inteligência?).

No palanque do Distrito Federal, recebendo o Chefe de Estado de Portugal, nação (hoje) amiga e historicamente relevante para nós, o escanteou enquanto ficava lado a lado com Luciano Hang, o autointitulado “véio da Havan”, recentemente mais conhecido pelo grupo de WhatsApp “Poderosos pelo fim da Democracia” (não… Esse não era o nome do grupo. Sou eu lhe fazendo o favor da tecla SAP).

No mesmo palanque, Bolsonaro lembrou seus sectários de que é preciso convencer os outros (que não querem votar nele) de que ele é o futuro mais brilhante para o Brasil. Para dar mostras das vantagens que tem a oferecer, sugeriu comparar quem tinha a melhor primeira-dama, rebaixando Michelle a item de exposição para seus eleitores-avalistas. Ele, que trata tão bem as mulheres, beijou Michelle de forma inesperada e – urgh – de língua, por vários segundos, em cerimônia solene… Depois, usando o microfone, puxou o corinho: “imbrochável! Imbrochável!” (sic). O Presidente Marcelo Rebelo assistia a tudo, calado… o véio da Havan ria… A primeira-dama fazia a habitual cara de “eu não estou aqui” enquanto sorria protocolarmente… Naquela manhã, câmeras captaram desentendimento próximo ao carro oficial, entre aquele projeto de ditador e a mulher que ele trata como mercadoria em exposição.

De tudo que foi dito, NADA remeteu ao 7 de Setembro. Nenhuma frase sobre a História, sobre os valores de um Estado livre e autodeterminado. Não houve sequer uma menção às tropas que desfilavam (talvez porque ele acredite que isso possa protegê-lo das denúncias de crimes eleitorais? Se foi só por isso, perdeu a chance de bajular parte relevante de sua base política e de força, já que afastar a incidência dos crimes mencionados não é possível diante do bom-senso e de honestidade mínimos. Só um(a) degenerado(a) poderá achar lisura e justificativa nos atos de hoje.

No Rio de Janeiro, os discursos e a confusão entre Chefe de Estado e candidato seguiram iguais ao Distrito Federal. Mais militares bancando o comício com shows, estruturas, segurança, armas, e tudo custeado pelo Estado brasileiro (nós).

Os outros candidatos à Presidência demoraram a reagir. Ciro Gomes, do PDT, foi um dos primeiros a denunciar a possibilidade de crimes de Bolsonaro, em vídeo transmitido pela sua “Ciro TV”. Lula emitiu nota de repúdio em redes sociais, mas sem imagens. Simone Tebet, idem.

O que ocorreria em um país sério seria a inelegibilidade de Bolsonaro para o pleito de 2022, diante das diversas agressões, televisionadas ao vivo, às leis que antecedem (em algumas décadas) os atos de hoje.

Não há legalidade, não há relativização, não há forma de que as leis brasileiras sobrevivam e a candidatura de Jair, também.

Uma delas sairá destroçada pela outra. Conhecendo o Brasil de Bolsonaro, alvo – atualmente – de 147 pedidos de impeachment, não tenho muitas dúvidas – com imenso pesar – de qual será o lado perdedor. Porque o Estado brasileiro está cooptado pelo bolsonarismo. Ele invadiu os Poderes, seja em Pacheco que não se impõe, seja em Lira que o blinda e o protege do alcance da legislação. O Judiciário, em sua esfera máxima, o STF, ainda resiste, muito embora a infiltração já tenha começado por lá também, na figura do Ministro Kássio Nunes Marques que, abertamente, atua no sentido de garantir a proteção das metas do presidente no Judiciário.

Por tudo isso, não creio que haja espaço para que a lei seja cumprida. Bolsonaro não pagará por seus crimes, pelo menos, não antes de sua derrota nas urnas. E não obstante eu entenda claramente que é melhor que sua punição ocorra após a derrota nas eleições de outubro (para que não se crie um falso mártir), a dolorosa verdade é que Bolsonaro criou sua Escola nesses 4 anos. Se o presidente da República, com todos os holofotes que o seguem, pode sapatear na Lei brasileira, o que fará o prefeito da cidadezinha que ninguém sequer conhece? O que farão os deputados dos rincões do Brasil? É o problema do guarda da esquina, outra vez. O dano já está aqui. Com ou sem Bolsonaro. Revertê-lo será muito difícil e levará muito tempo, ainda que tudo dê certo.

O voto útil

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!

– Mario Quintana

É forte, como nunca, a discussão na Esquerda brasileira sobre a defesa e a “evangelização” do voto útil em prol de Lula.

Para resumir, caso você desconheça, “voto útil” é o conceito prático de que diante de uma ameaça tão grande à democracia, como Bolsonaro, os brasileiros sensatos não podem se dar ao luxo de não construir uma resposta firme e terminativa ao reinado tresloucado do falso Messias, já no primeiro turno, em 2 de outubro.

Ou seja: diante do que se tem em todas as pesquisas de intenções de voto para o cargo de Presidente da República, fica cada vez mais cristalina a impressão de que um segundo turno será, mesmo, entre Lula e Bolsonaro. E se Bolsonaro é o mal maior, o que os eleitores não-bolsonaristas têm de fazer nesse momento é adiantar o voto que será feito no segundo turno, já para o primeiro. Se isso ocorrer, Lula vence em primeiro turno, e a soberania popular se fará ouvir alto e claro, logo na primeira oportunidade.

À luz da razão, realmente é difícil contra-argumentar: se nós sabemos o que vai acontecer (Lula vs. Bolsonaro no segundo turno), porquê nós – que não votaremos em Bolsonaro nem que a opção a ele seja o próprio Satan em toda sua malignidade – deixaremos que Jair ganhe sobrevida ao combate de 2 de outubro? Certamente este é um forte argumento. Mas, eu ouso dizer que é cedo para decidir isso.

Eu já sofro com a realidade à frente. Se tudo der certo e Bolsonaro cair, tudo indica que 2023 começa com Lula presidente. E, sendo isso verdade, o dia seguinte à vitória de Lula me colocará na oposição a ele. Não concordo, em nada, com as visões de política em Lula. Concordo, sim, com Ciro no sentido de que o populismo de Lula gerou algumas Escolas por onde o populismo de Bolsonaro aprendeu e cresceu. Não vou tão longe quanto meu candidato preferido, em dizer que Lula e Bolsonaro se equivalem. Esse é um erro interpretativo grave de Ciro, a meu ver.

Não, Lula, com todos seus defeitos e biografia política criticável, ainda acredita na democracia brasileira. Foi ele que iniciou a observação à lista tríplice para indicação de um(a) PGR, fortalecendo e muito a função dessa instituição. Ele aumentou muito a autonomia da Polícia Federal. Idem para o MPF. Não há exagero em dizer que o governo Lula é diretamente responsável pelas condições para que a Lava-Jato acontecesse, em primeiro lugar. Não necessariamente sabendo como tudo acabaria, mas ele e seu governo certamente poderiam ter interferido para solapar as investigações. Mas não o fizeram.

Bolsonaro é oposto de tudo isso. Usou, sempre que pôde, de seu cargo e de seu poder para interferir e paralisar investigações contra seus parentes, seus aliados e contra si. Sabotou, tanto quanto possível, os mecanismos “de polícia” do Estado brasileiro (COAF, IBAMA, FUNAI, PF, ABIN, PGR… a lista poderia ser maior se eu quisesse). Bolsonaro é o presidente que riu de quem morria sufocado pela COVID, sem leito em hospital. Bolsonaro é dono do “e daí? Não sou coveiro” e da volta de JetSki usurpado da Marinha de Guerra do Brasil, enquanto o povo morria nas enchentes. É amigo e defensor do ministro do MEC que foi negociar favores com outros amigos do presidente e pastores evangélicos. Bolsonaro é pai daqueles que compram mansões de R$ 6 milhões, com salário de algumas poucas dezenas de milhares de reais. Bolsonaro é o patriarca de uma família que comprou mais de 5 dezenas de imóveis em dinheiro vivo (no todo ou em parte). Isso é um pequeno abstract do que é Bolsonaro que, em revista, é extensamente mais perverso e mais canalha do que tal resumo. Mas para que me estender? Sei que, lamentavelmente, falo para convertidos.

Bolsonaro não é fã dos presidentes militares. Ele é fã do torturador, Ustra. Ele acha que o regime militar matou foi é pouco. Ele não é exatamente fã da disciplina e respeito às leis, teses aventadas por quem proclama a superioridade daqueles tempos. Ele só é fã da perversidade dos porões da ditadura. Até porque, se gostasse de lei e ordem, não teria sido expulso do Exército por planejar um atentado terrorista contra a instituição, como “forma de barganhar salário”. Ocorre que a punição para oficial militar é a mesma punição para magistrados: promoção e aposentadoria. Brasil, 200 anos de independência.

Não, Lula não é *meu* candidato à Presidência. Como eu disse, sendo ele eleito em outubro, no dia seguinte, eu estarei na oposição a ele. Porque, para mim, ele não tem o projeto político a altura do Brasil. Não importa o que ele fez pelos pobres (e seu governo fez MUITO), em 8 anos. A bússola política que o norteia não levará pelo caminho que eu entendo ser o melhor para meu povo. É possível cuidar das mazelas sociais e buscar outros caminhos mais longevos para o Brasil em outros candidatos e propostas. É o que creio, sincera e honestamente.

Mas, nada disso importará se a democracia acabar. E eu vejo os “céticos”, quanto a um golpe de Jair, sustentando raciocínios como “ah, até parece que o Jair vai acabar com a democracia”. Não é preciso acabar com ela, nos moldes de 1964. Aquilo é escandaloso demais para nossos tempos. Os safados que o apoiam ainda querem viajar para Miami e um golpe tradicional seria um belo dum impeditivo. É mais fácil emular uma democracia, como Polônia ou Hungria vêm fazendo. É possível ter a “casca” da democracia sem que ela exista, de fato. E este, senhoras e senhores, é o projeto de Jair Messias Bolsonaro. Não tenho qualquer dúvida quanto a isso.

Entristece-me imaginar que terei que ajudar a reeleger Lula. Os ~100 milhões de eleitores do Brasil não me deixarão outra opção, ao que tudo indica. Se fosse verdadeira a declaração “nem Bolsonaro, nem Lula”, é claro que Ciro, Tebet, D’Avila, Soraya[…] ou qualquer outro, estariam bem colocados nas pesquisas. Não estão. Quer dizer que os que dizem isso provavelmente seguirão votando no Mito. Só não têm a coragem de defender a posição indefensável para gente verdadeiramente de bem e que não se compraz com a morte e o sofrimento alheio.

Contra o voto útil, ressoa forte a mensagem de que o seu candidato ideal só não vai para o segundo turno porque todos os que acreditam nas ideias dele estão pensando como você. Eleições, afinal, não podem ser como uma corrida de cavalos: nunca deveríamos ir às urnas para tentar adivinhar e votar “em quem vai ganhar”. O voto de primeiro turno deveria, sempre, ser movido pela afinidade entre eleitor(a) e candidato(a). Em eventual segundo turno, sim: vale praticar o pragmatismo de escolher aquele(a) que menos lhe desagrada, caso seu(a) candidato(a) de primeiro turno não esteja por lá.

Mas, é impossível dizer que 2022 é só mais um ano eleitoral no Brasil. Não é. A democracia está, de verdade, em risco. Como eu afirmei, é possível criar uma mentira com cara de democracia e destruir a verdadeira por completo, e não tenho qualquer dúvida de que Bolsonaro a destruirá se a chance lhe for dada.

Eu, pessoalmente, não considero equivocada a pregação em prol do voto útil, ainda mais diante da ameaça de que Bolsonaro representa e da falta de respostas da Justiça aos seus ataques permanentes e seguidos. Uma derrota na urna, em primeiro turno, seria uma dolorosa punição – ainda muito aquém da punição que ele e seus aliados fazem jus.

Igualmente, considero totalmente justificada a ideia de defender projetos e candidatos no primeiro turno, porque o preço de não fazê-lo é muito alto: 4 anos em nossas vidas não são pouco tempo. Se seu(a) candidato(a) é muito melhor do que as opções, ninguém pode – justificadamente – reclamar de sua opção por apoiá-lo(a) no primeiro turno de 2022, mesmo que isso prolongue a agonia brasileira de ver Bolsonaro em campanha e no vale-tudo por mais 4 semanas. A agonia, afinal, foi contratada pelo nosso povo, em 2018. De algum modo, o gosto amargo é merecido. O triste é que nós, que não votamos nessa aberração, também estamos mascando o fel.

O voto é secreto, por força de mandamento constitucional. Todos têm o direito de divulgar, pré ou pós eleição, em quem votarão/am. Mas ninguém tem a obrigação de informar em quem vai votar ou em quem votou. E isso é fundamental para a liberdade de escolha dos nossos representantes nos ramos dos poderes Executivo e Legislativo. Municipal, estadual e federal. Voto útil, ou não, só você precisa saber da sua decisão.

Se você pretende votar no menos pior, logo no primeiro turno, ou firmar sua filiação a aquele(a) que você considera o melhor para o futuro do seu país, ninguém tem o direito de lhe dizer que você não está exercendo a consciência política e cidadã.

A ameaça de um segundo mandato bolsonarista não pode ser arma apontada contra a cabeça de ninguém. A ameaça de um segundo mandato bolsonarista não pode ser ignorada, igualmente.

Cabe a você, cidadão/ã (portanto, eleitor(a)), escolher qual o custo de lutar pelo futuro do Brasil: amargar 4 anos com a responsabilidade de ter escolhido o menos pior, de cara, ou o sofrimento do calvário prolongado de um segundo turno com, provavelmente, o mesmo resultado.

Seja como for, o pesadelo não acaba ao fim de outubro. Pelo contrário: se absolutamente tudo der certo e a Bolsonaro for negado o acesso a mais 4 anos para a destruição do Estado brasileiro, ele ainda terá 3 meses como presidente para despejar sua raiva e ódio contra tudo e contra todos. Os abusos ficarão ainda piores, não porque seu segundo mandato não viesse a ser um evento terrível. Mas, porque ele vai concentrar seus atos em 3 meses e tentará de tudo para sobreviver ileso aos 4 anos de crimes cometidos. A chance de um golpe de Estado certamente crescerá.

Não tenho criatividade para imaginar o que ele fará ao saber que perdeu a Presidência do Brasil. Mas, ele me ensinou que o ataque às instituições é seu modus operandi. E me ensinou que ele não tem qualquer pudor em transgredir as leis que ele jurou cumprir, não importa o tamanho (do risco) da punição.

Duzentos anos de independência e o povo brasileiro segue dependente e carente de salvadores. Melhor seria se valorizássemos instituições, políticas de Estado, e mecanismos que não dependem de partidos ou candidatos, ou ainda, do capricho dos tempos.

Não sendo possível pensar nisso tudo, diante do caos instalado, é dever, e pesará sobre o pescoço de cada um, a escolha entre os caminhos atualmente disponíveis para nossa jovem e frágil democracia sobreviver.

Qual sua escolha: o pragmatismo ou a utopia?

Sobre o verdadeiro vírus

Tem quem ache que o pior vírus, no momento, é o Coronavírus… Mas, isso, só até conhecer o nosso presidente (em minúscula, mesmo)…

(créditos da imagem: Aroeira, 2020 – Publicada em https://jorgalistaslivres.org)

O Brasil enfrenta, em paralelo ao resto do mundo, uma segunda epidemia. A primeira é causada pelo SARS-CoV-2, e todo o planeta luta contra ele, buscando por respostas – mais ou menos – em conjunto. A outra é uma epidemia de estupidez e “descivilização” (como cunhou o Professor suíço, Manuel Eisner, ao analisar a violência no Brasil); porém, esse combate é bem mais complicado do que criar uma vacina para a COVID-19.

De repente, todos sabem muito sobre tudo…

Bem, faz um tempão que não escrevo por aqui. Precisamente, 150 dias…

O motivo, como sempre, é a vida: Muita coisa para fazer, pouco tempo para realizar. Mudança na carreira, faculdade pegando fogo, matérias encavaladas para acompanhar… E aí… Pah!!! COVID-19

E teve tanta coisa que eu queria falar… Mas, sinceramente, acabei por concluir que era momento de falar menos e ouvir mais. Dar espaço para as autoridades, diminuir o ruído de fontes disponíveis… Sou grão de areia, eu sei, mas fiz minha parte e me calei.

Nas primeiras semanas de COVID-19, tínhamos especialistas em Virologia das mais variadas matizes e formatos. Muitos, até hoje, não sabem a diferença entre um vírus e uma bactéria (dica: praticamente tudo; é bem mais fácil dizer no que se parecem), mas, estavam lá, falando com grande propriedade da função da máscara de pano como filtro antiviral, fórmulas caseiras para matar o vírus, incluindo vinagre (?!?!?!)…
Bem, ainda tem quem ache que vinagre “limpa” a salada… Outros falaram que o calor tropical nos protegeria. Se fizer 56 graus lá fora (temperatura em que o vírus “morre” – fonte), sua preocupação passará a ser outra, garanto…

Restou me calar para não ser mais um louco no show de horrores que foi viver os primeiros dias da pandemia de Coronavírus, misturada com a epidemia de estupidez e desinformação que sempre vivemos por aqui. E, sinceramente, esse é o ponto mais importante em buscar educação: Ter autoconhecimento suficiente para saber sobre os limites do seu conhecimento, e poupar os outros e a si de falar grandes atrocidades.

Como disse Bertrand Russell:

O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas…

E, por Deus, como há idiotas nesse país. É como uma convenção que nunca acabou, porque o idiota-mor que organizou, esqueceu de pôr uma data de término.

Bem, para te adicionar algo novo, como eu sempre tento fazer quando escrevo, vou buscar apresentar um pedacinho do que é a Virologia para, depois, propor algumas ilações com o tema principal. Você não vai sair pronto para sustentar um debate na área, mas vai ter alguma referência e, se quiser, até um material extra para ler e, a partir daí, falar com um pouco mais de fundamento sobre o mundo dos vírus.

Vamos perguntar a quem sabe:

O material no qual me baseio é o excelente guia da Fiocruz, de ~90 páginas, disponível aqui. Sua leitura é muito mais profunda e detalhista do que eu farei por aqui, mas convido a todos que se interessam a le-lô na integra. O material tem linguagem de fácil acesso, requerendo conhecimentos básicos em biologia e química do Ensino Médio. Nesse tema, se alguém sabe do que fala, esse “alguém” é a Fundação Oswaldo Cruz.

Em Virologia, área de especialização da Microbiologia, o estudo dos vírus se dá por escopos como:

  • Taxonomia & Estrutura viral
    • É o escopo que classifica (~“dá nomes”) aos entes virais, e estuda sua estrutura químico-físico-biológica. Por exemplo, a classificação se dá pela presença de moléculas de RNA ou DNA (somente uma família de vírus [mimividae] possui ambas), pela polaridade da fita RNA, pela fita dupla ou simples de DNA, pela presença ou ausência de envelope proteico protegendo o capsídeo (que protege o ácido nucleico), e por aí vai.
  • Replicação viral
    • Escopo que estuda as funções enzimáticas empregadas pelo vírus para se replicar (o que, grosseiramente, seria equivalente à sua reprodução). Vírus não “fazem sexo”, nem podem se multiplicar por meiose ou mitose porque, não, eles não são uma célula, como todas as bactérias são [e todas são unicelulares]). Vírus sequer têm metabolismo próprio (grosso modo: “Capacidade de produzir energia vital”) precisando sequestrar a estrutura celular (complexo de Golgi, mitocôndrias, ribossomos…) do hospedeiro para este fim. Por este motivo, até hoje não há consenso científico se vírus são seres vivos. A palavra “vírus” aliás, vem do latim para “veneno” ou “toxina”.
  • Patogênese viral
    • Estuda a capacidade de um dado vírus de causar alterações clínicas no hospedeiro, como febre, tosse, vermelhidão em tecido da derme etc.. Algumas infecções virais são assintomáticas, pois, o agressor não consegue afetar significativamente a estrutura infectada, de um ponto de vista físico, químico e/ou fisiológico (aliás, é o que acontece com a maioria das crianças que se contaminam com SARS-CoV-2: Elas não apresentam sintomas e são, por este motivo, um perigo aos grupos de risco [idosos, diabéticos, obesos, pessoas com quadro cardiorrespiratório crônico…]).
  • Imunologia viral
    • A imunologia cuidará de entender como o sistema imunológico do hospedeiro reage ao invasor, como diagnosticar a presença do agressor em exames laboratoriais, quais medicamentos ajudam o sistema imunológico (em geral, pela imobilização enzimática do agente patológico, ou pelo fortalecimento de alguma estrutura que o agressor se aproveita para contaminar a célula hospedeira), e quais medicamentos não têm qualquer relevância (no caso da COVID-19 de cara, antibióticos; porque antibióticos visam atuar no metabolismo [alguma parte dele] das células do agressor e, como já citei, vírus não têm células!), ou se são mais perigosos que a doença em si (como, por exemplo, os baseados em Cloroquina, pois, esta aumenta consideravelmente o risco de complicações cardíacas; uma área-alvo na patogênese típica da COVID-19), e daí por diante.
  • Epidemiologia
    • A Epidemiologia é importante alicerce para a Vigilância Epidemiológica, parte das obrigações de qualquer Ministério da Saúde, visando garantir a segurança sanitária da sociedade. Esse escopo ajuda no entendimento do potencial de contaminação de um dado agente viral (necessidade de “vetores” [animais, em geral, artrópodes], período de incubação, mortalidade, patogenicidade etc.); igualmente, ajuda no planejamento de calendários de vacinação, identificação de medidas públicas para atacar o contágio, identificação de comportamentos de risco, profilaxia recomendada, e assim vai.

Vírus possuem uma capacidade de recombinação e mutação sem igual, podendo mudar apenas um cromossomo em seu ácido nucleico, “dando à luz” a um agente que pode ter características bem distintas e até “adotar” partes do DNA hospedeiro ou de outros vírus que estão atuando concomitantemente; e isso pode resultar em um nova cepa (linhagem) de vírus que pode ser mais ou menos eficiente em contaminar, resistir ao tratamento, além de poder aumentar a patogênese do agente (fonte – em “Evolução dos vírus”). Foi o que ocorreu no caso da gripe suína, onde o vírus influenza A se encontrou com o vírus da gripe aviária em células suínas, recombinando seu código com o outro patógeno, se tornando ainda mais agressivo para nossa espécie. Nota: Isso tudo não é “pensado”… É simples efeito da seleção natural, como bem explicado por Darwin.

Com o SARS-CoV-2, em algum momento (entre dezembro e fevereiro) e lugar na Europa, uma mutação ocorreu e mudou uma simples base nucleica: Uma Guanina (G) por uma Adenina (A), na posição 23.403 (o SARS-CoV-2 possui 30 mil pares de cromossomos), tornando a “Spike” (sua proteína de acoplamento às células humanas, pelo receptor ACE2) muito mais eficiente. Em outras palavras, com a mutação, o Coronavírus se tornou mais contagioso e e pode ter dificultado a produção de uma vacina única (fonte).

Por fim, me parece que não custa dizer o óbvio: Vírus e bactérias não têm “intenção”. Eles não pensam, não tem estrutura nervosa (o vírus tem muito menos estrutura do que a bactéria), e não são “maus” ou “bons”. São como um fato: Eles apenas existem.

O que o vírus causa pode ser bom ou ruim e, aliás, inúmeros são os indícios da importância dos vírus para a espécie humana, inclusive em sua evolução, sendo que podemos ter evoluído para o ponto em que estamos, em parte, graças a eles.
Igualmente, é aceito pela comunidade científica que nossas mitocôndrias (a “usina de força” das nossas células) devem ter sido bactérias que viviam de maneira simbiótica dentro de nós e que, em algum momento, migraram para o citoplasma, se fixando permanentemente à citologia humana (fonte).
Em resumo, é o humano que tenta emprestar conceitos morais e éticos ao mundo biológico. Os vírus e bactérias não são bons ou maus. Eles existem e interagem. O resultado pode ser bom (e.g.: Nossas mitocôndrias, ou os vírus que infectam e matam bactérias no trato intestinal, garantindo o equilíbrio da flora), mau (e.g.: Ebola, Coronavírus), ou neutro (quando não causam nenhuma patogenia). (fonte)

As terapias gênicas são, em grande parte, estruturadas em cima da ideia de reescrever as partes do vírus que fazem mal, e utilizá-lo para “infectar” seu corpo com aquilo que ele precisa. Seriam, no limiar da técnica, capazes de curar Hemofilia ou Diabetes Mellitus, por exemplo, ao reescrever nas células do fígado e pâncreas (respectivamente), os genes que “dão problema” (de maneira bem grosseira, tudo bem?). (fonte)

Bem… Agora que temos o mínimo de contexto para seguir, vamos em frente.

Sobre a necessidade de sermos intolerantes

Karl Popper, filósofo nascido alemão, em 1902, e inglês por escolha, sintetizou o conceito mais aceito do que é Ciência, até hoje. Mais especificamente, ele sintetizou o que faz de uma teoria, ciência, assim dizendo:

Uma teoria científica é um modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos. Assim, uma boa teoria deverá descrever uma vasta série de fenômenos com base em alguns postulados simples como também deverá ser capaz de fazer previsões claras, as quais poderão ser testadas.

Assim, podemos entender o que faz de uma teoria, ciência, e o que não é ciência. Se não consegue descrever os fenômenos através de um modelo matemático (Força = Massa*Aceleração) ou postulado claro (“crime” é Ato Típico, Antijurídico, cometido por Agente Culpável); se a teoria não consegue prever claramente boa parte dos resultados destes mesmos fenômenos, no futuro; tal teoria pode ser teoria da conspiração, teoria de boteco, teoria de Whatsapp… Mas, não é teoria científica. Teoria também não é sinônimo de “opinião”!!! Pelo amor de todos os santos… Mas, isto fica para outro dia…

Também, é de Popper o Paradoxo da Tolerância (fonte):

A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas. Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, ao direito de não tolerar o intolerante.

As palavras atingem minha compreensão do mundo como bombas. É duro pensar que estou vivendo os dias da minha vida às portas de ver realizado o Mal do paradoxo de Popper (o fim da tolerância). Para que preservemos a Tolerância como valor e a Democracia como regime de Estado, precisaremos nos tornar intolerantes com os intolerantes.

Para quem me conhece “ao vivo”, suponho ser fácil perceber que sou totalmente contrário à ideia de censura e repressão da opinião alheia. Eu acredito – no caso geral – na ideia sintetizada da filosofia de Voltaire:

Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.

A frase, erroneamente atribuída ao filósofo é, na verdade, de autoria de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall (1868 – 1939), sendo, contudo, um brilhante resumo da linha liberal (nada a ver com liberalismo econômico) de pensamento de Voltaire, contra o Estado Absolutista com o qual conviveu. (fonte)

Isso dito, não há qualquer conflito nessa ideia com o paradoxo postulado por Popper. Aliás, Popper é bem claro ao dizer:

não insinuo (…) que devamos sempre suprimir (…) filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública (…)

Logo, há um pressuposto: Se os argumentos baseados em racionalidade permitem fazer com que os integrantes da sociedade questionem filosofias intolerantes, mantê-las na discussão pública é vacina mais do que desejada contra o alastramento dessas mesmas ideias.

Contudo, Popper também prescreve a exceção:

Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; (…) (pois) eles (os que propagam as ideias intolerantes) podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas

Assim, é chegada a hora de todos nós (que acreditamos numa sociedade que tolera a diferença, que respeita a dissidência do pensamento, que se baliza pela Lei para compatibilizar a convivência e que busca incessantemente os princípios (positivamente) utópicos de igualdade e fraternidade na sociedade) nos tornamos intolerantes com os intolerantes. Sob o risco de permitimos que a tolerância seja exterminada.

Hoje, estou no dia de desmontar atribuições errôneas… Diferentemente do que muitos dizem, este – a seguir – não é um ditado alemão, mas uma frase, até onde obtive informação, de autoria do Chris Rock (o comediante estado-unidense) – (fonte):

Se 10 caras acham que é ok passar um tempo com um nazista, eles se tornam 11 nazistas.

Depois da frase de 2017, alguém, na Alemanha, deu uma roupagem mais formal e usou o exemplo dos 10 à mesa com 1 nazista… Enfim… Este não é, de verdade, meu ponto.

Meu ponto é que toda vez que nós rimos com simpatia para alguém falando atrocidades e defendendo tortura e massacre daqueles que pensam diferente, que são diferentes, ou que simplesmente não dizem “amém” para aquilo que o boçal vocifera, nós não apenas garantimos a perpetuação da barbárie, como nos tornamos mais bárbaros, também.

Por isso, é hora de ser intolerante com gente intolerante: Ou eles discutem seu ponto de vista dentro de um grau civilizatório mínimo, respeitando noções gerais de debate civilizado, e se abstendo de expedientes falaciosos (como atacar o autor do argumento, e não o argumento em si) ou calam a boca e morrem gritando somente para os loucos e bárbaros como eles mesmos, até o ponto de ficarem isolados da sociedade civilizada, como merecem aqueles que querem destroçar o próximo e tornar o mundo um lugar de supremacistas e egocêntricos.

Como bem disse o filosofo Heidegger, mais tarde, inspirando fala similar do Doutor Martin Luther King:

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

A História, no entanto, não perde o dom da ironia: Heidegger, alemão, foi filiado ao partido Nazista desde 1933, embora tenha se tornado um crítico do regime já durante a 2ª Grande Guerra.

Como podemos ver, a necessidade da intolerância com os intolerantes parte do risco de que a discussão não mais seja racional, e que os intolerantes se imponham por força bruta, e massacre dos seus opositores, à revelia da validade de suas ideias.

E clamo que todos nós, seres civilizados, deixemos de emitir “notas de repúdio veemente”… Não tem nada mais inócuo e patético, do que uma sociedade e órgãos de um Estado Democrático de Direito que, depois de levar seguidas cusparadas na cara, emitem “notas de repúdio”… Tais notas são motivo de riso entre os animais irracionais do outro lado dessa guerra. Precisamos, como Popper disse, ser intolerantes, se preciso, com o uso da força Estatal (porque nós, sim e, de fato, estamos ao lado do Estado Democrático de Direito), processando, legalmente, e encarcerando os elementos que atentam contra a vida civilizada e balizada pela Lei. Mas, eu não sou bobo, e também sei que o “braço forte” do Estado está sendo corrompido, dia após dia… Bom… Outro tema, outro post.

O verdadeiro (e mais perigoso) vírus

O verdadeiro e mais perigoso vírus, atuando no Brasil, é o vírus bolsonarista. Como agora sabemos o básico de Virologia, faremos a análise desse vírus dentro das lentes científicas da Microbiologia – num óbvio, mas, eficaz, penso eu – exercício de analogia e sarcasmo, é claro.

Taxonomia & Estrutural Viral

O vírus bolsonarista ou vírus do bolsonarismo vem da família bolsonariae, e sua origem remonta à boçalidade, à estupidez e ignorância do espécime medíocre; daí, tamanha similaridade na fonética dos termos, sendo a nova grafia mero acidente de transcrição histórico (aviso: isto não é um fato; mas teria tudo para ser).
É um vírus oportunista (como advertido anteriormente), que se aproveita da vulnerabilidade do hospedeiro – a sociedade brasileira – e essa vulnerabilidade vem da nossa completa descrença e desrespeito pelo sistema político criado pelas elites nacionais e, por uma questão de recorte histórico, sedimentado nos últimos ~100 anos de história nacional. Mais especificamente, com início da Era Vargas em 1930, passando pela promulgação da segunda Constituição, de 1934 (que fundou várias bases do que chamamos de “democracia” atualmente, como o voto secreto e obrigatório aos 18 anos, o voto feminino, nacionalização das riquezas naturais, bancos e surgimento de outras estatais, e por aí vai…) e, mais tarde, já na Ditadura do Estado Novo (1937 a 1946), autoritário e anticomunista, também moldado por Vargas, que tinha afeição declarada ao Fascismo do ditador italiano, Benito Mussolini.
Vargas é chamado de “pai dos pobres” por seu “departamento de imprensa” (DIP) – na realidade, um gabinete de Propaganda – e o nome até que “pega”, por ser considerado o Patrono dos Trabalhadores Brasileiros (por exemplo: Foi ao fim de sua ditadura que surgiu a nossa CLT). Não é de se espantar, destarte, que admirado por tantos, e com medidas tão populares (mas, também, populistas), seu autoritarismo e repúdio à democracia, enquanto forma de dirimir os conflitos na gestão da coisa pública, não seja lá de grande proeminência em sua biografia de domínio popular. Modo geral, lembramos tão somente do lado frondoso do homem “que cuidou de quem luta dia e noite pelo pão”, e tendemos a minimizar que, antes de 64, a Ditadura já ocorrera por suas mãos…

Este sistema político hodierno, posto à nossa face, emula uma democracia, mas, não chega a ser uma, de fato, porque diante dos anseios e problemas da população comum e sem status ou fama, tal sistema político se nega a realizar qualquer mudança sincera e profunda nas “regras básicas do jogo”. Quando muito, orquestra um espalhafatoso espetáculo de luzes e som, com a intenção de mesmerizar a todos e causar grande estardalhaço; mas, como num truque de mágica, onde o segredo é distrair a plateia para que ela não note o que você faz com as mãos, nossos mágicos políticos terminam sempre por retornar todos os atores e mecanismos para os lugares onde sempre estiveram. Sim Salabim!

O grande segredo é não haver mistério algum…

…diria conhecido compositor

Diante da desesperança e da descrença completa, vários organismos da sociedade – ou seja, seus cidadãos; nós… – ficaram vulneráveis aos mecanismos de sequestro – especialmente, o sequestro intelectual – impostos pelo vírus bolsonarista.

Replicação Viral

A replicação viral do bolsonarismo é centralmente baseada em mecanismos de desinformação (as famosas fake news). O mecanismo é conhecido de longa data pelos Cientistas (políticos), e como propagou Ésquilo – e não um senador estado-unidense (estou num dia de checagem de autorias…) (fonte) – dramaturgo grego:

Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.

A desinformação favorece a família bolsonariae, pois, em uma Era de “pós-verdade” (termo cunhado, em 1992, pelo dramaturgo Steve Tesich), a informação – enquanto compreensão ordenada de fatos – não tem mais credibilidade por si só. Nessa nova Era, é possível “informar” sem aduzir qualquer fato. Mas, para qualquer um com imunidade ao sistema de ataque da família bolsonariae (família de vírus, claro), é óbvio que os fatos importam e que “verdadenão é algo quedepende da visão de quem julga”.
Existe certo e errado, existe fato e ficção, e “fato” não se confunde com “opinião”. E é claro que veículos de informação tradicionais não são isentos de distorção, mas, para isso temos mais de uma fonte de informação, e elas atuam verificando umas às outras, num eterno exercício de vigilância recíproca.

Como bem disse o sagaz Millôr Fernandes:

Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados

Ou seja: O melhor indício de que um(a) jornalista está cumprindo com seu papel Constitucional de vigiar “os poderes” (na verdade, as funções do Poder [que é sempre Uno]) da República, é quando o(a) jornalista é odiado(a) por todos os lados e ideologias. Se um lado sempre bate palma para uma fonte de notícias, sendo este lado situação ou oposição, melhor desconsiderar a opinião dessa fonte, daqui por diante.

Depois da desinformação, e da relativização da verdade, outro mecanismo de replicação utilizado pelo vírus bolsonarista é ligado à ignorância e truculência dos organismos que ele contamina. Quanto mais radical e mais alienado da realidade nacional de desafios, desigualdades, racismos, preconceitos históricos e jamais solucionados pelo Estado-de-faz-de-conta que é a República das Bananas – bioma do hospedeiro-alvo do bolsonarismo: A sociedade brasileira – e quanto mais ignorante do fato de viver em uma sociedade fundada, não na igualdade – com supostamente ordena a Lei Maior – mas, sim, nos privilégios de certos grupos sobre outros, mais eficiente é a acoplagem do vírus bolsonarista às células do organismo agredido, facilitando a replicação do vírus.

Tão logo acoplado, o patógeno sequestra a capacidade de raciocínio, e altera a ordem entre fatos e versões, incapacitando o organismo (o cidadão) de ver com clareza a ordem dos eventos, as relações de causalidade e efeito, e afetando a habilidade de pôr os acontecimentos em uma perspectiva clara e óbvia para qualquer organismo ainda não infectado. Deste ponto em diante, o organismo, tomado pelo agressor viral, passa a ser contaminante para todos ao seu redor, difundindo as mesmas mentiras e ilusões delirantes, fundadas em absurdos completamente esvaziados de lógica e de bom senso; todos esses elementos, fundamentais para a continuidade da infecção e replicação viral bolsonarista.

Portanto, o nosso conhecimento da replicação viral da família bolsonariae, aponta para o fato de que o agressor biológico se beneficia da ignorância de longa data, sempre incentivada pelas condições do bioma (crônico investimento irracional e errático na estrutura da educação pública, alienação proposital e incentivada [“nessa casa não se discute futebol, religião, nem política!”], Coronelismo [o eleitor tal qual gado em um curral, esperando as ordens de seu senhor], Sebastianismo [a crença de que precisamos de uma figura mítica e salvadora para nos livrar de todo o mal], Clientelismo [o eleitor como um cliente do político, a ser atendido e satisfeito, nunca tratado como parte capaz e responsabilizável na construção das políticas e espaços públicos]; todas estas, características históricas em nossa relação com a política nacional).

Patogênese viral

Os sintomas clínicos do organismo contaminado são evidentes, se manifestando com intensidade moderada, a priori, mas ficando extremamente fortes quando na presença de outros organismos infectados. Isto sugere que a carga viral do bolsonarismo cresce em progressão geométrica na presença de 2 ou mais infectados no mesmo espaço, físico ou virtual. Estudos mais detalhados precisarão ser realizados para que se determine se o vírus bolsonarista é “airborne”, ou seja, transmissível pelo ar. Até que estudos conclusivos sejam realizados, sugere-se o afastamento de pelo menos 10 metros, (ou 2 conexões de distância em redes sociais) de qualquer infectado.

Os sintomas típicos são:

  • Clamor por intervenção militar, com alguma variação sugerindo que isso seria “Constitucional” (possivelmente, devido aos delírios induzidos pela forte febre que acompanha o quadro);
  • O uso da camisa da seleção brasileira de Futebol, com o brasão da CBF; entidade que os infectados imaginam ser um símbolo de honestidade e que representa os valores da causa;
  • A embaraçosa relativização dos danos graves e atos criminosos cometidos pelo Pai da família bolsonariae (família de vírus, claro) e todas as demais cepas do bolsonarismo; família esta que está espalhada em outros cargos da política nacional, já em grau de pandemia, contaminando outras partes da fauna que coexiste com nosso hospedeiro (a sociedade), como Polícias e Forças Armadas – mecanismo importantíssimo utilizado pelo vírus na supressão da imunidade inata do hospedeiro, sendo vetor de transmissão perigosíssimo, e que merecerá estudo em separado;
  • O rapto da bandeira nacional Brasileira, como se fosse um símbolo só disponível aos infectados, sendo que a mesma é estranhamente apresentada ao lado de outras bandeiras, com mesmo destaque (quando não, menor do que as demais, ou até mesmo ausente), de nações como Estados Unidos da América e/ou Israel (fica evidente o sintoma de confusão mental causado pelo bolsonarismo: O organismo contaminado se julga mais patriota que os demais, mas se manifesta ostentando bandeiras estrangeiras, num raríssimo caso de esquizofrenia patriótica viral);
  • O uso de falácias como “E o Lula? E o PT?”, “Os cientistas/ONU/NASA/IBGE são de esquerda!”, ou “Morra, comunista!”, quando enfrentados com dados e fatos que não podem ser vencidos pela via da inteligência e racionalidade, mas, tão somente pela força;
  • Agudo desarranjo intestinal reverso, invertendo violentamente os movimentos peristálticos, e fazendo com que o organismo infectado regurgite as próprias fezes enquanto fala; um dos sintomas mais assustadores e chocantes que já se presenciou na história moderna da Virologia.

Enquanto temos conhecimentos de outros sintomas, estes podem ser confundidos com os sintomas causados por outro patógeno (bem mais moderado e infinitamente menos danoso, devemos acrescentar), já que o bolsonarismo não é o único vírus de matriz populista a se aproveitar dos mecanismos de infecção e características de vulnerabilidade da nossa sociedade.

Os sintomas apresentados, acima, de todo modo, são extremamente comuns no organismo infectado com o vírus da família bolsonariae, servindo de baliza para o diagnóstico diferencial clínico e descarte de outras doenças possíveis (anencefalia em idade avançada, possessão demoníaca patriótica, entre outras).

Imunologia Viral

Os organismos que resistem ao bolsonarismo e todas as suas variantes, – sejam elas a estupidez, a ignorância, a ideia alucinógena de superioridade baseada em fato algum, a produção e propagação de desinformação(…) – apresentam algumas características relativamente comuns ao grupo de organismo com imunidade congênita presente:

  • Educação e respeito pelo próximo, ainda que diante de discordância de grande porte;
  • Capacidade, acima da média, de separar “fato” e “opinião”;
  • Consciência inequívoca de que ditaduras sempre dão certo porque mentem o tempo todo, e nunca permitem que seus opositores sobrevivam;
  • Educação moral e formal para entender a realidade por um prisma não-fantasioso e não-mágico (e.g.: não, armar o brasileiro em seu atual grau de civilidade e respeito ao próximo, não é uma prioridade de um governo de gente normal);
  • Profunda descrença em “salvadores da pátria” e “figuras míticas”, por terem consciência de que pessoas não salvam um país, mas instituições fortes e que não podem ser facilmente raptadas por golpistas e estelionatários são a verdadeira chave do sucesso das grandes nações;
  • Consciência plena de que o bem mais importante que alguém possui é a própria vida e que, subtraído tal bem, este é insubstituível e, daí em diante, nada mais importa; nem sociedade, nem lei, nem economia, nem igualdade, nem merda nenhuma.

Epidemiologia

Depois de um relatório tão perturbador, nossa pesquisa nos leva à boas e más notícias.
A boa notícia é que o R-zero do bolsonarismo apresenta forte descenso. O número de novos contaminados vem em franca queda, e o vírus começa a demonstrar característica de nicho, atacando somente regiões e populações naturalmente propensas à ignorância e truculência, sendo que já vemos um certo platô de contaminados em cerca de 30% da população. Considerando os números anteriores, essa parece uma reação animadora e que nos dá alguma esperança de convalescença do hospedeiro – a sociedade brasileira. O prognóstico, se mantidas as atuais variáveis, é muito positivo, com recuperação mais tardia a ocorrer em janeiro de 2023. Convém, porém, observar os sintomas até outubro de 2022.

Pois,

O preço da liberdade é a eterna vigilância…

…como disse Thomas Jefferson.
Outra boa notícia é que os organismos sobreviventes e curados passaram a recobrar a capacidade cognitiva depois da fase rara de “coma de olhos abertos” que enfrentaram. São comuns os relatos de volta da percepção da realidade, o fim dos delírios, e surpreendentemente, muitos admitem que passaram a reconhecer que militares não são melhores, nem piores do que o resto da sociedade. Afirmaram, ainda, que militares são pessoas comuns, que usam farda, tem um preparo específico, mas, não tem nenhuma qualidade adicional por causa disso. Prognóstico animador, dado o retorno da habilidade de constatar o óbvio!
As más notícias ficam com a piora aguda do quadro de saúde da democracia. Este sistema é dependente direto do hospedeiro – a sociedade – e se o hospedeiro adoece, a democracia também. É confusão comum nos recém-iniciados em biologia política (só para constar, isso não existe…) pensar que a democracia faz a sociedade, mas é o exato oposto. Da mesma forma que um pedaço de papel não obriga ninguém a ficar em casa, um país não pode ser democrático se seu povo não quiser que seja, e é tolice pensar diferente.

A profilaxia recomendada diante desta epidemia é lavar sempre as mãos e não acreditar em nada que você receba por Whatsapp, Instagram, Facebook, Twitter… Procure se manter próximo a mais de um (idealmente, pelo menos 3 [três]) veículo de informação tradicional, como forma de validar a informação recebida em mais de uma fonte. Nunca confie em canais de comunicação oficiais do governo, porque eles não fazem notícia, fazem Propaganda; e a diferença entre os dois tipos de comunicação é brutal.

Também, é política de prevenção recomendada, ser intolerante com os infectados exibindo sintomas de intolerância. Não é preciso descer ao nível de baixeza e desumanidade deles, mas basta não continuar a conviver com esse tipo de infectado, dado que as chances de cura deles são baixíssimas, enquanto as chances de que você acabe contaminado são enormes.

O esquema de vacinação para se prevenir contra o vírus é até simples: Doses cavalares de realidade obtida por fontes confiáveis e jamais por redes sociais; procurar os fatos antes das opiniões; não se permitir guiar por pessoas que despejam ódio e retratam compatriotas como seres inferiores, seja porque são mulheres, gays, negros, ou “comunistas”; exercício da capacidade de análise crítica, sem jamais aceitar soluções simples ou milagrosas para problemas complexos e de longa data; a solução virá pela decantação das instituições, e não pela força estúpida de projetos mentecaptos de ditaduras e supressão de direitos.

Eu, pessoalmente, fui além da sugestão e adotei a intolerância para com os intolerantes, como me pediu Karl Popper, e estou em lockdown contra bolsonaristas trogloditas e ignorantes, mantendo o contato somente com aqueles que ainda apresentam alguma racionalidade – na esperança de ajudá-los a vencer a doença com a qual se deixaram contaminar.

Todo cuidado é pouco, pois, se eu vacilar, posso acabar sentado à mesa com outros dez incautos e que não querem se posicionar com clareza em favor da democracia, e contra o fascismo crescente, por medo de “perder a amizade”; e aí, vem um bolsonarista estúpido, senta-se conosco e, pronto: Agora somos onze bolsonaristas estúpidos, defecando pela boca, num piscar de olhos.

Um dos mais tristes fins que alguém pode ter…

Sobre o PenTest Bolsonarista

Um post para todos que andam dizendo “já passou” …

Ao escolher uma faculdade ligada à Tecnologia da Informação, uma das coisas que acontece com você é que, automaticamente, você passa a entender sobre redes, programação, formatação de sistemas, vírus de computador, micro-ondas, recarga de cartucho de impressoras, e como arrumar o celular dos seus familiares (“nossa, tá muito lento e apareceu esse aplicativo aí que eu não instalei”)…

Ah! Acontece outra coisa também: Para qualquer pessoa de fora da área, se você abre um prompt de comando e digita “ipconfig /all”, pronto… “Cara, você é hacker?”. Claro! Quem não é?

Sim meus caros amigos, somos todos hackers na informática. A primeira aula na faculdade é “invadindo perfis de Facebook da ex-namorada”. E é “da ex”, e não “do ex”, porque uma coisa mais rara do que aluno de informática em forma, é mulher na sala de aula (o que considero um assunto triste, mas fica para outro dia).

Bem, como somos todos hackers, todos nós sabemos o que é um PenTest. Mas, eu vou dar uma colher de chá e falar com propriedade sobre algo que faço todo dia. Ou seja, vou falar sobre “coisas de hacker”. Em termos mais técnicos, falarei em “Segurança da Informação”.

Na disciplina de Segurança da Informação, na qual sou extremamente versado (eu espero que vocês já tenham notado o sarcasmo), “PenTest” é um conceito que, para além da abreviação, significa “Penetration Test”. Em resumo, com um sistema da informação exposto, mesmo que somente a um público interno, é importante saber se pessoas não autorizadas são capazes de extrair dele, informações e dados aos quais tais pessoas jamais deveriam ter acesso.

E (eu sigo supondo que minha audiência não é da área), talvez, sua primeira pergunta seja “mas, se o sistema foi bem feito, só acessa que tem usuário e senha (credenciais), não é?”.
Méh…. Mais ou menos… Mais ou menos…

O problema com o desenvolvimento de sistemas (o que nós, que sabemos sobre impressoras e micro-ondas, dominamos muito bem) é que, de maneira geral, os programadores (aqueles que fazem o programa, ou “app”) fazem o código “para dar certo”.
E aqui, você dirá “what-the-p$rra?! E não deveria ser sempre assim?”.
Você ainda não visualizou o problema…

O problema é que se eu sou “teu chefe” (o analista de negócios, o PjM [Project Manager], o P.O. [Product Owner], ou só o cara te pagando, mesmo) e te digo “quero que você me faça uma calculadora que some, subtraia, divida e multiplique”, você, como programador, mas, mais ainda, como ser humano, se prepara para construir algo que “some, subtraia, divida e multiplique”…
Se você for mais espertinho, você fará outras perguntas como “de que modo o usuário entrará com os números a serem operados nessa calculadora?”, e outras perguntas que te ajudarão a fechar o escopo do programa a ser desenvolvido.

Ocorre que… Em uma sala de programadores júnior, e para todos vocês que não sabem como recarregar um cartucho enquanto invadem o sistema de mísseis da OTAN (como eu sei), a maioria das pessoas não fará perguntas cruciais como “quem deve ter acesso à calculadora e que tipo de autenticação usaremos para garantir?”, ou “os dados devem ser criptografados durante os cálculos e no armazenamento de longo prazo? ”, ou “que tipo de tolerância à falha essa arquitetura deve possuir?”… Essas são perguntas que só quem já passou das primeiras “300 horas de voo” deve imaginar…

E aí, sua calculadora fofinha que soma “result = varA + varB;” e faz um “printf (result);”, recebe do usuário a ordem para soma de varA = 3 e varB = o (ó de “óleo”, não “zero”).
Kabum! … Lá se vai o seu programa tentando somar um número com uma letra. Algo tão bobo quebrou seu programa… Imagina quando a questão é fazer um programa seguro do tipo “só vai entrar quem deve”… São tantas possibilidades… Tantas coisas feitas de maneira legitima e sincera e que podem se tornar exploráveis por alguém mal-intencionado…

Em resumo, você já viu que dizer “ué, só entra quem tem credenciais” não resolve o problema real de Segurança da Informação. Torne as coisas muito mais complicadas do que somar duas variáveis e exibir o resultado na tela, e os problemas e preocupações acompanham a mesma regra exponencial de possibilidades.

Esqueça o petróleo. A riqueza do mundo está nos dados

E até o mais bobo dos hackers sabe disso…

E porque a riqueza do mundo não é mais material, mas, sim, de informação (quem detém e manipula mais disso é mais rico que os outros), a maioria das gigantes empresas já entendeu que não dá para tratar sistemas da informação de forma muito diferente da sala-cofre do banco onde fica a bufunfa.

Assim nasce, nas áreas de TI, a disciplina de Segurança da Informação (SI), originalmente preocupada com ataques externos, até que percebemos que a franca maioria dos ataques começa de dentro para fora (fonte). Seja com ajuda intencional ou não dos colaboradores (empregados) da empresa atacada.

Surge, nas empresas de grande porte, a ideia de ter times de hackers contratados para combater hackers hostis à empresa.

Depois de um tempo, já não é suficiente “sentar e esperar”, e a Segurança da Informação passa a ter que se antecipar aos ataques. A SI da empresa tem que pensar como o agressor agiria… O que ele faria, o que ele exploraria… É claro que existem os truques básicos, e é claro que tem empresa pecando no que chamaríamos de “nível 0” de maturidade de SI (como não colar sua senha em um PostIt no teclado). Mas, o mesmo mal que afeta o programador (que programa “pra dar certo”) acontece com o time de SI da empresa… Gente acostumada a defender, com o tempo, esquece como atacar.

Constrói-se, então, o conceito de “blue & red teams”. São dois times de profissionais contratados pela empresa. Um de atacantes e outros de defensores. E são ambos ligados à SI, mas, a parte divertida da coisa é que um não conhece o dia-a-dia do outro, e o time azul nunca sabe quando o time vermelho está invadindo, ou quando a invasão é real. Isso cria uma mentalidade de “não-relaxamento” o que é, modo geral, positivo para a eficiência das medidas de segurança.

Na esteira disso, surgem consultorias especializadas em vender “PenTests” ou “Penetration Tests”… São consultorias formadas (pelo menos, no princípio) por hackers e pessoas com bom conhecimento de SI, e que vão tentar invadir um designado sistema da empresa para apresentar um relatório depois, indicando o quão seguro é o sistema explorado.

Não existe sistema totalmente Seguro

O único sistema eletrônico 100% à prova de invasão é aquele fora da tomada…

Lembra da nossa calculadora? Ela falhou porque não projetamos ela para impedir qualquer entrada que não fosse um número. Também, dando um passo adiante, deveríamos proibir que divisões por zero ocorressem (já que a divisão por zero é uma indeterminação)… Enfim, há sempre espaço para melhora.

Agora, uma calculadora como essa, feita em linguagem de programação C (“C” é o nome da linguagem), deve chegar a 15 ou 20 linhas de código (como esse texto, podemos contar o tamanho de um programa em linhas, em funções e de várias outras formas). De maneira agressivamente simplista, essas linhas explicam para os circuitos do computador como lidar com os valores que você digita no seu teclado e que espera operar matematicamente (já que é isso que uma calculadora faz).

O tamanho do programa varia com o tamanho das necessidades (aqui, 4 operações elementares), e com a habilidade do programador (programadores mais experientes e talentosos saberão fazer um mesmo programa, quanto às funções esperadas pelo usuário, com menos linhas do que um programador iniciante) …

Agora, vamos para um exemplo real:

Um navegador de internet como o Mozilla FireFox, tem mais de 28 MILHÕES de linhas de código (LOC: Lines of Code), e é composto por mais de 40 linguagens de programação diferentes (fonte).

E, por mais que eu saiba que qualquer navegador moderno é a nova área de trabalho dos dias de hoje (pense bem: o que você faz no seu PC/notebook que não é feito via seu navegador? [Chrome, Edge, Firefox…]), a realidade é que o navegador é “só um programa” que precisa de um sistema operacional inteiro por baixo dele para poder ser executado…

Para se ter mais uma ideia de dimensão das coisas, o coração de um sistema Linux moderno tem, por padrão, 15 milhões de LOCs (fonte)… E o Kernel é “só” a parte que faz o sistema ficar pronto para mandar no hardware da sua máquina (processador, memória RAM, disco, rede[…]), sem falar de interface com usuário (mouse, teclado, monitor, impressora), interface gráfica (seu desktop), programas-padrão de um sistema operacional, acessórios e periféricos…Ou seja: O tamanho total de um sistema operacional moderno atinge, sem um esforço enorme, a marca da centena de milhões de linhas de código. E como eu já disse… Não é apenas uma linguagem de programação… São dezenas. Cada qual com seus trejeitos, vantagens e desvantagens. Cada qual com suas habilidades e vulnerabilidades… Como as línguas faladas pelos homens…

E, se uma calculadora de 15 ou 20 LOCs já teve problemas… Você, agora, entende o porquê não existe um sistema 100% à prova de falhas. Algum dia, alguém vai esbarrar em uma linha “escrita para dar certo”, mas, que permite que MUITA COISA ERRADA aconteça através dela… E não é como se faltasse linha; concordamos, certo?

A evolução da SI, e os problemas éticos decorrentes

Porque onde tem gente…

Bem, eu já te disse que petróleo é fichinha, comparado ao valor financeiro em forma de dados que uma empresa pode acumular, certo?

Eu também já disse que a SI se tornou uma disciplina necessária para guardar o tesouro da empresa, tal qual o banco (Itaú, Bradesco etc.) guarda a sala-cofre com a grana…

Se eu te dissesse que sei como invadir sua sala-cofre (virtual ou real), mas, que estou disposto a te ensinar como se proteger dessa invasão e se, inclusive, eu te desse uma amostra da gravidade dessa situação (por exemplo, te mostrando que sei o que e quanto você guarda lá dentro), quanto você pagaria para eu te ensinar a se proteger do que fiz?

Infelizmente, esse foi o caminho “de negócios” de parte das “consultorias” (que, nesse caso, mais se assemelham ao modelo dos mafiosos sicilianos da Cosa Nostra, ao vender proteção contra eles mesmos para os comerciantes) … E, assim, essas “consultorias” passaram a fazer invasões “preemptivas”, sem qualquer pedido ou contrato com a empresa-alvo. Quando conseguiam invadir algo, enviavam um contato comercial para a empresa, mostrando que invadiram, mas, invadiram pela nobre causa de despertar a empresa atacada para os riscos que ela correria se o ataque fosse feito por gente “mal intencionada” (porque, claro, eles estavam ali para dar de graça o “como corrigir o problema”… [not!]).

E assim, o mundo é cada vez mais conectado e mais inclusivo quando o assunto é “Internet” e, por causa disso mesmo, cada vez mais perigoso e hostil para todos. Dados e informações são riquezas maiores do que petróleo (fonte), existem e circulam de maneira abundante pela Internet, e pela natureza conectada do mundo atual, precisam interconectar diversos sistemas, em várias partes do mundo. E tudo isso significa oportunidade. Para o bem e para o mal.

Proteger esses dados tão bem quanto se possa é o novo meio de “se criar um banco” (e ficar rico como quem criou os originais). Quem protege melhor, ganha mais. Mas, para proteger melhor, você precisa de um time altamente treinado e constantemente desafiado. Daí, os “red & blue teams”.

O problema surge quando, bem… Seu blue team não é lá “aqueles coco” (saudações, Aloisio!), dorme no ponto, baixa a guarda por achar que o ataque é falso (vindo do red team), mas o ataque é real… Ou quando o seu red team é mais do que bom… É feito de pessoas realmente perigosas. Acontece nas melhores empresas, e nos processos seletivos menos criteriosos…

Se você pensar bem, é o tipo de gestão de pessoas mais maluco do mundo… Você precisa contratar gente competente, acima da média, realmente capaz de causar dano ao patrimônio, e convencê-los a trabalhar pra você, te ajudando a prevenir invasões à sala-cofre… E quando eles invadem, você precisa ter confiança de que eles não farão nada de mal com o que encontraram lá dentro… Melhor recrutar bem… E pagar ainda melhor…

  • Eu preciso dizer que é um pouco fantasiosa a forma como descrevo as coisas… É óbvio que o bom gerente do time de SI não sai por aí contratando hacker em sala de bate-papo do UOL. Mas, a intenção sempre é manter o texto acessível e destacar os perigos de quando você toma as coisas por garantidas… Porque como disse Richard McKenna:

“The way you get killed around machinery is to take things for granted”.

  • Em bom português (adaptado): “O jeito para morrer lidando com uma máquina (ou sistema), é tomar por certo o incerto”.

E não é sempre assim que se morre, Sr. McKenna? 😉

É sempre fácil acabar morto quando você dá as coisas por certas… Especialmente ao lidar com os perigos da vida… Ou dos sistemas…

Tudo pode ser abordado por uma mentalidade de sistemas

Até porque você(nós) toma(mos) tudo por certo e não dá(mos) o devido valor…

Computadores (desde as dezenas deles embarcados em um avião, passando pelo controle a bordo de um míssil, até o notebook ou o smartphone no seu bolso) são máquinas.

Máquinas são sistemas.

Falamos de parte das características dos sistemas no post passado. Outra parte vai por aqui…

Um programa é uma rotina lógica que é compilada e vira o tal “exe” que você utiliza (como nossa calculadora inicial) – estou sendo grosseiro, claro. A junção de vários programas que interagem entre si, dá origem a um sistema.

E sistemas são, de maneira genérica, partes que interagem entre si e resultam em um propósito comum à existência de todas elas. Para que um sistema funcione, ele precisa trocar informação. A informação precisa ser protegida, não só de acesso indevido, mas de corrupções, interrupções, e outras formas que possam impedir que um dado programa do sistema tome as atitudes que deve tomar, diante da informação que ele deveria ter recebido.

Todo vírus de computador moderno é concebido com medidas para tentar impedir que o programa antivírus receba informação (indícios) de que há uma infecção em andamento. E só para te garantir: Um vírus de computador não é nada mais, nada menos, que um programa. Como a nossa calculadora… Só que ao invés de somar, o programador o fez para danificar ou invadir o sistema onde ele for executado.

A guerra é travada no campo de quem consegue interceptar mais informações: O vírus ou o antivírus. Quem souber mais, vence. O antivírus joga com a vantagem de ser “do time da casa” e ter acesso privilegiado a todo tipo de informação de várias partes do sistema. Os demais programas, se possível, o ajudarão com informação.
Mas, acontece que o programador do vírus fará de tudo para que o vírus também se pareça com algo originário do sistema e, portanto, “também de casa”.

É um jogo de “gato e rato”. Nós corrigimos algo. Eles inventam algo novo. Nós fechamos uma porta. Eles acham um cadeado mal fechado.

Não é porque é divertido brincar disso. É porque é impossível se proteger absolutamente enquanto se mantém conectado. E os sistemas são colossais. Dezenas (e até uma centena) de milhões de linhas de código tentando trabalhar em conjunto, como já te mostrei.
Conectar-se é, também, se vulnerabilizar. Você precisa abrir portas. Vale pra Internet e vale pra vida.

Conhecimento não é, necessariamente, Poder

Mas é o caminho mais óbvio para ele…

Em “Game of Thrones” (HBO), há uma discussão entre duas personagens relevantes no jogo político, em que a primeira diz “conhecimento é poder”, e a outra personagem diz “Não. Poder é poder” e põe meia dúzia de gorilas, cada qual com a espada no pescoço do pobre coitado que trucou a outra, anteriormente.
Acontece que a segunda estava errada (a série mostra isso). Conhecimento é mesmo o que gera poder.

Para seguir nos exemplos Pop, umas das publicidades mais geniais que vi, veio da série “House of cards” (Netflix), enquanto eu estava em viagem de trabalho em Brasília (DF). Ao chegar no aeroporto de BSB, um cartaz usava uma frase célebre do personagem central: “Nessa cidade, um erro que quase todo mundo comete é escolher dinheiro antes do poder”, com a foto de Francis (Kevin Spacey) ao lado.
A frase já é forte o bastante, sozinha, mas colocá-la no hall de chegada de BSB foi o que mais marcou para mim. Eu vi. E os políticos também. Assim como os jornalistas. Afinal, “todo mundo” chega e “todo mundo” sai do Distrito Federal, semanalmente, por ali.

Para fechar no ramo Pop, em “Chernobyl” (HBO), em uma das reuniões tensas entre o então Secretário Geral do Partido Comunista (Mikhail Gorbachev) e seu gabinete de crise, o Secretário se queixa de ter que pedir desculpas para aliados, mas, também para os inimigos da então União Soviética. E uma das frases que ele diz é “nosso poder vem da percepção do nosso poder”. Ou seja… Poder, ao menos na política, não é algo totalmente real. Ele depende um bocado de quanto os demais percebem (ou acreditam) que você detém dele.

O que acho interessante de todas essas três citações é que, no fundo, fica provado que seja lá o que é o “poder”, ele descende do conhecimento. Quem sabe mais, pode mais. Se você conhece as pessoas certas, se você conhece os processos, os mecanismos, os meandros… Se você conhece gente que já tem poder, que já tem influência. Se você sabe como manipular isso tudo ao favor do que você almeja (sendo o que você almeja legitimo ou não)…

No fundo, conhecimento sempre foi sinônimo de poder. Não quer dizer que todos que detém conhecimento têm poder. Porque eles podem não saber como usar o conhecimento que têm. Ou podem não querer usá-lo, por autoimposição de limites e de valores éticos e de controles morais ou mesmo coercitivos por parte da Lei e do Estado. Ainda assim, não muda nada: Saber é o caminho para o Poder.

Democracias são sistemas

E, para mim, o governo Bolsonaro é “a consultoria siciliana” fazendo um PenTest na nossa Democrácia…

Sociedades e Ditaduras também são sistemas…

E todos os sistemas podem ser atacados por quem souber mais a respeito deles.

Para muitos apoiadores de Bolsonaro, episódios como o do ex-secretário Roberto Alvim são meras “falhas de trajetória”. “Descuido”. “Deslize”. “Bola fora”. “Acontece”.

“Ele escolheu alguém e esse alguém passou dos limites. Já foi demitido. Fim.”…

Se fosse tão simples, eu estaria dormindo bem nos últimos dias…

Na seção anterior, eu disse que o governo Bolsonaro é a “consultoria siciliana”. Aquela que “testa” o sistema da empresa, sem a empresa pedir.

Originalmente, eu ia dizer que o governo Bolsonaro era o “Red Team that went rogue”, terminologia conhecida na área de SI… Ou seja, “o Red Team que foi pro lado negro”. Eu voltei atrás de usar isso. Porque o Red Team, originalmente, trabalha para sua empresa…

Se a empresa do Bolsonaro é o Brasil, e se o Brasil pediu para ele testar a Democracia, ele testaria, acharia as falhas e brechas, e reportaria o que o Blue Team não fez, mas poderia ter feito, para melhoramos o sistema testado.

Se fosse um Red team que se corrompeu, teria começado certo, com as intenções certas, mas teria se perdido no caminho; por dinheiro, por más influências, ou qualquer coisa do gênero.

Ocorre que, para mim, a cada dia que passa, é mais evidente que o propósito de Bolsonaro (mas, mais do que o propósito dele, o propósito de quem o pôs lá [e você é bem inocente se pensa que estou falando do eleitor dele]) sempre foi esse: De testar o que ninguém pediu para testar.

De tentar invadir o que ninguém queria que fosse invadido.

Fica só a dúvida se quem o pôs lá, entende o risco de que ele – Bolsonaro – não obedeça ao combinado, e não se limite a nada, a não ser ao próprio senso obscuro…

Para entender porquê suspeito disso, você tem que saber como o Brasil surgiu

Mas, claro: Ninguém tem tempo para estudar história básica do lugar onde vive, então, vamos ao crash course:

Acho que um problema na compreensão de todos nós sobre a realidade histórica de como o Brasil virou República e de como chegamos à Democracia, é que fantasiamos muito a ideia de que essas conquistas ocorreram através de luta e sangue, numa disputa até o último homem pela “alma do que é o Brasil atual”…

Ocorre que não foi nada disso.

Historicamente, o Brasil só mudou através de acordos. Nós deixamos de ser colônia com um acordo entre as elites que mandavam no Brasil e nas Capitanias Hereditárias – sabe o Coronelismo típico do norte do Brasil? Então você conhece parte dos herdeiros das Capitanias – e a Coroa portuguesa (em 1822) e, depois, viramos República (acabando com o Império e a sucessão por sangue) com uma tapetada da nova elite agrária brasileira (fincada no eixo São Paulo x Minas) contra o Imperador (o que se sumarizou em 1889) e, só depois, viramos uma Democracia quando a elite brasileira permitiu que parte de sua população votasse diretamente para presidente, em 1894, contando com apenas ~350 mil eleitores e voto censitário – disponível para quem tem posses (e, portanto, não universal, como hoje) (fonte).

Quer saber como voltamos a ser democráticos depois do Golpe de 1964? Com apoio das elites, especialmente, as que controlavam empreiteiras e a mídia, ambas originalmente apoiadoras do Golpe e, mais tarde, descontentes com o governo militar que ajudaram a instalar (fonte).

Então, se por algum momento você já pensou que algo “disruptivo” (neologismo, para o texto ficar mais chique) ocorreu em solo brasileiro simplesmente por “sangue, ideais e glória”, sinto muito ter de estragar sua visão.

O Brasil é fundado como um grande latifúndio. Uma terra para a exploração. E quem mandava no latifúndio era quem ocupava o posto de senhor da produção (a despeito do tipo dela). E isso nunca mudou na constituição do que é o Poder, no Brasil.

Acho que a ilusão de que “o povo está no controle” que vemos por aqui, vem muito da nossa alta exposição (quase sempre, Hollywoodianizada [tente pronunciar isso rápido, 3 vezes]) ao que foi a história dos EUA. Ocorre que lá, diferente daqui, a colonização tinha o central objetivo de fundar uma nação nova, longe do que seus fundadores consideravam a tirania do império britânico (não que, em larga medida, não fossem eles mesmos tiranos terríveis, como comprovaram – ao preço da existência – os nativos de lá).

Brasileiros ao invés de “brasilianos”

E isso explica parte da nossa relação com este lugar…

Já, o Brasil sempre foi um lugar de onde tirar riquezas e mandar para o império português que, antes que você ouse menosprezar, foi nada menos do que o império ultramarino (ou “global”) mais poderoso do período alto da Grandes Navegações, controlando nada menos do que 14 colônias ao mesmo tempo (fonte).

O Brasil carrega de forma tão forte no DNA, a coisa de “terra para se extrair”, e aonde nada se deve investir ou edificar que, diferente de outros povos como, colombianos, mexicanos ou mesmo americanos, nós nos chamamos “brasileiros”.

Ocorre que em linguística portuguesa, o sufixo “ano” destina-se usualmente à nacionalidade de um indivíduo. Já, o sufixo “eiro” é normalmente usado para profissões e ocupações como, carroceiro, barqueiro, cabeleireiro, padeiro, marceneiro…

Assim, “brasileiros” eram os homens que, ao longo da primeira fase da ocupação pelo império português em Pindorama (o primeiro nome da terra que vocês conhecem como “Brasil”), retiravam pau-Brasil daqui para mandar para a Coroa e sua corte.

Ou seja: O que conhecemos como nosso gentílico é, na verdade, o nome original da profissão de quem entrou para extrair e devastar, e quase fez sumir com o recurso natural que, mais tarde, deu nome a uma “nação por acidente”; nação sempre brincando com o risco de se extinguir, pela fúria da própria sanha extrativista (o extrativismo pode até não ser mais tão palpável, mas segue na mentalidade “retire tudo que possa daqui, tão rápido quanto puder”) de cada filho deste solo que és mãe gentil…

Nação por acidente” porque nunca foi a intenção dos colonizadores que isto aqui se tornasse um país. Não fosse a necessidade estratégica de proteger a Coroa, ante o avanço Napoleônico, – estratégia que, antes que você despreze, foi formalmente elogiada pelo próprio Bonaparte – a família real jamais teria pisado aqui e o boom civilizatório que se instalou no Rio de Janeiro e, mais tarde, contagiou o resto do país, jamais teria se iniciado – pelo menos, não com a força e forma como se deu.

Nosso passado não determina nosso futuro

Mas ignorá-lo é de uma burrice descomunal…

Eu tenho a certeza, por posicionamento moral e ideológico, de que todos podem mudar. Se sua história começou de forma ruim, torta ou mesmo acidental, nada disso significa que sua existência precisa ser ruim, torta ou mero acidente. Em resumo, não creio em “destino” e não creio em “caminho sem volta”. Meu entendimento de mundo simplesmente não me permite ver as coisas por este prisma.

Se o Brasil é “uma nação por acidente” e uma República Democrática porque os poderosos assim permitiram, isso não significa que esse lugar não pode ser uma Democracia verdadeira, plena, e em que o povo em sua totalidade, e não oligarquicamente, decide os passos seguintes do país, e com a qual ninguém brinca ou manipula isoladamente. Mas, isso não é mágico. Não vai acontecer porque “tudo que eu quiser, um cara lá de cima vai me dar”… Aliás, se eu esperar “o cara lá de cima” resolver o Brasil, ferrou! Porque, na fila, tem o continente africano inteiro, que está esperando a ajuda há mais tempo, e é bem mais necessitado.
Brincadeiras maldosas à parte, estou tentando dizer o mais óbvio dos óbvios: O Brasil é o que suas elites poderosas permitem que ele seja e, assim que essas elites cansam do que está em curso, elas fazem o que sempre fizeram: Mudam as regras do jogo, com ou sem uso de força bruta. Tanto faz. Elas não se importam de usar a força. Mas se der para parecer que foi “do povo, pelo povo, para o povo”, tanto melhor. Não por ética, mas pela encheção de saco internacional que a força bruta gera.

E é por não reconhecermos o passado que tomamos por garantido e damos pouco valor ao risco de que nada é em prol de você, que não pertence a nenhuma das elites fundadoras desse lugar…

Esqueça a bobagem de classe média vs. classe pobre. Esqueça “burguês”, e esqueça “esquerdista”… Para essas elites que estou citando, somos todos a mesma coisa: Engrenagens e peças de reposição. Se algumas estragarem o andamento da máquina e do sistema que essas elites idealizaram e sempre mantiveram no curso, elas arrancam as peças “defeituosas”, removem as ameaças, e recomeçam a máquina, tudo de novo.

Bolsonaro é parte desse reset. Ele foi escolhido por elites agrárias e por elites financeiras, e suportado por parte da elite descontente com a hegemonia atual de certa família na imprensa nacional (de vez em quando, as famílias que pertencem à uma dada elite ficam bravas com a hegemonia de outra família naquele segmento; é o que acontece no cenário da imprensa brasileira, hoje).

A elite industrial e financeira fez Bolsonaro adotar Paulo Guedes porque a agenda dele vai ao encontro das necessidades atuais dessas elites de competir com o resto do mundo.

“Rodrigo, pelo amor de Deus, que viagem é essa? Parece papo de conspiração, conversa de sindicalista… Esquerdista…”

Garanto: Não tenho nenhuma simpatia pela proposta de Marx para os problemas do mundo, não concordo com o aparelhamento político dentro de sindicatos que deixam de defender seus associados da real agressão nas Empresas, pra eleger deputado, prefeito(…), e nunca vou chamar ninguém de “companheiro/a”, para ganhar votos ou aplausos…

Isso dito, nada na minha discordância faz com que eu me cegue para a solidez do diagnóstico que alguns desses agentes criticados fizeram e fazem. Eu posso não concordar com “o tratamento prescrito” (e, de fato, não concordo), mas o diagnóstico está certo sim:

O Brasil é um país em que a História prova, por via factual, que sua idealização foi sempre a de terra a ser explorada, e que aqueles que receberam ordens do império para explorá-lo, continuam comandando o jogo através dos tempos e das gerações. Desde a independência, poucas novas famílias surgiram nos seios dessas oligarquias que comandam “o show”. Vou citar algumas áreas onde essas elites residem:

Temos elites que comandam a extração de minérios.

Temos elites que comandam a produção agropecuária.

Temos elites que comandam os bancos.

Temos elites que comandam as indústrias.

Temos elites que comandam a imprensa.

Temos elites que comandam a justiça e o braço punitivo do Estado (Forças armadas, polícias).

E todas essas elites são amigas entre si e se conhecem muito bem. E todas elas comandam como o show chamado “Brasil” é conduzido. E quando elas cansam de brincar de alguma coisa com o resto de nós, que não temos sobrenomes de sangue azul, elas usam todo seu poder e influência para “resetar o jogo”.

“Rodrigo, então, você está sugerindo que não existem elites nos EUA, por exemplo? É um problema só nosso?”

Mas, que tipo de idiota você acha que eu sou???

É claro que existem famílias no comando de várias áreas fundamentais à vitalidade e poderio em cada país do globo (é um globo. Aceitem).

Fica para outro dia e para outro post, mas é exatamente por saber que elites comandando o jogo existem em todos os lugares, que jamais concordarei com a visão liberal da Economia, especialmente pautada na ideia de que a regulação estatal é inimiga do “fair play” de oportunidades, e de que a desigualdade do mundo pode ser resolvida via “meritocracia” (spoiler de post futuro: Se você tem esse tipo de acúmulo de poder, passado de geração em geração, “meritocracia” não pode existir de forma plena e plural, senão em condições muito específicas de avaliação; e aí, deixa de ser meritocracia, de fato)…

Mas, como Bolsonaro entra nisso tudo?

Ele é útil, mas, ele também é instável…

Quem “soltou o cão da coleira”, esperava que ele mordesse uns traseiros que andavam muito ousados e, em seguida, esperavam retorná-lo à coleira. Ele poderia brincar com o sistema, mas sem quebrar…

Acontece que Bolsonaro tem suas próprias ideias de ”certo e errado” e não é muito afeito à hierarquia e obediência não…

“Oi? Você está falando que um capitão reformado do Exército Brasileiro, não é afeito a hierarquia e obediência?”…

Bem, você já respondeu, se pensou assim: Atenhamo-nos, ao “reformado”.

O Brasil é um país em que todos são iguais perante a Lei (CF/88, Art. 5º, Caput). E é por isso que quando Juízes roubam e corrompem (Nicolau dos Santos Neto, já ouviu falar?) eles são punidos com aposentadoria integral (cassada década depois, sem devolução do que foi pago, só pra dar o “cala boca” em quem reclamava desse absurdo que continua acontecendo aos montes), e é por isso que Oficiais das Forças Armadas acabam reformados (aposentados) quando atentam contra a própria instituição… Porque esse é um país em que todos são iguais perante a Lei…

Bolsonaro foi “reformado” porque, não tendo seus desejos salariais atendidos pelos superiores, publicou plano de como atentar contra o próprio Exército Brasileiro (fonte). Ele dirá que foi inocentado do processo, e é claro que foi: Porque, como todos são iguais perante a Lei, no Brasil, Oficiais do Exército não “botam pra quebrar” contra outros Oficiais do Exército. Se Bolsonaro fosse Praça (Soldado, Cabo, Sargento), teria morrido em algum porão pelo que fez, da mesma forma que ele sempre deseja para “os comunistas” (seja lá quem são esses “comunistas”; talvez, eu mesmo seja um, sem saber).

Por não ser alguém que respeita hierarquia e não se sente obrigado a obedecer a lei (nem mesmo a lei marcial, mais rígida e que se aplica ao militar), ao soltar Bolsonaro da coleira de onde ele jamais deveria ter sido solto, seus novos donos (que bancaram sua candidatura com todas as armas disponíveis, incluindo o financiamento milionário de Fake News [fonte]) esqueceram de verificar o óbvio: Ele é um “cachorro louco”, com suas próprias ideias do que é certo e errado, e de quem é bom e de quem é mau.

E Bolsonaro (e seus escolhidos) vem fazendo um PenTest na Democracia

E você não deveria achar que é “sem querer”…

Finalmente, no clímax desta opinião (e é “opinião” porque não posso provar materialmente que Bolsonaro pensa como eu aponto que ele pensa; e eu não acho que minha opinião transforma hipóteses em fatos…), eu proponho que Bolsonaro, seus ministros, seus filhos, secretários, assessores, e todos aqueles que já participaram de algum ataque à nossa Constituição, à outras Instituições democráticas, à parte da Imprensa que não se alinhou (e que também é uma elite, mas é paradoxalmente necessária à Democracia) e etc.; estão todos participando em um PenTest do quanto a Democracia aguenta.

Quer dizer… Se a Democracia é um sistema, ela é só o Front-End (o sistema exposto). Por trás dela, há o Back-end (o sistema de suporte) que é a Sociedade…

Então, na verdade, quando Bolsonaro e seus partidários testam a Democracia brasileira, o que eles realmente estão testando são os limites do povo brasileiro…

O que eu realmente acho que Bolsonaro tenta descobrir é o quão difícil seria tomar o poder do Brasil para si, e quanta resistência popular, social, institucional, e sistemática, ele realmente teria se tentasse fazer isso…

Então ele tenta calar a mídia que não “fecha com ele” (não porque a mídia é boazinha, mas porque ela não confia mais que ele “vai jogar o jogo dentro das regras”). E se batemos palma para o cala-boca dele (ou se a maioria bate palma), ele sabe que calar a mídia não será difícil.

Depois, alguém a serviço dele diz que fechar STF e Congresso é fácil de fazer. Só precisa de um soldado e um cabo… E as pessoas aplaudem de novo. E eles medem se os aplausos são mais altos do que as vaias. Se são, mais um ponto pró-invasão…

Depois, alguém brinca com direitos e garantias, aqui e ali, e, na verdade, tudo parece muito ao acaso, muito desconectado…
E se as vaias superam os aplausos, aí, surge alguém do governo para pôr panos quentes e calar as bocas críticas… E eles dizem “não… Já passou, foi um tropeço, foi um descuido, um exagero…. Acabou gente! Circulando… Não tem mais nada para ver aqui” …

Mas, se você ousar ser um pouco menos crente… Um pouco menos “cordeirinho”… Se você ousar pensar que esses ataques são sistemáticos, coordenados, e não ocasionais ou acidentais, e miram as várias áreas que compõem um sistema que representa uma sociedade em regime democrático…

Então você vai ser capaz de supor o que eu suponho:

Que Bolsonaro está fazendo um PenTest que ninguém o contratou para fazer. Queriam que ele brincasse com o sistema, mas que parasse antes de quebrar. Mas, ninguém sabe ao certo se ele vai parar.

E, como eu, você também vai começar a suspeitar de que quando Bolsonaro estiver convencido de que é possível “invadir o sistema”, só Deus sabe o que ele vai fazer com o poder adquirido sobre ele.

Teoria da Conspiração, sim. Em algum grau, pensar como penso aqui, exige uma dose de imaginação, já que PROVAS não são tão fáceis de conseguir, e jornalismo investigativo não é minha profissão. Mas, só estou ousando pensar além da mensagem oficial de que tudo não passa de “mal-entendido”. De “fala fora do contexto”. De “excesso”.

Ou “coincidência”… Imagino o tamanho do esforço do Cosmos para fazer um Secretário de Cultura tocar Wagner, enquanto repete quase que textualmente o ideólogo-mor do Nazismo… O Cosmos precisou alinhar uns 100 planetas para essa coincidência ser viável.

E ainda que eu esteja errado (e, não duvide caro[a] leitor[a]: Torço a cada segundo pra errar feio nisso aqui), e que seja, mesmo, tudo apenas uma grande pataquada de incompetentes e inaptos, escolhidos a dedo pelo sujeito eleito pelo voto popular de gente que pensa só com o fígado… O estrago desses discursos não poder ser menosprezado, ainda assim.

Se Bolsonaro não é mesmo a favor de discursos Nazistas (e não apenas “porque os judeus ficam de mimimi” [termo que ele adora utilizar], mas porque é filosoficamente contra), o fato é que seu discurso virulento, raivoso e segregacionista, dá o reforço moral para gente lunática sair dos porões onde estava trancada com toda sua loucura e perversidade.
Se Bolsonaro não apoia realmente o espancamento de gays e lésbicas, seu discurso de que estes são “menos que gente” reforça, no coração de gente bestial, “o direito divino” de resolver o que Deus não parece se importar. Porque se Deus é tão poderoso, e gays o enojam tanto, ele poderia matá-los com o simples comando da palavra, ou até proibi-los de existir, fazendo com que todos nascessem sempre héteros, não? (E sim, isso é uma provocação para quem se irrita mais do que Deus parece se irritar com os problemas privados da vida sexual alheia).

Enfim: Se Bolsonaro não é o Demônio que suas falas e atos demonstram, no mínimo, ele avaliza, com direito à chancela presidencial da República Federativa do Brasil, todo tipo de mal e danação que todo ser humano, realmente de bem, repudia como: Por exemplo, matar alguém que pensa diferente de mim, ou que ama alguém que eu não amaria.

E esse penúltimo parágrafo é o melhor cenário. Eu garanto

O pior, eu expus ao longo do texto inteiro…

Mas, sumarizo: Bolsonaro está testando o quão vulnerável é o sistema democrático brasileiro. E nem seus donos (que o tiraram da coleira), nem seus eleitores; mas só Deus sabe o que ele fará quando descobrir as vulnerabilidades desse sistema.

E não existe sistema totalmente seguro…

Sobre Perdas & Danos

Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 927, Código Civil de 2002.

Este vai ser um daqueles…

Começo, de cara, com um “disclaimer”, para gastar minha cota de inglês desnecessário e, também, para te avisar de que você, talvez, queira calibrar o que vai ler.

Mas, calibrar como?
Bem, imagine um segmento de reta com dois pontos extremos entre si, numa graduação centesimal de 1 a 100, sendo que à extrema esquerda, temos o otimismo, e à extrema direita, o pessimismo. O que você vai ler deve estar, em sua forma in natura, muito próximo da marcação de “70”, ou até mesmo “80”, já perto do fim do lado direito deste segmento proposto.

E, aqui, temos um duplo exercício: Um exercício simplório de geometria, misturado com um exercício avançado de disposição da liberdade. Cabe a você, caro(a) leitor(a), decidir se o que digo está muito distante da realidade porque é deveras pessimista, ou se está muito longe da verdade porque ainda não é pessimista o suficiente.

Você também pode concluir por uma terceira via: O texto atinge o patamar de “realidade”, pois, ele tem o pessimismo que a realidade circunstancial pede. Mas, se este for seu caminho, você escolheu olhar para a questão por um ângulo pessimista, já que no exercício original, eu propus que minhas palavras tenderão à extrema-direita do segmento; na altura da marcação em que se lê “70” ou “80”, em um segmento com graduação centesimal de 1 a 100.

Todos os modelos estão errados

Mas, alguns são úteis…

Quem dera a frase fosse minha. O autor (para alguns, apenas o difusor) dela, o estatístico britânico George Box, a cunhou diante de um desafio estatístico que lhe foi destacado. Eu já falei dele por aqui. Eu lembro. Lembro de tudo que escrevi. Isso é, muitas vezes, uma maldição, já que me ajuda a pensar em quanta coisa eu já disse e quantas delas eu queria poder ter dito melhor, diferente, ou nem ter dito. Estou fugindo do tópico. Voltando, porque “recordar é viver” (que também não é minha) e na raiz da palavra “recordar” achamos “repassar através do coração”. Como este é um texto emotivo, segue:

George Box a popularizou depois de perceber que o problema com as fórmulas e representações, não só no campo da Estatística, mas, também, nas Ciências de modo geral, se dava porque um modelo só pode representar um certo tanto de dados, variáveis e informações. Não importa o quão agressivo seja o teu esforço em coletar tantos dados e aperfeiçoar tanto quanto possível suas fórmulas e equações, elas são, naturalmente, só uma tentativa de representar uma pequena parte da Realidade e jamais Ela por inteiro (com letra maiúscula, como se fosse uma entidade).

Como modelo, eu adotei o Pessimismo

E isso já me causou todo tipo de problemas…

Todo mundo que convive comigo sabe que eu raramente considero que tudo vai dar certo “de largada”. E essa é uma decisão racional de como encarar o mundo e tudo o que reside nele.

Para a maioria dos brasileiros, o Otimismo é quase uma marca registrada da “brasilidade”, ou, do que é ser brasileiro. Assim, o fato de eu ser aberta e conscientemente pessimista causa uma certa surpresa, quase sempre seguida de uma certa rejeição porque, como já dito, ser otimista é uma marca do que é ser brasileiro, e ser pessimista é uma negação de boa parte da brasilidade.

Isso tudo já foi tema de algumas sessões de terapia, claro, porque, modo geral, as pessoas ao meu redor sempre esperam que eu seja mais otimista. Ainda que eu conseguisse, eu não escolheria ser, enfim. Não é quem eu sou, nem o caminho pelo qual eu percorri. A conclusão, junto à minha psicóloga, foi de que meu pessimismo não é um problema. Nas palavras dela, eu tenho uma percepção acentuadamente analítica das situações e, por inúmeras experiências passadas, e por lembrar delas, eu tendo a não crer nos melhores resultados, porque, bem… Porque os melhores resultados não são a regra, nunca. Prova?

Em Probabilidade, um ramo da Matemática, sabemos que em um jogo de 6 números escolhidos entre 1 e 60, temos uma chance de sucesso, contra 50.063.859 (cinquenta milhões, sessenta e três mil, oitocentos e cinquenta e nove) de fracasso. Estou falando da Mega-Sena, claro, mas, aplique o mesmo modelo (lembrando que todos estão errados, mas, alguns são úteis) e você verá que o Otimismo “à brasileira”, como seu irmão, o Pessimismo extremo, é uma distorção da Distribuição Normal de eventos em uma dada série. Em resumo, o jeito otimista do brasileiro é um problema porque não nos revoltamos com o que está errado, sempre contando que na nossa vez vai dar certo (embora a probabilidade diga o exato oposto). E, claro, se você perguntar para o último ganhador da Mega-Sena, dane-se as probabilidades: Ele jogaria todos os dias da vida dele (porque, óbvio, para ele a probabilidade foi “a uma”, e não as 50.063.859 que todo o resto de nós experiencia durante a vida toda).

Voltando ao meu divã, minha psicóloga e eu concluímos que meu pessimismo ainda não é um problema. Ele é acentuado, claro, construído às custas da pilha de experiências que eu vivi, e do resultado das minhas tentativas, mas, nas palavras dela (de novo): O pessimismo só se torna um problema quando você deixa de tentar por temor das probabilidades contra si ou contra o intento. De outra forma: Enquanto meu pessimismo não me impedir de tentar, ele apenas me fará ter menos amigos e menos simpatia. Em troca disso, ele também me ajuda a prever o que a maioria não conta que possa acontecer. Desse modo, se eu for inteligente o suficiente, posso usar isto a meu favor. Basta prever os riscos que os outros negligenciam, e preparar planos para cada cenário de falha. Não neutraliza o resultado final da probabilidade (a Mega continua resultando em uma chance “pró” em mais de 50 milhões “contra”), mas me faz contar menos e menos com o “final feliz automático”, e mais com a diversificação de planos e caminhos para atingir as metas que tenho.

Mas, eu posso justificar racionalmente o Pessimismo como uma forma inteligente de encarar as situações. É o que faço a seguir.

Todo sistema é entrópico

Melhor dizendo: Todo sistema real é entrópico…

A Entropia é uma propriedade originária do ramo da Termodinâmica, e determina o grau de desordem de um dado sistema. Essa desordem não deve ser confundida com “bagunça”. O exemplo clássico é o cenário do pote com dois grupos de bolas, cada um de uma cor, preenchendo 2/3 do pote. O terço restante está vazio. No estado inicial, as bolas azuis estão no fundo do pote, e as vermelhas por cima das azuis, totalmente separadas. Então, tampamos o pote (portanto, esse sistema é, agora, hermético) e balançamos um pouco. As bolas vão se misturar. E depois, balançamos mais um pouco. Elas se misturam mais. A Entropia é a medida de quanta desordem há no sistema atual, desde a situação inicial dele. O que ocorre é que, não importa o quanto balancemos o pote, ele nunca mais voltará à situação inicial.

É por causa disto que, com a tecnologia que temos, e respeitando as leis da Termodinâmica, nunca conseguiremos criar um sistema moto-perpétuo. Um sistema em que um gerador alimente um motor, e este alimente de volta o gerador, está fadado a desligar, não importa o quão eficiente seja o gerador ou o motor. Todos estão sujeitos a perder energia na forma de calor, e a entropia do sistema garante que nada voltará à forma original. Portanto, é impossível conservar a energia original (no exemplo, a rotação do eixo do motor) e convertê-la de maneira ordenada para outra forma de energia (como a energia elétrica do gerador) sem que este processo gere um desvio considerável de energia na forma térmica.

E assim é com todos os sistemas. Não importa o quanto cuidemos do nosso corpo, a perda de vitalidade ocorre ao longo da vida. Não importa o quanto cuidemos de uma máquina, o destino dela é parar de funcionar pelo desgaste. Mesmo em sistemas financeiros, onde o acúmulo de capital sempre alavanca o crescimento deste mesmo capital, a regra tende a permanecer: Para manter o poder de compra de um dólar estado-unidense de 1860, o consumidor norte-americano precisa desembolsar 30,99 dólares atuais (fonte). E estamos falando de uma economia que, com erros e depressões, deu mais certo do que errado ao longo dos últimos dois séculos. Em outros sistemas financeiros, a perda é mais evidente, embora sistemas financeiros não se comportem como sistemas termodinâmicos. No primeiro caso, as coisas valem o que acreditamos que elas valem. No segundo caso, não importa a opinião, os sistemas vão gerar calor e desgastar. Ainda assim, o primeiro se comporta, muitas vezes, como o segundo.

E tudo isso para demonstrar que a escolha pelo Pessimismo é uma escolha lógica. Na natureza, e mesmo nos sistemas artificiais (em grande parte), a Entropia está presente, e todos os sistemas tendem à decadência. No campo da Probabilidade, a Distribuição Normal de eventos, tanto contra, quanto a favor de uma dada situação, demonstra que a situação ótima é tão remota quanto a pior, e o que resta são situações que podem ser boas ou não, mas, se só uma situação lhe serve (como no caso da Mega-Sena, ou em outras situações decisivas com apenas um desfecho bom), as chances estão todas contra.

Assim, eu contrario a brasilidade. Eu contrario um dos traços mais marcantes do meu povo: Contar com o melhor. E, com isso, não faço tantos amigos, nem sou tão popular quanto poderia ser se adotasse um estilo altamente positivo e otimista (quem sabe, com falas de coach e um coque samurai) em relação ao desenrolar das coisas e dos atos da minha existência. Curiosamente, isso me agrada. Viver em função do que os outros esperam de você é sempre um enorme desgaste (porque os sistemas, como eu já disse, sofrem com a entropia, e as relações humanas não escapam disso). Manter relações com base em otimismo requer um enorme dispêndio energético para repor o que se perde com a entropia delas.

Eu não terei a vaga de gerente de vendas. Isso é certo. Ele precisa vender sonhos, e eu não acredito neles por essência do meu pensamento. Também, deve ser difícil me tornar um político de destaque. Meu povo conta com gente que venda um otimismo enorme, e raramente meu povo reage bem a pessoas com uma visão cética da realidade. Ainda assim, a Escola Cética tem representantes em todos os campos da política, em vários momentos históricos, e – contraditoriamente o bastante – há alguma esperança para um pessimista como eu.

Ter uma abordagem pessimista, se basear numa análise pessimista da realidade, de maneira nenhuma me impede de ter metas, planos e até sonhos. Apenas me coloca numa situação de não empolgar ninguém com o que tenho a dizer. Eu não consigo, modo geral, dizer para as pessoas que tudo vai acabar bem enquanto elas estão amarradas na linha do trem de carga. O que consigo fazer, por outro lado, é dizer a elas que se decidiram enfrentar bandidos ferroviários, o melhor a se fazer é andar por aí com facas e canivetes e, se possível, ter alguém escondido para cortar as cordas na hora derradeira. Não é tão motivador. Sei disso. Mas, me trouxe até aqui, e onde outros tropeçaram, eu prosperei. Por outro lado, minha análise me diz que não vou tão longe quanto quem pula por cima de precipícios do mesmo modo que pula da calçada para a rua, por sobre o meio-fio. Estou em paz com isso, todavia.

A antiga cultura chinesa (seja no Confucionismo ou no Taoismo, ou mesmo antes dessas Escolas) sempre ensinou que o equilíbrio é a mais importante virtude de alguém sábio. Mais importante do que ser muito otimista ou muito pessimista, muito prático ou muito teórico, muito sonhador ou muito cético. E assim, o que tento fazer é me cercar de pessoas que “calibrem” esse modelo de análise do mundo que tenho, de tal modo que eu tenda ao equilíbrio, mesmo que de forma externa e imperfeita. Trazer esse balanço para dentro de mim ocorreria de forma artificial e não é quem eu sou, portanto, esse tem me parecido o melhor remédio contra um eventual desequilíbrio tendente ao pessimismo extremo.

Mas, não é só sobre mim que eu quero falar. Já falei o que você precisa saber para entender “de onde vim”, e como eu vejo a situação a ser exposta em seguida.

Meus amigos foram embora

De novo…

Todos os anos, nos últimos tempos, o Daniel e a Heloísa têm feito um sacrifício árduo. Saem de suas casas, ao Norte, e vem para o Brasil. Isso tem alto custo. Moraram no México. Agora, moram nos EUA.

Eu me lembro bem de quando foram de vez. O Daniel me ligou no meio de uma semana comum e sem qualquer ocorrência de grande vulto, e disse que precisava conversar comigo e de alguns conselhos.

Somos amigos desde os meus 15. Já passamos por todo tipo de história. Momentos de profunda depressão, e de grande alegria. As bandas de rock, as desventuras amorosas. Os churrascos, as festas, as roubadas. Atravessar parte do litoral paulista sem plano e sem renda, o “sal de forno”, a noite na rodoviária. O cursinho, o ingresso na faculdade pública, o abandono de certos planos e sonhos. O começo da carreira, mais desilusão, e a fase da ascensão. Cada um viveu isso em um dado momento, e contou com e para o outro.
Foi, sem sombra de dúvidas, uma amizade que definiu bastante como um e o outro cresceram e lidaram com uma fase turbulenta e delineadora do que é a vida humana. “Foi”, mas continua sendo, claro. “Foi”, porque a distância, o fuso e outras coisas tornam ela menos presente e menos constante. Mas, também continua sendo porque, sempre que podemos, estamos interagindo dentro dos limites impostos pela realidade. Além disso, depois dos 30, você não se transforma por completo, então, a amizade não se torna mais a parte que define como você vai ser. Você, no máximo, apara algumas arestas, fortalece conceitos e preconceitos, e vai ganhando experiência para preencher seu empirismo adiante.

O Daniel é um homem muito inteligente e, uma vez em uma multinacional, não demorou para começar a ganhar notoriedade, desafios e cargos maiores. Hoje, gerencia quem gerencia, e está cada vez mais perto do nível estratégico. E é bom dizer que, no meio disso, ainda houve uma demissão durante a crise, e foram buscá-lo quando a coisa normalizou. Não é preciso defender adiante, portanto, o nível diferenciado de profissional que ele sustenta.

O título dessa parte pode soar meio ofensivo a todos os outros amigos que ficaram (e os que ficaram são mais numerosos do que os que foram). Não é a intenção, e lamento se alguém se sentiu “menos amigo”; isso nunca foi a missão. Mas, eu precisava falar sobre perdas e danos.

Eu perco e sinto os danos, toda a vez que eles se vão. E isso ocorre, felizmente, uma vez por ano, nos últimos anos. É caro e doloroso para o Daniel e para a Heloísa. E para mim, é só doloroso. Mas, se isso é tudo o que podemos ter, pela realidade imposta, é melhor passar por isso do que não ter em absoluto. Óbvio.

Voltando para a conversa que tivemos antes do Daniel bater o martelo pelo plano de assumir um time no México, nós passamos pouco mais de duas horas avaliando o que sabíamos dos dois cenários. Aquele em que ele não fazia nada para sair daqui, e aquele em que ele “encarava o mundão”.

Eu juro: Eu procurei.

Procurei uma única razão para dizer “cara, é melhor sair dessa. Isso pode ser bom no curto prazo, mas não vai ser bom no médio e no longo”. Ou algo como “por mais tentador que seja, as oportunidades que você terá aqui serão mais recompensadoras do que qualquer aventura por lá”.

Acontece que eu não achei nada.

E eu tive que dizer “Daniel, eu lamento por nossa amizade e por tudo que fazemos juntos… Mas, não consigo achar uma só razão para você declinar esse convite”. E acho que ele disse algo como “É o que eu temia”, seguido de uma risada um pouco nervosa. Não havia alegria. Só razão e pessimismo.

Que o Dani e a Helô não me entendam mal: Eles e a Ruby (a companheira de quatro patas) estão muito bem. A vida tem sido leal com o esforço e com o sacrifício. Ele tem crescido mais e mais na empresa, e a Helô sempre elogia as experiências no México, e começa a ter novas experiências nos EUA, também. Tem a bagagem cultural, as línguas aprendidas, as vivências, as paisagens, os acessos aos bens de consumo de forma muito menos sofrida; enfim… Tem tudo isso.

Mas foi a razão e o pessimismo que nos fizeram perder o Dani e a Helô “para o mundo”. E eu posso dizer, sem medo de errar, que se eles tivessem um pouco mais do país que nasceram, não teriam ido. Um pouco mais de confiança. Um pouco mais de segurança. Um pouco mais de perspectiva. Um pouco mais de tudo. Porque quando eles decidiram fechar as malas, deixaram para trás a chance de conviver com todos os que faziam sua vida, até ali, tão preciosa. E ninguém abre mão disso “por pouco”.

Aqui, eu imagino que vão surgir filósofos à esquerda e à direita das correntes possíveis. Vão defender que um sonho requer sacrifícios. Outros dirão que eles não deixaram de fato, e que dá para amenizar a distância com tecnologia, enquanto outro fim de ano não chega. Haverá os que atacarão e apoiaram cada uma das escolhas na mesa. Ir. Não ir. Sacrifício. Raízes. Aventura. Família. Cada qual valoriza, na ordem em que aprendeu a valorizar, cada tipo de argumento. Para mim, são todos inúteis no caso concreto.

No caso concreto, só admito a resposta vinda do Daniel e da Heloísa. Eles sentiram na pele, eles pagaram e pagam o preço, e eles colhem os frutos, doces ou amargos, ou até agridoces… Mas, na falta deles, eu estava perto, participei, e ouvi quando o martelo foi batido. E o que não foi dito, mas estava lá, foi “Caramba… Então é isso mesmo? Vamos sair daqui? Vamos ter de sair…”.
Era um misto de decepção por não achar os motivos certos para dizer “não é a hora, não é pra mim, não é bom” … Com um misto de medo do desconhecido. Impulsionado pelo sonho quase omnipresente nas populações de países pobres de imigrar para lugares melhores, ou, para ser mais justo, “aparentemente melhores”, já que você pode ter uma vida boa no Brasil, e passar por apuros enormes ao morar na Finlândia; o que quero dizer com isso é que “melhor” depende absolutamente da resultante da tua experiência com o exterior, e não de indicadores mundialmente calibrados ou pesquisas de perspectiva nacional.

E acho que o lado preocupado do Daniel contou comigo para achar a razão inquestionável para não ir. Quero dizer: Quem me procura para esse tipo de assunto não pode nunca achar que vai ouvir algo como “nossa, vai ser demais, e você vai ver o mundo, e vai fazer outras amizades, e vai ser incrível”, ou “nossa, agora tenho uma casa pra ficar quando eu for naquele país” … Eu já disse: Se você me conhece há tempos, sabe que sou alguém com um modelo pessimista de análise, e que eu acredito na entropia dos sistemas. Se não me conhece, bastaria ter lido, com mais cuidado, o começo dessa publicação.

Para “azar” do lado preocupado do Daniel, meu modelo de análise não se corrompe para o lado que mais me agrada. Teria sido “fácil” (não moralmente fácil) manipular as situações, dados e perspectivas, e incitar os medos mais profundos do amigo, que já me ligou preocupado e aflito, e tudo para mantê-lo perto de mim e de todas as pessoas que compõem as nossas vidas, em comum ou não. O lado preocupado do Daniel talvez amasse a resposta “essa é uma péssima ideia”.

Não foi como decorreu. Analisamos o que estava na mesa. Analisamos a perspectiva do mercado brasileiro versus as expectativas que o Daniel tinha para a própria carreira. Analisamos o que ele esperava para a própria vida, para a vida a dois com a Heloísa, e o que ele queria proporcionar para si e para ela.
E sair do Brasil foi a decisão óbvia. Mesmo em 2014, quando tantos conterrâneos meus ainda achavam que o Brasil tinha entrado numa virtuosa crescente que nos levaria ao patamar de país que honraria a já trágica e eterna promessa de “país do futuro”. Trágica sim, porque, desde que isso foi prometido aos brasileiros, parece que todos nós que nascemos aqui, seguimos de braços cruzados esperando alguém (excluindo nós mesmos) fazer esse “país do futuro” acontecer.

E a lista não parou de crescer

E outros amigos e colegas seguem saindo…

Alguns eu conhecia bem, outros, eu cheguei a estar no casamento. Alguns, eu apenas gostava de trocar meia dúzia de palavras, mas, de todo modo, todos deixaram pessoas queridas aqui, como o Dani e a Helô.

Renato e Diego, esposas e filhos, foram para Lisboa.

O Rodrigo foi para Foster City, na California.

Antes deles, o Fernando já tinha ido para Vancouver.

O Paulão foi para Nova York.

O RodG já estava em Seattle.

O Leo Fagundes, esse iria para os EUA de qualquer jeito, em qualquer circunstância (legal, claro). Conheci poucas pessoas tão determinadas a morar lá.

Recentemente, o Mark, colega de trabalho na HP, voltou com a esposa brasileira para sua terra natal, a Holanda, depois de mais de uma década aqui.

Antes ainda, já havia outros colegas e amigos indo para o Texas, San Francisco, San Mateo, Seattle, Londres, Melbourne, Sidney, Helsinki…

A lista nunca desacelerou e, na verdade, depois de 2016, a lista apenas cresceu e ficou mais rápida, mais imprevisível. Gente com quem conversei um pouco antes e me disse que não tinha motivos para sair, saiu pouco depois da conversa. Senso de oportunidade, vai ver. Mas eu acho que não. Tem algo a mais.

Não há nada de errado em sair

Se pelos motivos certos…

Ora… O “motivo certo” não seria o motivo de cada um? Sim! E não…

A história da raça humana é também uma história de migração. Falar em “verdadeiro brasileiro”, ou “verdadeiro americano” é falar em povos indígenas, tão somente. E até mesmo eles (ou seria “principalmente eles”?) têm a constante movimentação pelo terreno como uma forma de permitir que a terra se regenere e permita um novo ciclo de consumo, mais tarde. Então, não: Não há, definitivamente, nada de errado em sair do seu país de origem e ir morar em outro lugar. Seus antepassados, todos eles, fizeram isso em algum momento; alguns, mais de uma vez. A Europa teve diversos impérios continentais com constante processo de migração dos seus povos. Nem mesmo a Europa setentrional/nórdica/escandinava pode se dizer isenta disso.

E os motivos para sair do país são sempre pessoais, é lógico. Se você nasceu em Londres e concluiu que o clima chuvoso não é pra você, você tem todo o direito de ir morar em Cape Town, ou mesmo na Austrália e, de quebra, não tem que reaprender um idioma inteiro, o que é muito bom pra você.

Então, o que eu construo, a seguir, não é uma crítica à vontade de mudar. Essa é, pra mim, sempre legítima e de justificativa de foro pessoal e não comparável.

Mas, o que se deu em parte relevante dos casos citados foi a exaustão da fé, da paciência, e a prosperidade do medo generalizado e da ansiedade quanto ao próprio futuro. E, sem qualquer intenção de justificar as escolhas de cada um (que são totalmente privadas e alheias a mim), a culpa por esses sentimentos e o esgotamento de parte deles é do meu país. Não das pessoas que se foram.

Parece não fazer sentido. Talvez, não faça mesmo. Mas toda vez que um conhecido parte do Brasil em busca de uma vida melhor, na minha cabeça fica a ideia: “Devemos desculpas a ele/ela/eles”.

Ninguém deveria ser expulso (ainda que de forma silenciosa) do país em que nasceu, mas, recentemente, o Brasil forçou, sistematicamente, aqueles com condições a sair daqui. Forçou com medidas estatais e forçou com atitudes do povo que ficou. E, claro, isso não agrada a quem ficou. Mas, eu já disse que não falo ou escrevo o que agrada mais. Eu falo e escrevo o que consigo constatar por meios objetivos, como estatísticas, bem como por meios empíricos, como uma conversa com quem está deixando este lugar para trás.

O Brasil se tornou um país hostil para pessoas inteligentes, com competência e talento acima da média, e todos os que tiverem a chance de sair devem acabar saindo, senão por ideologia (como eu, só por ora).

A pergunta lógica a seguir seria “por que?”. O “porquê” dessa questão tem muitas respostas possíveis, mas, se tentarmos manter critérios objetivos, evitando variações de humor e de ponto de vista, veremos que o Brasil tornou-se inóspito a quem contrariar qualquer parte do status quo. Mas, o ponto de pressão sobre aqueles que têm meios de sair parece ter chegado ao limite de alimentar o rompimento com a terra natal de maneira escalar.

Analisemos:

Ser miserável nos EUA ou aqui não é exatamente diferente. Em ambos os casos, você não tem o bastante para seguir vivendo, e sua existência é feita de dor, de ausência, e de exclusão.

Se você é rico (rico mesmo… Estou falando e alguém com mais de 10 milhões de dólares acumulados), tanto faz se você mora no Brasil ou nos EUA. A sua experiência de vida é de acesso pleno aos bens de consumo, saúde de primeiro nível, e você consegue o que quer em ambos os lugares. Poderíamos discutir que a segurança no Brasil é um problema, mesmo para os ricos, mas alguém com 10 milhões de dólares ou mais não terá muitos problemas com isso, mesmo aqui. Para balancear, devemos lembrar que nossa Justiça e Legislação favorecem constantemente os mais ricos, e que nosso clima é sempre regular, sem excessos ou catástrofes naturais como no território dos primos ricos do Norte. “All in all”, eu diria que não faz diferença onde você mora, com o poder aquisitivo alto.

Mas, se você está numa classe flutuante como a classe média… De origem nem tão pobre, nem tão rica, com o sonho constante de ascender, mas sempre diante do risco iminente de sucumbir… Nesse caso, o Brasil é um dos países mais hostis que você poderia morar. Você tem inteligência suficiente para crescer na vida, mas não o bastante para criar uma tecnologia nova e fundar uma empresa multimilionária. Com isso, empreender com pouco dinheiro te expõe a todo tipo de mazela que o Estado brasileiro é capaz de propor. Você ganha bem o bastante para ter seguro, mas não para blindar seu carro ou ter seguranças em casa. Você até que mora bem, mas corre riscos com enchentes e deslizamentos, e ainda depende do transporte público para manter a economia nos trilhos. Você tem acesso à saúde, mas só enquanto for empregado e tiver o convênio de bom porte que sua empresa banca… Se você está nesse grupo que nunca foi rico, mas está longe do real sentido da palavra “pobreza”, o Brasil é, de fato, um país muito hostil para seus planos e sonhos.

Eu sei o que alguns estão pensando: “Pobre classe média e seus problemas de branco”. Eu conheço esse pseudo-argumento. Acontece que a classe média é o assalariado deste país. E essa classe média que emprega a maior parte das pessoas em um país com constante desindustrialização e um aumento do ramo de serviços. É essa mesma classe-média que arca com a maior parte do custeio da máquina pública (incluindo os programas sociais), seja porque ela é numericamente relevante na demografia, seja porque o modelo fiscal brasileiro a esmaga entre os benefícios (legais e ilegais) aos mais ricos, e as isenções (justíssimas, destaco) aos mais pobres. Quando você se sente nesse rolo compressor e há uma saída para fora desse modelo, é mais do que óbvio que você vai tentar escapar.

Só para uma comparação objetiva:

O pior estado dos EUA, quanto ao IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano) é o Mississippi (fonte), com base em dados de 2017. O estado atingiu um IDH de 0.866, equivalente ao IDH médio da Polônia que, bem sabemos, não anda lá um lugar bacana de se viver, com seu governo autoritário e outros problemas sociais como uma população voltando a se apaixonar por contos de supremacia das raças, etc…. Ainda assim, o Alabama, quadragésimo nono na lista, atingiu o IDH de 0.882, equivalente ao IDH da Itália. Dali para cima, o IDH só melhora, e a comparação também. Alguns estados são comparáveis à Suíça e Noruega.

Já, no Brasil, o melhor estado é, obviamente, o mais desenvolvido, e estamos falando de São Paulo (fonte). Seu IDH-M é de 0.826. O pior Estado do Brasil, Alagoas, tem o IDH de 0.683. O melhor estado brasileiro tem o IDH 40 pontos menor que o pior estado americano. Se você morasse no Mississippi, estaria, ainda assim, melhor assistido nos itens “índice de educação”, “longevidade” e “renda”, todos abarcados pelo IDH-M, do que poderia estar em São Paulo. E, como eu já sustentei, isso faz diferença especialmente para você que não é nem rico, nem pobre, e que depende da capacidade final do seu poder de compra para ascender ou, ao menos, evitar o descenso.

O Brasil se tornou um pesadelo para pessoas capazes

E não há mal que não possa piorar…

Brain Drain” é um termo conhecido no exterior quando o tema discutido é a “fuga de cérebros” de um dado país. Em 2011, a Receita Federal informou que ~8 mil declararam saída definitiva do Brasil. Em 2014, o número subiu para ~12 mil. Já, no período passado, o número de declarações de saída definitiva foi de ~22 mil (fonte). E se estamos falando em saída definitiva na Receita, estamos falando de pessoas que emigraram legalmente e que foram para fora com visto certo e, possivelmente, empregos com qualificação satisfatória. Ou seja: A chance dessas pessoas voltarem é bem remota porque emigraram legalmente e com solidez. Também, porque o Brasil nunca melhorou de lá pra cá. Pelo contrário.

O ranking da respeitada IMD (International Institute for Management Development), da Suíça, colocava o Brasil, em 2009, na 14º colocação dos países com menor Brain Drain. Em 2018, o ranking colocou o país em 39º. Agora, o país ocupa a 3ª pior posição (fonte). Na América do Sul, só perde para a Venezuela, a primeira da região em “fuga de cérebros” (e onde o suicídio está ascendendo) (fonte). Cabe reforçar: O ranking só lista 63 países. E somos o 61º pior. Pior do que nós só Venezuela e Mongólia, respectivamente.

Claro: É um ranking parcial e não global. Mas, para a 9ª maior economia do mundo (e que já foi a 6ª, em meados de 2012) (fonte), figurar no fim da fila da retenção de talentos é a medida do fracasso. E tem gente comemorando: “Se não servem pra ajudar o Brasil, melhor irem embora mesmo” dizem os insanos que, cegos por um senso tresloucado de patriotismo, não entendem que sem as pessoas “certas” (certas = certas para ajudar no desenvolvimento de tecnologias, patentes, produtos e serviços que o mundo queira pagar caro por), toda terra é só um pedaço de terra. O pedaço de terra chamado Brasil, sem pessoas competentes, vale tanto quanto o fundo do mar ou a superfície da Lua valem, agora.

Como alguém da área de TI, me sinto mais do que confiante em demonstrar episódios dessa triste história brasileira:

O criador do HoloLens, tecnologia de Realidade Aumentada/Mixada da Microsoft, é o curitibano Alex Kipman. Recentemente, foi indicado ao prêmio “Inventor Europeu” do Instituto Europeu de Patentes, pelos feitos na área de pesquisa de AR/MR em que é líder (fonte).

Um sujeito importante (dentre outros, claro) nos projetos de Computação Quântica da Microsoft, depois do Google e atualmente da Amazon, é o mineiro Fernando Brandão. Ficou famoso com o anúncio da Google sobre o atingimento da Supremacia Quântica, projeto em que foi fundamental (fonte).

Eu teria vários outros nomes para citar, mas vou ficar nos dois, pelo tempo e pelo comprimento desse texto.

Gente que está lá fora, dando o que falar, positivamente (ao contrário da turma ministerial deste lugar). E poderia estar aqui, gerando patentes e conhecimento, que gerariam emprego e rios de dinheiro.

Por que não está? Claro que o Estado Brasileiro tem sua culpa nisso. Mas nosso povo – a grande massa que o compõe – também tem.

Sugiro procurar qualquer artigo em que um dos dois conversou sobre as chances de voltar para o país natal (ambos já disseram: nulas) e vá nos comentários. É a mesma animalidade de sempre. “Melhor nem voltar”, “É um favor! O Brasil não precisa de vocês!”, “Elite é um lixo, recebem tudo de bom e do melhor, e não sabem devolver nada”.
Se você tivesse um cérebro acima da média, um governo que odeia Ciência e Verdade científica, décadas de destruição dos sistemas de ensino e pesquisa (fato que não pode ficar só na conta do atual Governo, devo frisar, mas que vem sofrendo ainda mais com cortes e represálias demagógicas e ideológicas deste) e uma população igualmente animalesca, você ficaria aqui, diante de um convite para estar em um país que leva sua área de pesquisa a sério? Acho que sabemos a resposta. Os números mostram o mesmo.

A solução para o Brasil é Guarulhos

Mas espero – em vão – que, um dia, deixe de ser…

Uma das brincadeiras entre PFEs (o nome da posição que ocupo) é que a solução para o Brasil é Guarulhos. Ou seja: Ir embora do país, pelo maior aeroporto internacional da América do Sul.

E se você é um dos desesperados em sair daqui, tenho que te dizer que você quer muito trabalhar onde eu trabalho. As opções para sair com emprego são inúmeras e constantes. Literalmente, dezenas de vagas e lugares, o tempo todo.

Obviamente, você precisa de um binômio chamado “qualificação & sorte”. Qualificação para competir com o resto do mundo tentando. Sorte para ser política e economicamente viável para o dono da vaga trazê-lo para a terra dele. Mas, mesmo dependendo disso, acontece com muita frequência.

A real solução para o Brasil seria que a sociedade brasileira, que é composta por todos nós (e esqueçam Brasília por um tempo, por favor), deixasse de ter os traços que Durkheim chamou de “solidariedade mecânica” e migrasse para a “solidariedade orgânica”.
Durkheim já foi sucedido de todos os modos. É datado, fundou a Sociologia e, portanto, não a viu florescer como já ocorreu. Teve seus estudos e conceitos propostos postos à prova, diversas vezes, tendo em vista o quão rudimentar acabou se tornando com o tempo. E mesmo sendo tão “datado”, ainda explica o problema do Brasil tão bem.

Ele diria que a solidariedade mecânica está fortemente pautada na coerção imediata, violenta e punitiva, e que as ligações entre as pessoas não vão além de seus círculos sociais imediatos. Como homem europeu e branco, ele estava obviamente sugerindo que essa solidariedade mecânica se aplicasse às tribos e civilizações não industrializadas. Contudo, ao olhar o modelo de “civilização” e respeito que se desenrola no Brasil, eu vejo o que Durkheim propôs: Nos organizamos em tribos (a tribo dos que querem andar armados, a tribo dos que querem ridicularizar a religião, a tribo dos religiosos, a tribo dos médicos, a tribo dos motoristas de Uber, a tribo dos taxistas, a tribo dos juízes, a tribo dos políticos), e dentro dessas tribos, há um certo grau de respeito, ora por admiração, ora por medo. Para fora delas, não há respeito algum. É cada um por si… E a lei precisa ser altamente regulatória e punitiva, porque, sem esse comportamento do legislador, não sabemos, simplesmente, como nos respeitar. Então, como um bando de crianças (ou homens das cavernas) precisamos ser tratados pela figura do Estado.
Durkheim foi criticado por sua visão muito eurocêntrica do que representava o “progresso”, e de ter significado que não ser como a Europa era um sinal de simploriedade e atraso. Ele se referia aos povos nativos e/ou tribos africanas. Mas, se tivesse conhecido o caso do Brasil há tempo, sua imagem poderia ter sido menos arranhada com uma prova cabal…

E a pergunta que me persegue…

(Tanto quanto “você vai deixar a TI ao final da faculdade de Direito?”) é “por que você não deixa o Brasil?”…

A resposta já foi muito certa dentro de mim. Sete anos atrás eu diria algo como “eu ainda não tentei tudo que posso tentar nesse lugar. Quero tentar ajudar o Brasil a procurar outros rumos, para longe dos ciclos de sujeira e jogos de cartas marcadas que sempre ocorreram aqui”.

E aí, eu envelheci. Não só na idade, mas mental e emocionalmente.

Olho para os comentários (não só os virtuais, claro) dos meus conterrâneos, e duvido cada vez mais que esse lugar possa ser salvo.

As pessoas olham para a elegante Brasília como o centro de todos os problemas daqui. Eu olho para o grupo de Whatsapp da minha família. Eu olho para os cafés em que vou tomar uma dose com os amigos do trabalho. Olho para os meus clientes, meus colegas de trabalho. O noticiário local, regional, nacional.

São mentiras, preconceitos, ideias estapafúrdias, soluções simplistas para problemas muito complexos e profundos. Lugar comum. Senso comum. Slogans repletos de ufanismo, crendices, clubismo.
Pouco estudo, pouca Ciência, pouca sabedoria; muito achismo.
E, em cima disso, se faz o tecido social que forma “o grosso” do Brasil. É também em cima desse tecido que políticos populistas tentam capitalizar. E capitalizam.

Volte um pouco no tempo e veja como terminaram os homens e mulheres que tentaram abrir os olhos de sociedades cegas. Tomadas por crenças em seres mágicos, em valores absolutos, em ideologias partidárias e/ou religiosas.
Não se trata de “religiosos demais” ou “ateus demais”. Não estou falando sobre um país adoecido por “ser de esquerda” ou “ser de direita”. Estou falando do que ocorreu com gente que ousou enfrentar populações “certas demais” quanto ao que acreditavam ser “a verdade”.

O problema central é a paixão. Que eu também já tratei por aqui e tem o mesmo radical de “doença”. O povo brasileiro é um povo que se comporta ao sabor das emoções. E um povo assim é um povo destrutivo.
Claro: É o melhor povo para se ter amizades, tudo muito caloroso etc., mas, é um dos piores para criar um país pautado em inteligência e sabedoria. Porque, diante da verdade alicerçada em fatos e não em opiniões, ainda assim caem de joelhos agarrados em suas crenças e crendices. De que o mundo é melhor com Deus, de que o mundo é melhor sem Deus. De que o problema é a Esquerda. De que o problema é a Direita.
E não importa o que você faça, não importa o quão feroz você seja em demonstrar por meio de método, pesquisa, dados (escolha suas armas à vontade) os reais problemas do país (que não têm a ver com Direita ou Esquerda, Ateísmo ou Cristianismo, mas com a estrutura social, nos moldes propostos por Durkheim) ninguém te ouvirá e ninguém apoiará. Porque as paixões não deixam. E, no fim, embaralham fato com opinião.

Mas, principalmente, porque o maior do problema do Brasil mora (sempre morou, e sempre morará) no espelho mais próximo, é que eu tenho menos e menos certezas.
Nossa relação, uns com os outros é, em geral, tóxica e desleal.
E sempre há alguém mais forte e mais poderoso do que eu e você, e esse alguém sabe que ser tóxico e desleal é o jeito que as coisas são por aqui. E isso progride em escala geométrica até chegar, agora sim (e só agora), em Brasília. Não é o governo brasileiro que não presta, é a nossa relação social; o governo é mera consequência da sociedade, não o oposto. O jeito que lidamos uns com os outros no dia-a-dia. O senso forte de que cada um é cada um, e que ninguém é conterrâneo de ninguém. E mesmo quando esse tipo de valor surge (de que o outro é um compatriota) quase sempre surge para atender aos interesses privados e, tantas vezes, ilegais. Nunca (ou quase nunca) surge no sentido de “vou preservar isto que não me pertence, porque sei que pertence a Fulano, e Fulano é meu compatriota. Ele faria isso por mim. E eu farei isso por ele”.
Não tem nada a ver com “cidade grande” ou “cidade pequena”. Tem a ver com nossa alma nacional. O brasileiro parece ter levado muito a sério a ideia bíblica em Ezequiel de que “a salvação é individual”.

Levou-a tão a sério que se salva até quando não precisa se salvar de nada.
Salva-se da pobreza (que não o aflige) desviando milhares de reais de sistemas públicos. Salva-se da esperteza alheia sendo o mais esperto, primeiro. Vive se salvando de males que não sabe se sofrerá, sempre com a máxima “se eu não fizer, alguém vai fazer, então que eu faça antes que façam comigo”.

E quando tudo isso é posto em xeque, a defesa é sempre a mesma: “O outro fez igual, senão pior”, “O sistema é assim”, “Quando assumi, era até pior”, “Eu não sabia que estava prejudicando alguém”. Todo brasileiro é treinado para driblar, de forma extremamente sofisticada, a berlinda que é ter que admitir “eu prejudiquei alguém e o que fiz é errado, não importa em que ângulo eu analise minha ação”.

Toda sociedade tem problemas. Alguns são intoleráveis como “raça ariana” ou governos que obrigam todos a seguir um certo deus (seja ele Allah ou Jesus, tanto faz). Outros são menos problemáticos, como a falta de senso de humor, ou uma certa rigidez de etiqueta que tende a artificializar a convivência.

O problema brasileiro não é tão grave quanto uma teocracia (por ora), ou uma ideia de superioridade de uma raça ou povo por sobre os demais (também, por ora). Mas, o problema brasileiro é dos mais difíceis de se resolver porque ele está arraigado em nossa sociedade, e ele nos é ensinado desde crianças. “Você não pode deixar ninguém levar vantagem sobre você”, “Filho meu tem que ser esperto”, “Pirateio mesmo, isso não faz mal pra ninguém, eles já têm muito dinheiro”, “Se eu não pegar, outro vem e pega”. Sempre temos uma desculpa e somos apaixonados por elas. E a paixão é um traço fortíssimo do nosso povo. E a paixão nos cega, como uma doença (no grego, Pathos, que também vemos em “Patologia”).

O meu governo e o meu povo jamais dirão o que eu acho necessário.
Mas, pelo menos pra vocês, Daniel e Heloísa (e, na verdade, para todos os que saíram por perderem a esperança), eu mesmo digo: Espero que um dia vocês perdoem seu país pelo que ele fez com vocês e pelo que ele fez vocês abrirem mão, só para ter uma vida melhor, mesmo que só por um pouco. Vocês mereciam mais, e este lugar poderia ter sido mais. Tanto mais.

“Por que você não deixa o Brasil?”

Eu já soube a resposta “de cor” (que descende do francês “Savoir par coeur” e quer dizer, literalmente, “saber através do coração” – novamente, as emoções no comando).

Tenho me esquecido das razões da resposta atual, cada dia mais.

O permanente silêncio dos bons

Está sendo uma semana muito dura…

No fim de semana, senti a necessidade de falar sobre Democracia e sobre nossa obrigação de não cruzar com a “cadela que está sempre no cio” e vem uivando, mais do que nunca, especialmente através de figuras que deveriam ser os mais ferrenhos defensores do sistema vigente, mas não são.

Um dia depois do post, o filho do Presidente (com letra maiúscula, só em respeito à instituição da Presidência da República) publicou um tweet onde explicou para sua tropa: O país não mudará conforme eles querem, via Democracia. A Democracia é, portanto, um empecilho para o filho do Presidente, democraticamente eleito, e que também é, ele próprio, ocupante de cargo eletivo na Câmara de Vereadores Carioca.

Fiquei “satisfeito” de ter escrito sobre o tema, pouco antes do arroubo do “Pitbull do Clã”. “Clã” … Ainda somos uma Democracia? Sigo insistindo que, por pior que seja (e está “bastante pior”), a Constituição ainda continua válida e as Instituições ainda operam minimamente conforme o ordenamento jurídico, e tão impessoais quanto sempre foram. Mas, já me pego pensando se estou olhando para uma casca saudável de um ovo podre… Tenho que vigiar os pensamentos. É muito fácil afundar na desesperança. Razões para acreditar diminuem dia após dia, notícia após notícia. Tweet após tweet…

Como não é diferente de qualquer família, a minha também tem seu grupo de Whatsapp. Entre os cem “bom dia’s” e os duzentos “feliz aniversário’s” (quando alguém é o felizardo, claro), surge sempre uma frase em prol de um ato totalitário, quase sempre, fake news. Absurdos de todos os tipos e tamanhos… O “esgoto” da fake news política passa por lá. Faço uma pausa para pedir desculpas se um familiar meu ler isto e se ofender. Não foi a intenção. Não foi mesmo. Mas o “esgoto” continua lá, com a ordem do Presidente para prender ministros do STF, a ordem do Ministro da Justiça para invadir “a casa dos Petralhas”, a “prontidão dos militares para fechar o Congresso”, e por aí vai. Tudo tem foto, tudo tem fonte. Nada é de verdade, óbvio. Tão óbvio que seguimos aqui, mesmo que aos trancos e barrancos, e nenhuma das profecias se cumpriu, jamais. Mas isso não importa em nada. Eles seguem “bombando” o fake news de que alguém está para “acabar com a roubalheira” (o nome que dão para Instituições democráticas que, sim, podem estar sob o comando de depravados e vigaristas, mas, já falamos no Domingo sobre o dilema do bebê e da água suja).

Eu nunca entendi o fascínio dos meus compatriotas pela Ditadura. Já refleti sobre isso por horas… Dias, até. Nunca entendi como o país, comandado por homens fardados, sob forte ordem militar, onde quase nunca se questiona o que vem de cima, onde só existe “missão e obstáculos” (se você não ajuda na missão, você é obstáculo), e que sempre dizem, em tom de chacota, “paisano ( = civil; eu e você) é bom, mas tem muito”, pode ser melhor do que o que temos agora. E não é por causa da piada, porque como profissional de TI, eu também tiro sarro de algumas condutas de usuários da Tecnologia. E, novamente, preciso parar e pedir desculpas se ofendo alguém com essa elucubração.

Venho de uma família de militares, pra dizer o mínimo. Tenho admiração e, até os 27 anos, cogitei ingressar na força policial, seriamente. Nunca foi pelo dinheiro (que é ridículo), mas, foi sempre por um forte ideal de entrar, aprender, sofrer, e mudar a instituição, devagar e sempre, e por dentro (o único caminho comprovado e aceito pela tropa. A PM é uma instituição hermética e mudanças vindas de fora são, em sua maioria, descartadas; a despeito da possível validade delas). Já estou longe do argumento inicial…

Meu ponto é que jamais compreendi o fascínio de familiares, amigos, e tantos civis (em 2017, pesquisa realizada em 24 estados, com 95% de confiança, mostrou que um em cada três brasileiros [~35%] apoia uma intervenção militar) com uma possível volta da Ditadura militar. Não porque militares sejam maus. Mas, simplesmente, porque eles foram doutrinados para viver sem inúmeras liberdades. Pensar livremente e tomar decisões por si só, não é, nem de longe, o ideal para o serviço militar.

Eu não achava um mínimo de razão nesse apoio. Até ontem.


Vou adiantar o óbvio: Nada mudou em mim. Só há um lado certo na nossa História, e é o lado que protege e luta pela manutenção (e melhoria) da nossa Democracia. É desse lado que estou e vai ser muito difícil que eu mude, até o fim da minha existência.

Mas, hoje, vários canais de comunicação trouxeram à tona a fala monstruosa do Procurador (como no caso do Presidente, em maiúscula por respeitar o cargo, não o ser que o ocupa) de Minas Gerais, Leonardo Azeredo dos Santos, que alegou em reunião da Procuradoria de Minas Gerais, entre outras alucinações, que seu salário líquido de R$24 mil reais é um “miserê, e que ele já está “deixando de gastar 20 mil no cartão, cortando para só 8 mil, para sobreviver”. Disse, ainda – como se não bastasse o horror que já havia dito – que “infelizmente, não tem origem humilde e não está acostumado a viver com tanta limitação”.

O estado de Minas Gerais está enfrentando uma fortíssima crise fiscal, e está em vias de fechar uma Recuperação Fiscal com a União, o que significa, em palavras mais diretas (e imprecisas), “reconhecer que deve pra geral, e pagará quando puder” …

A história só piora. Segundo o Portal da Transparência de MG, o sofrido servidor (que esqueceu o que “servir” significa) em questão, teve vencimentos na casa dos R$78 mil líquidos, em junho, por uma dúzia de benefícios, auxílios e indenizações. Muitos desses “extras” sequer são alvo de tributação.

Se o Procurador não consegue viver com dignidade com os vencimentos apontados, me parece alucinógeno pensar na situação de cinquenta e cinco milhões de brasileiros (portanto, ¼ da população) que vivem com até 400 reais por mês.

E alguém vai dizer, “nossa, que argumento mais populista”. Não. Não há nada de populista em pensar no próximo, e reconhecer a desgraça que acomete a economia nacional, e que tem demandando sacrifícios de uma classe trabalhadora inteira, que já sabe que não se aposentará (pelo menos, não em breve), que não tem o direito de discutir o próprio salário, senão através da qualificação constante e da troca de empregadores, aqui e ali. Reconhecer tudo isso e reconhecer que seu salário é, sim, assombroso e desproporcional – não importa o quão merecedor dele você seja – e que seu holerite te coloca numa parcela de menos de 2 dígitos percentuais da população, para que você tenha qualquer condição moral de terminar essa discussão sem parecer (com sorte, só parecer) um completo imbecil.

Alguém pode levantar que, digamos, em 10 anos, o MPMG não teve correção da inflação. E eu insistirei: Seu estado está quebrado, sua população passou por duas tragédias ambientais recentes e devastadoras. O desemprego atinge ~11.2% da força de trabalho mineira, estimada em 11.1 milhões de pessoas e, portanto, com 1.24 milhões de desempregados. Repito: É um estado quebrado, procurando proteção para poder parar de pagar dívidas, na tentativa de se reestruturar. O Governador disse, agora há pouco, que os servidores públicos “comuns” ficarão sem receber, se o RRF não for aprovado. A fala do Procurador é tudo, menos consciente.

Agora, se imagine na fila do desemprego. A vida vai mal, todo dia você deixa de consumir uma refeição decente para que o dinheiro renda mais. E você ouve um conterrâneo dizendo que seu salário de 24 mil é pouco, e que se não aumentarem, ele vai passar necessidades. Pronto: Você começa a entender porquê alguém tem coragem de apoiar uma Ditadura militar.

É claro… Eu não estou dizendo a idiotice de que militares são mais honestos, mais leais, mais qualquer coisa, só por usarem farda e marcharem em ordem unida. A farda não faz ninguém melhor ou mais honesto, e militares no Poder podem cometer os mesmos crimes de civis e outros piores. Com o agravante de que, em eventual Ditadura, a mídia sequer poderá fazer o trabalho investigativo que faz e que só ela pode mostrar situações revoltantes como essa do pobre Procurador de Minas. Sem a Imprensa livre, jamais teríamos sabido disto.

Então, não. Esse Blog jamais fará uma defesa pró-Ditadura. Esse post é apenas um reconhecimento da racionalidade do ódio, muito bem alimentado por gente como o Procurador citado. Gente que ocupa cargos públicos não pela vocação, não pelo sonho de fazer um trabalho diferenciado para sua comunidade, mas, com fins de enriquecer às custas de uma sociedade que vem sendo fortemente espremida para se aposentar mais tarde, pagar mais impostos, e viver com menos (muito menos) do que um minúsculo universo de pessoas ganhando mais de 20 mil reais mensais líquidos.

A máquina pública brasileira é um monstro que precisa ser esquartejado

Novamente: Não estou falando contra a Democracia. Se você está entendendo assim, precisa melhorar sua interpretação de texto. O que segue aqui é o cansativo dilema do bebê e da água suja.

Tive uma discussão com o João, bom amigo de outras bandas, e falávamos sobre o duelo entre um Estado grande com fins sociais, e o Liberalismo, cada um com seus defeitos e potências. Foi uma conversa muito boa (eu acho). Diante do que se seguiu, hoje, acho que ele está rindo um pouco mais por estar do lado que defende a redução máxima do Estado, em qualquer caso e cenário. Hoje, eu não o culparia (o que não quer dizer que desisti de tudo o que acreditava ainda ontem; não sou bipolar e minhas opiniões não se formam conforme a banda toca… Mudar assim, de uma hora pra outra, demonstraria um pensamento levianamente fundamentado).

Ocorre que não é a Democracia que inviabiliza a máquina. Tampouco um sistema de Estado preocupado e engajado com os problemas sociais. O que inviabiliza a máquina é um sistema em que benefícios e privilégios se tornam sempre cumulativos, jamais diminuem, e quem decide quanto vale o trabalho é o próprio trabalhador (há uma simplificação aqui: embora exista lei que regule os vencimentos máximos, aqueles que usufruem de altos salários driblam as restrições com manobras que, se não ilegais, são totalmente imorais).

Você já imaginou que insano seria se eu pudesse definir quanto eu devo ganhar? Não obstante eu gerar muito mais dinheiro do que ganho (se não fosse assim, eu seria demitido) minha empresa, uma das maiores do mundo, faliria caso cada colega meu pudesse decidir o valor dos próprios vencimentos.
Mas, é assim que a máquina pública brasileira se estruturou.

CLARO… “A máquina pública”, em áreas bem específicas… No Judiciário e no Legislativo, especialmente. Em todo o resto, nossos funcionários públicos costumam passar maus bocados… Professores, Policiais, Serventes de manutenção pública… Essa massa tão importante não tem qualquer autonomia para decidir o quanto ganha, óbvio.

Poderíamos dizer que a máquina pública é sempre cara e sempre ineficiente. Esse é quase que um lema (ou seria um fetiche?) dos Liberais, mas, além de não ser uma verdade absoluta (já que os EUA têm uma máquina mais cara que a nossa), um pouco de pesquisa mostra que o problema é o Brasil, mesmo. Temos uma das máquinas mais caras e ineficientes do mundo. Para demonstrar, vou compartilhar apenas um gráfico da matéria da BBC:

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46427803

Quem dera esse fosse um problema restrito ao Congresso Nacional. Se eu colocar os custos do Judiciário, dos Ministérios, e etc., você e eu enlouqueceremos no processo.

O que você precisa saber é que a máquina é tão inchada que, atualmente, nós brasileiros desembolsamos algo em torno de ~215 bilhões de reais anuais para pagar quase 900 mil funcionários públicos nas mais variadas posições. E, se você tem bom senso, sabe que o grosso desse dinheiro não está acabando no bolso da Professorinha na sala com goteiras e lousa com buracos, nem no bolso do Policial que vai pra rua com colete vencido e arma avariada.

Uma classe unida contra toda uma sociedade

Diz a Bíblia (1 Pedro 3, 18) que devemos “amar o pecador, mas odiar o pecado”, segundo o exemplo de Jesus Cristo. Isso resume bem a minha relação com trabalhadores e seus sindicatos/associações, em quase 100% dos casos.

Essa não é uma discussão nova.

Toda a santa vez que alguém reclamou do custo da máquina ou rebateu uma proposta de um novo imposto com cortes possíveis (auxílio paletó? Auxílio moradia? Para quem ganha mais [muito mais] de 24 mil líquidos? Só pode ser brincadeira), as classes privilegiadas (que, repito, são uma elite dentro do serviço público) se unem, barram, e abafam (porque não podem discutir à luz da sociedade o que realmente pensam) qualquer projeto nesse sentido. Suas associações e sindicatos são perfeitos no Lobby e sempre vencem o debate (que não é um debate, já que nasce morto).

Mas, fatalmente, uma hora, teremos de combater os extremamente privilegiados deste país (~28% da riqueza nacional está nas mãos de ~1% da população). A maior parte deles desempenha funções necessárias e essenciais (acho que ninguém com o juízo no lugar ignora a utilidade do Ministério Público em uma Democracia, só por exemplo). Mas, esse desempenho não pode ser pretexto para que estes vivam em uma realidade tão diabólica ao ponto de fazer um Procurador se sentir mortalmente ultrajado por ter que sobreviver com “apenas” 24 mil reais líquidos mensais, e moralmente sustentado para expor isso, sabendo que era gravado publicamente.

Mas, vou te dizer o que mais me magoou nessa história toda: O que mais me magoou foi ouvir o áudio inteiro, em uma reunião com o Procurador Geral de MG, e outros Procuradores, e diante da fala monstruosa de um playboy que não merece o cargo que tem, nenhum dos colegas de profissão, investidos no gloriosíssimo cargo de Procuradores e Promotores (Promotor = que promove) de Justiça, terem se insurgido contra a barbárie no comentário do colega.

São 5h da manhã, estou acabado. Mas, para ter paz de espírito eu tinha de vir aqui e quebrar o silêncio sobre isso. Incomodou-me de forma que eu não sentia há muito tempo. Vontade de ir embora daqui e outros sentimentos ruins que eu não sentia há tempos. Todo dia, um novo 7 a 1 nessa divisão do inferno que eu ainda chamo de “meu lugar”. E esse 7 a 1 veio até do lugar certo: Minas.

Pra fechar, parafraseio o PhD, Nobel da Paz, Medalha Presidencial da Liberdade (EUA), incessante guerreiro pelos direitos civis de tantos oprimidos, e todo o estandarte de ética e postura digna que o infame Procurador de Minas jamais ostentará:

O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.

No Brasil, o silêncio anda horripilantemente ensurdecedor.

Não, Democracia não é qualquer coisa

O meu pensador de referência para frases soltas (já que eu jamais li alguma obra dele) é H.L. Mencken. Uma das mais celebres é

“Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”

Isso resume a História do Brasil de ponta a ponta, melhor do que qualquer redação poderia fazer.

E, no momento, estamos tentando resolver problemas complexos com soluções simples. E vai dar errado. Como sempre.

Mencken tem outras frases “perfeitas” (pra mim), então, fica a dica de ler a breve coletânea (aqui e aqui). Eu concordo com a maioria, especialmente sobre filósofos, partidos, dizer a verdade, e pé de coelho. Mencken está longe de ser perfeito, e sua biografia é controversa, como costuma ser com quem não é idêntico aos demais. Mas, o maior defeito de sua filosofia é a absoluta certeza de que o cinismo é a única saída para lidar com a realidade, especialmente a política. É divertido e ácido, do jeito que eu gosto, mas quando aplicado à vida política… Bem, falaremos disso mais tarde…

Se você saísse às ruas, no ano passado, e perguntasse “como você acha que (qualquer) uma Democracia termina?”, a maioria dos respondentes iria opinar – acredito – “através de um golpe, com armas e sangue”, ou qualquer combinação desses fatores.

É um fato bem consolidado na cabeça das pessoas, seja pelo cinema, seja pela História, que a Democracia suporta muitas coisas e que ela só fali diante de tiranos militares, guerras, matança, sangue nas ruas…

Ocorre que estamos assistindo um momento inédito na memória da Ciência Política mundial. A Democracia surge ameaçada, mas, não por armas. É por uma doença que a corrói e a ataca por dentro. A Democracia pode morrer logo logo, em alguns cantos do mundo, e não vai haver um só disparo de arma de fogo para isso. A Democracia é ameaçada, como nunca se viu, pelo populismo. Populismo que não é orientado ideologicamente, está acessível para todos e já foi usado por todos os lados.

Mas o populismo é mais perigoso para a Democracia do que as armas de fogo porque, representado por lideres absolutamente medíocres, pessoas sem a mínima qualificação para uma vida política razoavelmente positiva para as pautas de um povo, o sistema político vai se enchendo de oportunistas, cínicos profissionais, e pessoas que solapam a legitimidade (mesmo que esta já andasse na corda bamba) do sistema Democrático, com fins de alcançar ou se manter no poder.

E essa não é uma análise que só eu acredito correta. A “The Economist” fez uma coluna brilhante sobre o risco real que as Democracias (das mais velhas às mais novas) correm no mundo atual, dando exemplos concretos. Sugiro a leitura (em inglês).

Quero, agora, dar um passo atrás e estabelecer porque nós deveríamos nos preocupar. Todos nós. Negros, brancos, heteros, homos, ateus, religiosos, pobres e ricos.

Não é qualquer coisa…

Como o título já diz, “não, Democracia não é qualquer coisa”. A maioria dos meus compatriotas tem pouca ou nenhuma educação política. E isso é um grave problema. Trabalho com gente que acredita que “Democracia é o sistema onde a maioria escolhe os rumos do país”. E isso não poderia estar mais errado.

E se a pessoa trabalha comigo, ela tem, pelo menos, nível superior. Nos dias de hoje, não significa nada para quem vive nos grandes centros, onde faculdades brotam nas esquinas com a mesma facilidade das lojas de paletas mexicanas que dominaram São Paulo, anos atrás. Realmente, estar formado no nível superior já não é sinal de nada, senão de mínima preocupação com o próprio futuro (em média, salário ~30% maior em comparação com formados no ensino médio, apenas). Mas, quando posto em perspectiva com o Brasil, isso ainda torna essas pessoas privilegiadas: No Brasil de 2018, segundo o PNAD do IBGE, apenas 16,5% dos adultos (25+ anos) tinham ensino superior. Mais: 52% de todos os brasileiros sequer terminaram o ensino médio (o “colegial”).
Portanto, não: Ter nível superior não diz se alguém é inteligente, mas põe a pessoa em um grupo de apenas ~17% da população adulta nacional. Parte da formação superior é a leitura, e a maioria dos currículos apresenta uma formação que leva o sujeito a discutir questões diversas como sociedade, ética, desenvolvimento sustentável… Enfim. Saber sobre o sistema político (não sobre bandeira de partido A, ou o que está acontecendo na aliança de B) vigente do país, portanto, ainda que em linhas gerais, deveria ser algo comum para quem quer entender o mundo em que vive, entender a dinâmica da sua área com a comunidade onde vai trabalhar, e daí por diante.

Eu acredito na tese da ignorância racional, recentemente abordada por Pondé, e para não ficar muito longo, sugiro a leitura. O importante dessa tese é a explicação de como as pessoas lidam com a responsabilidade eleitoral. Como consideram insignificante a relevância matemática do próprio voto, ninguém gasta tempo o suficiente se informando sobre o sistema, muito menos sobre em quem vai votar. Isso explica boa parte do nosso desinteresse por política. O grosso da população considera o próprio voto irrisório, então, saber sobre política também passa a ser irrelevante. Perda de tempo. Numa visão utilitarista, gastar mais tempo escolhendo o próximo smartphone do que o próximo Presidente faz todo sentido, já que o aparelho é mais relevante para o dia-a-dia da pessoa do que a relevância do próprio voto para o resultado nacional.

Entendendo o Sistema Democrático

A missão original desse Blog sempre foi de ajudar, através da pesquisa de fontes e referências verificáveis, na formação de opinião sobre assuntos do cotidiano. E, claro, em cima disto, eu exponho a minha opinião. Você não precisa e sequer deveria concordar com ela. Mas a parte informativa não depende de opinião. É o que é.

Vou tentar definir o que é uma moderna e saudável Democracia, para que você não tenha dúvidas. Porque Democracia não pode ser qualquer coisa. Você precisa saber exatamente o que ela é para entender o quão caro vai ser perdê-la. Afinal, é impossível dar valor ao que não se compreende.

A Democracia moderna é um sistema (dentre outros possíveis) de exercício da Soberania de um Povo sobre um Território. Este exercício de Soberania feito por um Povo num dado Território é, também, o que define as fronteiras de onde começa um Estado (Nação) e onde acaba outro.

Uma Democracia moderna apresenta aos seus cidadãos:

  • Sufrágio Universal (sistema de voto para representação política, disponível a todos os cidadãos, sem diferenciação por origem, cor, credo, patrimônio [em oposição ao antigo sistema Censitário]) – Art. 14 da CF/88 .
  • Instituições que organizam o Estado, moderam e exercem seu Poder, vigiam a convivência, bem como vigiam umas às outras, sempre em prol do bem-comum da sociedade – Arts 18 a 114 da CF/88 (da definição do que é União, estado, município, passando por funções do Presidente, Ministros, falando da organização do Judiciário, da Segurança Pública, chegando até o emprego do Estado de Sítio, e etc.).
  • Um sistema de freios e contrapesos, no nosso caso, inspirado na Teoria separação dos poderes de Montesquieu, que gera o que conhecemos como os “Três Poderes” = Executivo, Legislativo, Judiciário, que são harmônicos e independentes entre si – Aspas no “Três Poderes” porque um cientista político nos lembrará que o Poder do Estado é uno e indivisível. O que se divide é a função, não o Poder (art. 2º da CF/88).
  • O titular da Soberania é SEMPRE o Povo, e esta não pode ser raptada pelos representantes, sob qualquer pretexto (conceito que vemos presente no nosso art. 1º, Parágrafo Único, da CF/88).
  • Um ordenamento jurídico onde as leis, as regras, os limites, os procedimentos e tudo o mais o que é necessário para se conviver em harmonia, e lidar de maneira regulada com o Estado, é previamente conhecido e disponível à consulta de todos. Ninguém fará ou deixará de fazer nada, senão em virtude de lei (art. 5º, Inc. II da CF/88), e não há crime sem lei prévia que o defina (art. 5º, Inc. XXXIX da CF/88).

Já tentamos vários sistemas: de Monarquias, Estados Absolutistas, passando por Aristocracias e Oligarquias, até Estados Totalitários, Fascistas, Ditaduras, e assim por diante. Então, chegamos na fórmula de uma Democracia moderna que está ancorada e solidificada nas prescrições da Constituição Federal de 1988. É óbvio que nossa Democracia bebe de outros “berços”. Não fomos os inventores do modelo. Houve a Magna Carta de 1215 na Inglaterra e, depois dela, muita coisa aconteceu. A Independência das 13 Colônias Americanas, a Revolução Francesa, nas décadas de 70 e 90 do século XVIII, respectivamente. Mais tarde, a Constituinte de Weimar, em 1919, a Constituinte Mexicana, pouco antes, em 1917. Todos esses movimentos influenciaram o Brasil, antes, durante ou depois de suas diversas Constituições, com a mais antiga, outorgada em 1824, e a mais nova – espero que você saiba – promulgada em 1988. Os impactos das Grandes Guerras: A Liga das Nações surge na esteira da Primeira, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Segunda. Não se pode ignorar tais eventos nesse processo de constante (re)modelagem do que é a Democracia.

Porém, tudo o que discuti até esse ponto é muito mais teórico do que efetivamente prático. Na realidade, eu deveria ter dito que isso é o “como” se faz uma Democracia moderna. Mas não é isso que ela é. O que ela realmente é, eu empresto do trabalho superior elaborado pelo Professor Michel Mascarenhas Silva, Mestre em Direito Constitucional, docente da Universidade Federal do Ceará:

“(…) a democracia se baseia em dois elementos: a liberdade e a igualdade. Como regime de liberdade, “a democracia se caracteriza como um regime de franquias, garantidor da plenitude individual e hostil, portanto, a toda ideia de privilégio e submissão”. Entre os corolários da liberdade estão a segurança de direitos, a impessoalidade no exercício do poder, a prudência e a publicidade. Quanto a igualdade, significa que a democracia não pode ser um regime de franquias, isto é, não pode implicar apenas nas declarações de direitos. Como forma de assegurar a igualdade e não apenas a liberdade, deve ser estabelecido, ao lado das franquias, “certas providências relativas ao uso nocivo da liberdade, que consiste no seu emprego antissocial, anti-igualitário”. (…)”

Acrescento, da mesma fonte:

“(…)Aos elementos da democracia – liberdade e igualdade – é possível acrescentar, hoje, a dignidade. Se a democracia, embora com o sistema de frenagem recíproco proporcionado pela liberdade e pela igualdade, não for temperada com a dignidade, estará ela sempre fadada a deixar de lado sua principal razão de ser: o bem-estar do ser humano. Para que a dignidade possa ser assegurada num regime democrático é preciso a presença de três fundamentos: o reconhecimento de valores personalíssimos, inerentes a toda pessoa, que não podem ser relativizados; o respeito a liberdade espiritual; e a participação efetiva e ativa dos indivíduos na formação da vontade política.”(…).

Eu poderia debater por mais 10 páginas os significados por de trás desses excertos, mas, não é preciso para o principal: Democracia não é o sistema da maioria. E Democracia requer liberdade, igualdade, e dignidade, em sentidos e dimensões mais amplos do que o senso comum permite conceber, para todos os cidadãos (e “todos” significa “todos“). Esses valores e ideais não se negociam e não se relativizam.

Portanto, não: a Democracia não surge do nada. Ela não é qualquer coisa. São ideias que permeiam o coletivo humano ao longo dos últimos 8 ou 9 séculos de História (ignorando sua origem remota na Grécia, e ficando somente com a moderna concepção do sistema), e que evoluíram de maneiras diversas, ora convergentes, ora divergentes, nos últimos 100 anos. É muito tempo discutindo a moderna Democracia. Quase um milênio. E não se joga isso fora sem a devida consideração de tudo o que se passou.

E agora, sem muito pensar, as pessoas em diversas sociedades (Hungria, Polônia, Itália, Brasil e, porque não, Estados Unidos e Inglaterra) estão vendendo barato o que não tem preço. Herdar um país democrático (a despeito das enormes dificuldades que vivemos por aqui) é um privilégio pelo qual muitos morreram para construir, e o qual muitos jamais terão o privilégio de vivenciar… Alguns nascerão e morrerão em regimes totalitários, fascistas, de um Estado-Leviatã (como já discutimos aqui) que a todos esmaga. Deveríamos saber melhor sobre o a seriedade do que estamos tentando sabotar.

A Democracia asfixiada pelo Populismo

Nossa conversa começa com uma discussão sobre o que pode matar as Democracias.

E eu contextualizo que, enquanto a maioria das pessoas considera que só um golpe ou uma guerra sangrenta podem matá-la, eu sigo a linha do The Economist: O que a está matando, em lenta asfixia, com requintes de crueldade, é o populismo em fase metástica, se espalhando como um câncer pela política mundial, sem predileção por espectros à Esquerda ou Direita; Liberais, Conservadores, Progressistas. É a ironia de um “câncer democrático” (pois, atinge a todos) e que mata Democracias.

O populismo de Lula é o mesmo populismo de Bolsonaro. Não estou comparando governos, bandeiras, estilos e resultados. Estou comparando o tratamento dispensado ao sistema político por ambos. O resto não é objeto da minha análise, hoje.

E, afinal, o que é o Populismo?

O Populismo é a estética política que explicava, especialmente, governos do século passado na América Latina (especialmente, mas não só).

Suas características principais são:

  • um líder carismático que foge da imagem e atuação institucional, e tenta se ligar diretamente às parcelas mais pobres e/ou carentes da sociedade, tentando se passar por “gente da gente”.
  • Um forte nacionalismo econômico, e um ufanismo sobre aspectos sociais e geográficos que quase sempre são insondáveis, exceto para aquele que sustenta tais aspectos.
  • Forte lógica clientelista: O eleitor é cliente do político. Mantê-lo satisfeito com pequenos agrados e afagos basta para “fidelizá-lo”, com fins de se manter no Poder.
  • Fragilização do sistema político: Mais um “pré-requisito” do que uma característica, o populismo surge com força em momentos em que partidos e o sistema político ficam fragilizados, especialmente por escândalos, pela degradação da imagem das instituições políticas, e o descrédito e raiva da população contra seus representantes.

Adicionalmente, o “populismo de Direita”, como os cientistas políticos vêm chamando essa nova manifestação dos últimos 30 anos na Direita, tem algumas características adicionas, como:

  • Discursos anti-elites (mesmo quando o populista pertence a elas)
  • Combate ao Intelectualismo e às fontes de conhecimento que possam descredibilizar o senso comum (senso comum = “leite com manga mata”) que é base de argumentação e retórica do populista.
  • O constante ataque às instituições que a população considera como ruins, e a constante lembrança de que o populista é um outsider, alguém de fora de “tudo isso que está aí”, ainda que este candidato/político seja completamente ligado ao mundo da política, ou pertencente às elites que ele mesmo ataca (qualquer semelhança com Bolsonaro e Trump, respectivamente, não é coincidência).

A principal face do Populismo, portanto, é um forte cinismo contra o estabilishment, ainda que este populista tenha feito, ou siga fazendo parte desse mesmo establishment. É um sistema que aposta e se banca no “quanto pior, melhor”, pois, isso aumenta a raiva contra as instituições e apoia o argumento central do populista.

Um populista jamais pacifica e unifica. Ele sempre apostará no “nós contra eles”, e na divisão como forma de se manter no poder. Sempre haverão “os inimigos da Nação” ou “do Povo”.

Algumas pessoas dirão “oras, qual é o problema de votarmos em quem fala a verdade de que os políticos não prestam, se eles realmente não prestam?”. Desconfiar do Estado e dos governantes, eu diria que é uma obrigação.

“O preço da liberdade é a eterna vigilância”

…disse Thomas Jefferson. O problema não é desconfiar dos políticos e do sistema. O problema é o cinismo.

Esse cinismo que é típico e essencial ao Populismo – esse escárnio, essa constante insinuação (quando não escancarada) de que “ninguém presta” (além de quem fala, claro), e de que todo o sistema é podre – tem um grave poder destrutivo: Ele desacredita e deslegitima todas as instituições, e tudo o que caracteriza a Democracia. E com isso, de dentro para fora (pois, o populista foi democraticamente eleito) a Democracia morre. Isto porque as pessoas precisam acreditar na legitimidade do sistema para jogar pelas regras.

Há um velho ditado que diz que “não se joga a criança fora só porque a água está suja”, ou coisa do tipo. “A criança”, no caso, é a Democracia. “A água suja” são as peças que todos nós ajudamos a colocar lá, à Esquerda ou à Direita.

Mas, o discurso de quem está no topo da pirâmide (respaldado por milhões de eleitores que seguem dizendo “isso mesmo!”) é de que o sistema não presta, as instituições devem acabar, serem fechadas, devem ser amordaçadas.

E as perseguições às liberdades e o combate à igualdade e dignidade começam a ganhar força; tudo sob a proteção do discurso cínico de que ninguém age senão por interesses privados e egoístas.

Sob o cinismo, destroçamos a ideia do preâmbulo constitucional que assim o diz “(…)instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”(…).

A Democracia pode sufocar até morrer. E não é necessário nenhum disparo de arma de fogo. Aliás, como a Hungria de Viktor Orbán (Primeiro Ministro), ou a Inglaterra de Boris Johnson (P.M. também) vem demonstrando, não é preciso qualquer golpe: Não precisamos fechar o STF, fechar o Congresso, ou qualquer medida drástica para matar a Democracia: Se você consegue manobrar o sistema legislativo a ponto de levá-lo a aprovar leis que minem o sistema de freios e contrapesos, a Democracia pode ser morta “dentro da Lei”, sem nenhuma truculência visível.

O combate a quem combate a Democracia é o único lado certo.

Winston Churchill disse

“A Democracia é o pior dos regimes, mas não há nenhum melhor que ela”

Em algum momento, a Democracia como a conhecemos surgiu. E como todo evento histórico, ela pode muito bem acabar. Não defendo que ela resista para sempre, mesmo quando já não for o melhor sistema. No entanto, não podemos abrir mão dela se algo melhor não surgiu ainda. E eu garanto, com base em tudo que escrevi e pesquisei até aqui: Nada melhor surgiu.

Churchill resumiu tudo.

Vivemos a Era da pós-verdade. As pessoas realmente acham que “tudo é questão de opinião”. Como bem colocou um professor universitário americano, Mick Cullen

“dizer ‘essa é a minha opinião’ não torna o que você diz imune a estar completamente errado”

Nem tudo é questão de opinião. Defender a Democracia não é uma questão de opinião; é o único lado certo. Não importa qual seja o seu argumento, a Democracia é o sistema dos países que deram certo (afirmação com base objetiva, como no IDH). E não surgiu nada melhor do que ela, ainda.

A Constituição está aqui, escrita e promulgada, e é clara quanto ao que fazer e o que almejar como sociedade democrática (liberdade, igualdade, dignidade para todos, em uma sociedade que luta para ser livre de preconceitos quanto à cor, credo, raça, orientação sexual, crença religiosa etc.). Dizer que isso é “utopia” é se acovardar diante da missão que outros povos já conseguiram encarar (em algum grau, ao menos). É dizer “sim, só merecemos migalhas”.

A Democracia é o lado certo da História. E quem não gosta de suas regras, seus limites, suas instituições, também não gosta da sociedade que a Democracia representa. E contra esse tipo de gente, eu sempre me oporei.

Fica a única missão de quem é realmente “de bem” e quer, de fato, o bem da família brasileira (em toda a sua pluralidade de constituições e configurações, conforme o guardião da Constituição, o STF, já declarou em 2011).

Nas palavras da Constituição Federal de 1988, art. 3º:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E se você não acredita nesses ideias, porque lhe parece muito infantil, muito sonhador, ou porque você realmente não acha – ou tem a certeza contraria – de que todos (repetindo: “todos” significa “todos”) merecem igualdade, liberdade e dignidade, então eu e você estamos em lados opostos da História.

Acreditar em ideais não é o mesmo que dizer que eles são fáceis. Na verdade, é exatamente por serem difíceis que mais precisamos acreditar e lutar por eles.

Porque tudo o que temos hoje (liberdade de expressão, direito de escolher quem manda no Estado, etc.), e tratamos como se tivesse acontecido “de graça”, já foi “impossível” um dia, e muitos morreram para que tivéssemos o que, agora, desprezamos.

Não, Democracia não é qualquer coisa. Lutar por ela, para além de ideologias políticas, é o único lado certo da História.

Como Chernobyl (HBO) me convenceu de que Lula precisa ser solto

O que acontece quando um Estado atua, sem limites claros e predefinidos?

Se você conseguiu passar do título, parabéns:

É menos radical do que a maior parte daqueles que convivem (convivem?!) nas redes sociais. Não, essa conta não foi hackeada. Sou eu mesmo, Rodrigo, escrevendo isto, desta forma, com o desfecho que segue. Se você me conhece bem, não deveria ser nenhuma surpresa, contudo…

Bem, como a maioria (dos que me prestigiam por aqui) sabe, escrever tem sido um hobby do qual estou sendo privado. Não por cruel destino, mas, porque escolhi fazer outra formação. As provas do semestre terminaram na última sexta e, até agora, vou bem (ufa!). Falta uma! Solta a nota, f-sor! Libera nóis! 😛

Por que isso é relevante? Bem, eu não tenho tido tempo para muitas coisas. Na verdade, em vários temas, eu só tomo conhecimento quando já viraram memes. Foi assim com “juntos e shallow now”, por exemplo. Só entendi a porcaria do meme quando fiquei sabendo da porcaria maior que o originou. Isto dito, tenho perdido muito da cultura POP dos meus dias, e as séries não têm privilégio. Nunca vi Game of Thrones. Também não vi Black Mirror, ou Stranger Things. Não vi algumas franquias que gosto (como o último Missão Impossível) no cinema. A vida de quem leva o estudo minimamente a sério é assim. E eu levo (não porque sou demais, mas, pra começo de conversa, porque eu pago o boleto e é integral).

Bem, ocorre que o Marcião e o Samuca (amigos de labuta) me infernizaram na última semana de provas, sobre uma tal minissérie da HBO chamada “Chernobyl”. Foi cruel. A forma como debatiam o tema foi como saborear um BigMac na frente do gordinho que está começando o regime, hoje. O assunto me é de um fascínio enorme. É um evento histórico que muda o curso da Guerra Fria, ocorre a menos de 20 dias do momento em que nasci, e tem tantas controvérsias e reviravoltas quanto as melhores obras de Tom Clancy. Enfim: Foi fascinação total e absoluta, de cara. Quando me disseram que não era uma série com temporadas, sem necessidade de jurar amor eterno, mas sim uma obra fechada em si com 5 episódios, eu gamei de imediato. Tanto que assinei a HBO para poder assistir. E valeu cada centavo.

Eu não vou dar spoiler (pergunta colateral: É possível dar spoiler de algo real que aconteceu há mais de 30 anos?), mas, o que a série fixa bem é que há um amontoado de mentiras e atalhos em um projeto crítico, mantidas por uma complexa e pesada “mão estatal” que a todos assusta e corrompe, em um modelo de autoridade inquestionável como era a então União Soviética. E a frase mais marcante está, justamente, no fim. Legasov (e não vou explicar nada do personagem para que você tenha que assistir) explica que “o reator explodiu por causa das mentiras”. Finaliza com o que ganhou do episódio de Chernobyl – adaptado aqui – “Se antes eu tinha medo de dizer a verdade, agora, eu apenas me pergunto: Qual o custo das mentiras?”. Essa fala me atingiu com muita força.

Qual o custo das mentiras?

Eu assisti Chernobyl sob o choque do horror do envenenamento por radiação, cruelmente retratado na dimensão humana, na fauna e flora. Mas, pessoalmente, as cenas de maior horror para mim, raramente envolviam as camas de hospital ou os animais mortos. As cenas de horror, para mim, estavam nas salas de reunião, nas decisões de engravatados sobre a vida de milhares e até milhões. “30 mortos ‘diretos’”, é o que diz o relatório oficial. Se mataram menos de 100 mil pessoas, é de se admirar.

No fim, o horror da série, pra mim, não estava no quarto de hospital onde o bombeiro apodrecia como uma banana velha. O horror, pra mim, estava no aparato estatal. Na frieza daqueles que decidiam quantos mil saiam e entravam em contato com os mais de 15 mil Roentgen emitidos pelo núcleo aberto do reator 4. “O que são 15 mil Roentgen?”, você pode perguntar… Bem, 1 Roentgen vale 9,33 milisievert (msv). Um raio-x de tórax te expõe a 0,02 msv; uma tomografia, 0,15 msv… Quando até os robôs quebraram (por mais mentiras dos soviéticos aos alemães que emprestaram) e Scherbina se desespera e estraçalha o telefone, a decisão é uma só: Mandar (mais) gente fazer o trabalho que os robôs não conseguiram.

Dezenas de bombeiros. Os operários da usina. Os mais de 400 mineiros. O pedido por mais de 700 mil homens (que ficaram conhecidos como “liquidadores”) a serem recrutados para os trabalhos de isolamento do reator 4 e de toda a planta em Pryp’yat’, e de toda a limpeza da área imediata à usina.

Mentiras. Mortes. Mais mentiras. Sob a égide de um Estado que não podia ser questionado e que não ouvia ninguém senão aqueles que concordavam em moldes sacerdotais, sem hesitar.

Hobbes e o Leviatã

Ocorre que Hobbes, cientista político importante para a Teoria dos Contratos Sociais, já havia advertido sobre o que é o Estado. O Estado é um monstro: O Leviatã. Essa é a imagem-tema deste post, feita por Gustave Doré e, hoje, de domínio público.

Ser mitológico que, na leitura judaico-cristã, é o demônio da Inveja, citado no livro de Jó; ser de proporções bestiais, ora serpente, ora polvo, ora dragão. É assim que o Hobbes descreve o Estado. Uma monstruosidade.
Para quem não é familiarizado com a obra, Hobbes não é contra o Estado. Não. Para Hobbes, o Estado é um mal necessário porque, em sua ausência, existe apenas a “guerra de todos contra todos” (bellum omnium contra omnes), e o homem é mau em sua essência natural (“o homem é lobo do homem”, ele dirá).

O mais importante da teoria contratualista (seja em Hobbes, em Rousseau, ou Locke) é que cada homem e mulher abre mão de suas forças naturais e até mesmo tecnológicas, para ter seus interesses e conflitos regulados por um ente fictício e invisível que é o Estado. Parece óbvio dizer, mas, o Estado não existe sem a sociedade, embora muita gente tente inverter a ordem dessas duas coisas, seja na forma de construir as responsabilidades de cada um, seja na forma de encarar o papel que lhes cabe.

E qual é a importância disso tudo? A importância disso tudo é que porque o Estado é uma Besta, uma monstruosidade, mas, também a forma que a história humana encontrou para regular nosso convívio, foi preciso criar mecanismos que não apenas regulam as ações deste Estado, mas também o submetem a uma série de obrigações de não-fazer. Tais obrigações de não-fazer e regras de engajamento do ente estatal colocam a força bestial do Estado em uma situação domada, controlada, previsível e relativamente balanceada com as forças individuais do cidadão que lida com a Besta omnipresente.

O “Estado Democrático de Direito” é exatamente isso: Um Estado, uno quanto ao seu Poder, cujos representantes das repartições do Poder estão lá porque representam parte da população, e por esta foram eleitos, e a parte mais importante: “DE DIREITO”. Ou seja, não é um Estado de Exceção. Não é um Estado Totalitário, um Estado Absolutista… Nada disso. É um Estado de Direito… E um Estado de Direito se baliza, se move e, principalmente, se limita, pelo Direito.

Direito, às vezes, de costumes, de relevância social, de precedentes, de aplicação mais flexível e discricionária ao aplicador como o é no Direito Anglo-Saxão da “Common Law”. Ou, também, o Direito mais tradicionalista, Germânico-Romano (Civil law), de formalidades e de transformações sedimentares, processuais, que busca maior estabilidade e previsibilidade nos códigos e nos ritos processuais, utilizados ao longo da aplicação da Justiça.

Os modelos Anglo-Saxônico e Germânico-Romano não são melhores uns que os outros, per si. São modelos com qualidades e defeitos. Nenhuma sociedade é refém de suas leis. Todos os povos, pelo poder da autodeterminação, podem reescrever suas Constituições, seus valores morais e que, mais tarde, serão codificados (ou não, como no caso da Constituição no Reino Unido que é apenas tácita) em forma de lei a ser conhecida por todos (mesmo aqueles que não sabem ler, e que não sabem ler por falhas da família, da sociedade, e do Estado, NESTA ORDEM – outro post, outra hora).

O nosso povo, em seu momento Constitucionalista mais recente (1988), optou por permanecer ligado ao modelo Germânico-Romano-Canônico (posso colocar referências por mais umas duas linhas)… E, até onde sabemos, não houve outra evocação do Poder Constituinte Originário, capaz de reformar nossa base de Estado Democrático de Direito de maneira tão profunda. Portanto, normas escritas, rito, tradição, seguem – cientificamente falando sobre Direito – mais importantes do que outros valores.

Cacete, que horas o Lula fica livre por causa de Chernobyl?

Aqui.

Eu precisava (para não parecer travestido em militante do PT, ou um lunático sensacionalista) te dar a base do meu raciocínio para te levar às conclusões que tomo agora:

Porque o Estado é um mal necessário;

Porque o Estado reúne força descomunal, bestial e, em sua condição desregrada, a todos esmaga e massacra (se tem dúvidas, visite um Estado Totalitário, e tente falar livremente sobre o que pensa);

Porque o Estado Brasileiro é um Estado Democrático de Direito;

Porque o Direito Brasileiro é um Direito de orientação tradicionalista, ritualística, fundada em norma escrita, e que não prioriza costumes, ou discricionariedade (vontades) do operador da lei;

Porque a Lei brasileira é clara quanto ao rito do Estado Brasileiro de Direito contra o acusado de crimes, através do Código Penal (Direito Material) e, mais especificamente, via Código de Processo Penal (Direito Formal) que estabiliza e garante a previsibilidade de como a Besta processará e, eventualmente, condenará o indivíduo;

Por todas as razões supracitadas (mais algumas outras que não ajudam a concluir o post), Lula precisa ser libertado de sua prisão que, se não é imoral (na hipótese de que ele é mesmo criminoso – hipótese que requer provas, e não pode depender de “forte sentimento”) é flagrantemente ilegal. Seu julgamento, que gerou a condenação, precisa ser anulado. Sob pena de não mais vivermos em um Estado Democrático de Direito, mas sim, em um Estado de exceção, como a Coréia do Norte, Sudão, Venezuela, Arábia Saudita (que, cabe a nota, é amiga intima dos EUA, aquele país que luta contra ditaduras – quando interessa, claro) …

Na ânsia de ativar o Estado (representação de todos nós) contra aqueles que o lesavam, (lesando a todos nós), os envolvidos no recente vazamento de conversas privadas (o que também pode ser crime, mas, dois erros não fazem um acerto), Moro e Dallagnol traíram aquilo que juraram defender: A ordem legal. O vazamento revela (e os acusados não tentaram desmentir a veracidade das conversas) que os operadores do Direito ignoraram completamente as amarras que estavam lá para domar a Besta Estatal.

Aprendemos desde cedo, no Direito, que a Jurisdição (dizer o que é certo e o que é errado; qual é o direito de cada um) é função inafastável do Estado. O Estado jamais pode se eximir de dizer o Direito.

Para que esse mecanismo de dizer o que é certo e é errado, de maneira inquestionável, jamais possa ser raptado pelos interesses de uns – por mais nobres que eles possam ser – criou-se uma dezena de mecanismos, e um deles é o mecanismo que faz o Judiciário se submeter à inércia; ou seja: Sem provocação (dos cidadãos, ou do Ministério Público), um Juiz JAMAIS pode sair de sua cadeira e distribuir sentenças, AINDA que o crime esteja ali, na sua face. Ele tem meios expressos de acionar a máquina, claro, mas não consegue mover a Justiça sozinho (se a regra for levada a sério, claro).

É como uma arma de fogo: O Juiz é o revolver. O Promotor é a munição (ou função que tenha direito de mover ação no Judiciário). Sozinhos, nenhum dos dois conseguem ferir ninguém. Juntos, são arma pronta para disparo. Mas se esta arma é a Justiça, e a Justiça deve ser cega para que possa ser imparcial, então, “bala” e “revolver” não podem nunca “combinar o jogo”. Você pode se sentir tentado a dizer que essa é a minha opinião, mas não é só “minha opinião”. Minha opinião não faz nada ser verdade. Essa é a lei.

Código de Processo Penal, artigos 104, 112, e mais importante, 564, inciso I, onde se lê que a nulidade ocorrerá por incompetência, suspeição ou suborno do juiz. Não, não se trata do que eu acho. Se trata do que diz a lei. A lei que foi pactuada por todos nós, quando aceitamos viver sob a égide do Estado.

E por que diabos eu quero um Estado fraco, amarrado, e incapaz de combater aqueles que fazem o mal?

Bem, essa talvez seja a parte mais fácil de explicar, se você leu com atenção até aqui.

O Estado é uma Besta. Uma criatura de força descomunal. Pense no pior criminoso que você conhece. Digamos que há uma cria gerada a partir dos condenados – desta vez, os condenados com provas – pela lava-jato, mais Marcola do PCC e Beira-Mar do CV. Dessa junção monstruosa, nasce o Mal encarnado em um único ser humano. Conseguiu visualizar? Bem… Esse ser humano é uma “pulga” para o Estado Brasileiro. Uma pulga. Se o Estado determinasse que esta cria do mal fosse exterminada, usando todas as armas que o Estado detém, esta “pulga” não teria qualquer chance. Não importa o quão “sangue-ruim” seja um ser humano. Diante de um Estado funcional, ele não é nada. Nada. Osama Bin Laden foi o mais temido terrorista da história recente. E mesmo cercado por uma tropa de fiéis, escondido por mais de uma década em um Estado estrangeiro e não amigável aos EUA, ele foi finalmente eliminado. Ele era uma pulga. Irritante e perigosa, claro. Mas uma pulga. E foi esmagado. Não tinha como revidar contra um Estado inteiro, focado em eliminá-lo.

Se Lula é criminoso (eu acredito que sim, mas acreditar não é o bastante), cabe a Besta que é o Estado, com todos os seus meios legais e regulados pela Processo Penal e Civil, provar, sem dúvidas, de que ele é mesmo criminoso. Estado que tem BacenJud, InfoJud, RenaJud, Polícia Federal, Peritos, Grampos, Parcerias internacionais, ABIN… Se com essas agências e mecanismos, o Estado não conseguir provar a culpa de alguém… Deus nos ajude….

Coloque isso na sua cabeça, não importa se você concorda sobre Lula, ou não: A relevância de uma pessoa é insignificante, por mais importante que ela seja, caso ela decida lutar contra um Estado ilimitado, bestial, e que não está amarrado por regras. As regras precisam existir para que o Estado não decida esmagar eu ou você, quando qualquer pessoa desafeta a nós chegar às rédeas do Poder. Regras que precisam não quebrar, regras que não podem ser ignoradas, nem aplicadas “ad-hoc” (quando convém). O Estado, se democrático e de Direito, jamais pode atuar pela exceção. Exceto diante da guerra com outro Estado. Aí, a própria lei prevê as exceções (e.g.: o estado de sítio), e escalona o poder da Besta (Sanções políticas, econômicas, intervenção militar, uso de armas de destruição em massa, etc.).

E, hoje, um Estado de exceção se aplica contra Lula. E você ri. Ri porque o odeia com todas as suas forças e fibras do seu corpo. E você tem esse direito (de odiá-lo). Tem esse direito porque vive em um Estado de Direito, que o permite sentir ódio (mas não agir com base nele) de alguém que você não gosta.

Eu, pessoalmente, não gosto de Lula. Não gosto de sua imagem cuidadosamente construída para ser o novo “Pai dos pobres” (em uma sociedade viciada em esperar pela ação alheia, enquanto procrastina diante da sua própria obrigação). De seu proselitismo político, de sua retórica preconceituosa com gente como eu que decidiu estudar as questões e discordar, e não se mover ou se vender ao seu populismo – o mesmo populismo que, nas mãos da Direita, conduziu um completo despreparado à Presidência do meu país, que se afunda no abismo, dia após dia.

Não. Eu não gosto de Lula. Também não desgosto. Apenas acho que ele não tem a(s) solução(es) que meu país tanto precisa.

Mas esse gostar/não-gostar não me faz esquecer que ele é só um homem. E que, contra ele, há um Leviatã com poderes quase infinitos, que tudo pode, e que a única forma de estabilizar a balança (da Justiça, a quem estou me dedicado e pretendo defender um dia) é via regras que não admitem exceções. Nem para os que odeio, nem para os que amo, nem para os quais sou indiferente. Um Estado de Direito. Não de exceção.

Porque hoje é Lula. Mas amanhã, posso ser eu diante da Besta. E ai de mim – e de qualquer um – se enfrentá-la sem nenhuma amarra e proteção.

#LulaLivre – Não porque gosto ou desgosto dele. Mas, porque gosto da Lei e do Estado Democrático de Direito. E aprendi com Chernobyl que quando não há limite, nem vigília, o Estado me esmaga sem qualquer chance para mim.

Você pode achar que os fins justificam os meios e que para prender Lula, vale tudo, inclusive ignorar as regras, e mentir sobre os reais motivos que o mantém preso. Mas eu te pergunto agora, com a tristeza e sinceridade de quem teme que a Democracia morra pelas mãos de quem pensa a defender:

Qual é o custo das nossas mentiras?

Foi um longo inverno (ou, “Porquê você quer mais Tempo, mesmo que não saiba?”)…

Estou de volta. Foi um longo inverno por aqui, concordo e lamento. Como penitência, faço um texto longuíssimo. (Pensando bem, a penitência é sua que vai tentar ler isso tudo… Me perdoe, de coração).

Acomodar uma nova formação acadêmica em minha vida foi tarefa mais desafiadora do que eu poderia imaginar. Mas, claro, não foi só isso. Escrever só por escrever nunca foi a minha vontade. E 2018 teve tanta pauta e tanta lama, que parecia ser impossível discutir qualquer tema relevante sem muito esforço e muito estudo. E tudo isso demandava tempo. Tempo: O commodity que eu não tinha.

Diz “o Livro da Economia” (Ed. Globo, 2012) que a primeira lição da Economia é a Escassez: Não há nada que queiramos em quantidade suficiente para todos os que querem. Pela diversão, embora fuja ao ponto, a segunda parte dessa lição cita que a primeira lição da Política é ignorar completamente a primeira lição da Economia. Mas, voltando… Commodities

Bem, novamente, no ramo da Economia, as commodities são as matérias-primas de circulação mundial, isso porque sem elas, nada pode ser produzido. O aço, a água, o milho…

Um outro commodity é o Tempo. Ok, não vejo como vender tempo, no sentido literal da tradição, de tal modo que eu venha a viver um ano a menos e você, um ano a mais, mediante um pagamento substancial de dinheiro seu para mim… Outro problema em colocar o Tempo como commodity é que a definição clássica espera que um commodity tenha um preço quase tabelado ao redor do Globo, não importando sua origem ou sua história. Quer dizer: Um saco de milho do Brasil não tem muito motivo para ser 2x mais caro, melhor, mais milho, ou 2x mais barato, pior, ou menos milho do que um saco desse commodity vindo dos EUA. Claro que há todo o problema tarifário, tecnológico, de infraestrutura, mas ei… Não é disso que quero falar… A teoria pura das commodities diz que esses materiais básicos para a produção são 100% fungíveis e têm preços muito semelhantes quando feitos por competidores do mesmo tamanho. Isso porque por serem matérias-primas e, portanto, não refinadas, nem trabalhadas para serem o produto final, o valor agregado é o menor possível. Daí a pasteurização pecuniária.

Não é bem assim com o Tempo… Como Marx propõe no capítulo I do livro “O Capital”, percebemos que o Tempo de um empregado hábil, com ferramentas, tecnologia, ciência, nunca custará o mesmo que o tempo de um empregado sem essas características. E assim é com a vida:

Uma hora a mais de vida para alguém a beira da morte parece valer qualquer esforço. Para um jovem de 17 anos, as horas são um recurso em sobra e até irritantes: Ele não vê a hora de atingir os 18. Pularia todo aquele ano enfadonho se a opção lhe fosse dada.

Pois bem, já me parece razoável a certeza de que a ideia de que as horas de nossas vidas não custam a mesma coisa está clara para quem lê. Não é a mesma sequer para a mesma pessoa (o jovem que pularia todo o tempo dos 17 para os 18, não cederia um minuto de vida, se assim pudesse evitar, quando chegasse a hora derradeira).
Mas afinal, do que estamos falando por aqui? Na verdade, e sendo bem sincero: De nada. Diferente de outros textos que já escrevi, este aqui só quer conversar contigo. Sem pretensões. Só meus achismos.

Com 32, indo para 33, sinto desejo por algo novo: O tempo é tudo que eu quero. Nem casa na praia, nem carro do ano. Troco tudo isso por mais tempo. Você vai dizer “tá bom… Vamos ver se recusará se alguém bater na sua porta e te der tudo isso”. E aí te direi “você entendeu tudo errado: Claro que vou aceitar. Mas, para poder vender tudo e, com esse dinheiro, comprar mais tempo pra mim”.

Aí que está a teoria de tudo: Tempo é commodity. E commodity é um bem que se compra. Já expliquei isso antes. E daqui, ocorre-me outro desdobramento: A insanidade com a qual convivemos pacificamente é que trabalhamos para comprar de volta o que sempre foi nosso: O Tempo. Vamos perder um tempo (já sentiu o prejuízo, hein?) nessa parte…

O que você vende para a empresa onde trabalha é seu tempo. Se for o dono da empresa, a empresa passa a ser sua razão de existir e, com isso, todo seu tempo é dela. Assim, empregado ou dono, você vende seu tempo de vida para alguém (mesmo que o patrão seja você).

Você recebe, em troca, dinheiro. A quantidade desse dinheiro depende de muitos fatores, alguns até imorais (como o incompetente filho do dono, que tem cargo de diretor). Outros são a expressão máxima da ideia de meritocracia, como a faculdade com bom nome, o histórico com notas altas, a pós-graduação, os idiomas, as especializações… Por aí vai.

Porém, embora você, engenheiro, médico, advogado ( = chavões) venda suas ~8h de forma mais cara do que o desqualificado, não necessariamente você vive mais (ou melhor) do que ele. Senão vejamos:

Um gerente de empresas tem um salário – bem – maior do que o estagiário. Mas quando as férias escolares chegam, é o estagiário que vai para a balada e, depois, transa mais que funileiro gaúcho (piada interna, perdão), enquanto o gerente pode estar fazendo turnos de 10 a 12 horas diárias, chegando em casa quando os filhos já dormem e a mulher já saiu do clima de festinha, se é que me entende… Parece exagerado, eu sei. Quem dera o fosse. Não é.

Eu trabalho com as maiores corporações do país, graças ao emprego que tenho (em uma das 5 companhias mais valiosas do mundo). Eu lido rotineiramente com líderes de equipe, quando não com diretores e, em geral, todos sofreram um bocado para estarem onde estão. E o que vejo e ouço na vivência com eles me garante: Eles não são mais livres ou vivem mais que o analista júnior. Comparar com o estagiário é até mancada. Não o farei mais.

Alguém vai me derrubar “do devaneio” que estou construindo. Vão me dizer “Tá bom… Mas o gerente passa as férias nas Bahamas e vai ao Aeroporto de Mercedes. Seu analista júnior não pode comer bife todos os dias da semana, ou vai à falência”.
O argumento é cruel; não posso deixar de reconhecer a obviedade de que meus gostos e meus sonhos só podem ser alcançados sendo o Engenheiro e jamais o Estagiário. Mostra o tipo de sociedade consumista em que nos moldamos. “Você é o que você tem e pode mostrar”, a maioria vai dizer. É uma realidade. Mas também é uma mentira. E eu vou tentar provar o erro que me parece existir nessa filosofia.

O primeiro aspecto a considerar é um tanto óbvio, porém, continuamente ignorado. O Estagiário realmente não vai às Bahamas. Não dá. Não com o que ele ganha. Mas eu tenho CERTEZA que ele se encontra “com os parças”, toda semana. E quando o dinheiro do goró (jovens, vocês ainda usam “goró”?) acaba, isso não importa. Um faz “o corre” do outro. E se ninguém tiver, não tem problema 2.0: Sentam na sala da casa da mãe de um deles e jogam conversa fora. O Tang é bom. A conversa, melhor ainda.

O Gerente, o Diretor, realmente vão às Bahamas. A cada quantos anos? Dois? Três? Só quando o casamento está acabando? Quando pegaram a mulher no Tinder, cansada de se deitar sozinha? Vão levar os filhos também, aquelas crianças que eles não sabem nada a respeito, mas que sabem que trouxeram ao mundo. Eles verão e desfrutarão coisas que o Estagiário só pode sonhar. Por 7 ou 15 dias a cada 2 ou 3 anos.

Não consigo me decidir de quem tenho mais dó.

Não sou hipócrita: Tenho sonhos, gostos e hobbies caros. Tenho um padrão de vida que não pode ser adquirido com sorriso no rosto e vida bucólica. Conheci os EUA em várias partes, o Chile, a África do Sul de Sul a Norte. Não dá para fazer o que faço com mil e duzentos reais por mês. Simplesmente não dá.

Mas eu jamais me permito esquecer: A única coisa que faz valer a pena sair da cama para perder 10 ou 12 horas do meu dia enriquecendo acionistas não é o dinheiro em si. É o que ele me permite fazer.

Daqui, decorrem mais alguns fatos para você analisar – como eu faço agora: Ninguém sobrevive num emprego como o que tenho, trabalhando 8h por dia. Ninguém. Podem lhe contar a mentira que quiserem. Não dá. Os mais “pé no freio”, como eu, fazem 10h. Os gerentes fazem 12h. Os alucinados, esses já não sabem mais dizer ao certo. Outro fato é que, realmente, é mentira se alguém lhe disser que a empresa nos obriga a isso. Ela não obriga. Você apenas não tem condições de entregar o que o cliente final contratou e ainda se manter em dia com as obrigações como funcionário dela. A armadilha está montada. Ela não te pede isso. Apenas é impossível ser um profissional bom sem fazer isso. E os profissionais não-bons, não-duram (com o perdão do “trocadilho gráfico”).

Eu trabalho para viver ou vivo para trabalhar? Tem horas que a diferença é impossível de se ver a olho nu. Porém, é só se lembrar de algo doloroso de se encarar: Você nasceu em uma família e cresceu com amigos. A carreira só veio bem depois na sua vida, lá pelos 16 ou até mesmo 20 anos. E você quer voluntariamente passar mais tempo com a última em preterição aos 2 grupos primeiros?
Que você não se engane: Ninguém aqui está vendendo sonhos. Só pode descansar no galho alto da árvore quem se deu ao trabalho de subir até lá. E se você nasceu pobre como eu, em uma periferia que nem asfalto tinha, a subida é uma merda, eu sei. Só que aqui mora o truque supremo do Diabo: Para que (e não por que) você quer ir até o galho mais alto? A maioria das pessoas com quem falei não soube responder com grande clareza. Algumas ensaiam um “é pela vista”. Ao que retruco “e quem vai subir com você até lá para discutir aquilo tudo que se vê e como foi a viagem até ali?”. A maioria desisti aqui. Alguns são o exército de um homem só: “Quem não aguentar a subida não é digno do que nos aguarda lá no alto”. Ok, Rambo… É seu direito pensar assim. O mundo só pode ser separado em vencedores e perdedores, você me diz. Respeito. É tosco pra mim. Mas respeito que funcione pra você.

Do meu lado, está bem claro: Não faz o menor sentido ter o melhor vinho de 2018 na minha adega para abri-lo sozinho e tomá-lo inteiro, sem ninguém para comentar todos aqueles aromas e sensações. Isso [de tomar uma garrafa, solo] é coisa de alcoólatra; não quero ser um.

Cada um sabe qual é o seu WLB (Work-Life Balance, sigla da nave-mãe onde vendo minha vida), é bem verdade. Para mim, WLB é ter a ajuda do meu gerente para estar na faculdade, por mais 4 anos no mínimo, das 19h às 22h, segunda a sexta, no período tipicamente letivo do Brasil. Para outros colegas, WLB é ter milhas infinitas para viajar de graça. Nenhum dos dois está errado. É só cada um correndo atrás do que quer. Só que tem uma coisa: Eu já passei tempo demais em saguão de aeroporto, hall de hotel e dentro de carros para saber que essas horas não voltam. Nenhuma delas, não importa como você as empregue, voltam, na verdade.

10 horas numa festa com os amigos, ou 10 horas dormindo. Ou ainda, 10 horas em uma UTI de hospital. Já passei por todas. São 10 horas. E nenhuma delas tem o mesmo preço. Marx all over again

Eu vou te contar o melhor que ocorreu em 2018, comigo: Eu passei 4 dias com minha segunda família. Aquela feita pelas amizades que forjei no caminho que já percorri. Nem todos estavam lá, verdade. A vida não deixa que nada seja pleno, perfeito ou eterno. É parte da ironia que nos maltrata e que também a deixa tão bonita. Não foi de graça, claro. Pagar metade de um salário-mínimo é um luxo, num país com 13 milhões de desempregados. Não sou idiota e entendo como eu pude fazer isso.

Mas quer saber?

Somos nós que criamos as prisões em que nos trancafiamos. Nós dizemos qual é o preço. Nós dizemos que para ver os amigos, rir, falar besteira, aos 33 anos de idade, precisa custar X vezes mais do que custava quando éramos todos estudantes pobres em uma escola pública por aí. Novamente, não sou idiota: Eu quero estar com eles, tomar boa cerveja, comer carne na brasa, ter café da manhã com todos os requintes que desejo. E tudo isso custa dinheiro… Mas esse não é o problema… O problema vem abaixo.

Estamos, todos nós, morrendo, o tempo todo. Nesse exato minuto, você e eu estamos mais perto da morte. E ninguém sobrevive a ela. Eu garanto. Só que o sistema que criamos (e se não criamos, no mínimo, sustentamos com cada escolha que fazemos) diz que a única forma de viver com conforto, corretamente, dignamente – use o adjetivo preferido – é vendo o cliente 40 ou 60 horas por semana, e vendo os amigos 3 horas por mês, ou indo com a mulher para as Bahamas a cada 2 anos, por 15 míseros dias. Seu filho deu o primeiro passo e você estava fazendo hora-extra. E você diz “é por ele”. Bem, só tome o cuidado de não pôr tudo na conta dele. Não se assuste se um dia você chegar em casa e ele estiver com barba. A escolha foi sua, nunca dele. Se você for um completo estranho para aquele cara com 15 anos que ainda ontem você trocava fraldas, não diga que foi tudo por ele. Me parece um pouco covarde ou desonesto. Foi por você. Como meus hobbies são por mim. Se eu preciso ter uma adega com 30 garrafas dentro, não é pela adega. Não é pela minha noiva, nem pela minha mãe. É por mim. E tem um preço. O preço é medido em dias da minha vida. Dias e horas que não me pertencem, porque eu os vendo. Se vendo por um preço justo, a história que fiz e faço dirá.

Para todo o apaixonado pelo vil metal, pelo contracheque, pelos zeros que se acumulam na conta… Fica só uma sugestão: Tome cuidado para não gastar tudo que acumulou, sozinho e/ou numa cama de hospital. Ter um milhão é legal, claro. Olhar pro lado e saber que você não poderia estar melhor acompanhado (família, amor, amigos, cachorro, whatever) é muito melhor. Se você conseguiu os dois, te parabenizo e te invejo. Quem sabe um dia. Mas te garanto que conhecer a Savana africana com 30 é melhor do que conhecer com 60 ou 70, quando as costas já não aguentam mais a dor da estrada de terra. O tempo do garoto não custa o mesmo do velho, lembre-se disso sempre.

Toda vez que você vende barato o que não tem preço (a.k.a. seu tempo nesse mundo), você está sempre dizendo que é pelos outros, ou pelo futuro, ou sabe lá em nome do que. Enquanto isso, o que escorre pelas suas mãos é a vida. A única que você terá aqui. Se houver outra, só tem um jeito de saber, e é um preço caro demais para se pagar e confirmar.

Eu disse que não ia vender sonhos. E continuo dizendo: Semana que vem eu vou estar no trabalho. Os boletos continuam chegando. Da faculdade, do aluguel, do vinho. Eu quero tudo isso. Mas as prioridades têm de ser claras para mim. Eu não vou vender o tempo que sempre foi meu para conseguir mais dinheiro, para guardar mais, para ter mais bens que não vou utilizar (porque estarei fazendo hora-extra em algum lugar, para enriquecer alguém que não sou eu), para um dia, quem sabe, se a loucura do hospício que é o mundo adulto não tiver me roubado toda a saúde, eu, enfim, aproveitar isso tudo. Lembrando o que eu já disse: Miami com 30 anos é bem melhor que Miami com 60. E com 20, é melhor que com 30. A disposição, a aventura, a doçura das memórias; essas coisas não podem ser compradas.

Estamos todos em rota de colisão com o fim. A vida é agora. Longe de mim entrar na onda idiota do “Carpe Diem”, lema romano usado no fim do império, já na decadência, para justificar abusos e inconsequências. Quem me conhece sabe muito bem que esse não sou eu.

Mas, 2019 será um ano que dedicarei a viver com menos. Eu vou enxugar os gastos, reduzir o que puder, sem tornar a vida enfadonha, sem tornar o emprego insuportável (eu vou para lá por tudo o que ele me permite fazer fora de lá; nunca me esqueço dessa ordem) e, então, eu vou saber de quanto preciso para manter a roda girando. E em 2020, a meta é trabalhar menos.

O homem planeja e Deus ri, é verdade. Só estou compartilhando um plano. Planos mudam. Nem por isso devemos deixar de fazê-los… Eles nos dão Norte para seguir nas horas mais escuras.

Mas eu sei o que faz a vida valer a pena. E não tem nada a ver com meu cargo, meu e-mail, ou meu currículo. Não que essas coisas sejam ruins. Pelo contrário: É o melhor lugar em que já trabalhei em toda a minha vida. O melhor gerente, a melhor equipe. Mas houve um tempo em que todas as horas da minha vida eram minhas, e como o estagiário, eu via constantemente as pessoas que fazem o mundo ser um lugar que vale a pena estar. É isso que eu quero. O caixão não terá cofre. Só vão lembrar de mim as pessoas com quem eu me relacionei humanamente. Nenhuma empresa em que troquei o servidor de e-mails fará uma homenagem quando eu partir.

Agora, eu vendo minhas horas por um preço que não atinge 13% do valor que elas geram para minha companhia. Detalhe sórdido: Fiz a conta com o salário bruto, como se não houvessem impostos. E alguns dos meus colegas estão determinados a não ver os amigos, não ver os filhos, perder a mulher para o encanador… Alguns porque tem um plano e o sacrifício é valido, com começo, meio e fim. Eles têm minha admiração, no entanto ela valha de nada. Porém, outros tantos o fazem porque disseram para si que “não há outra forma”. Pois, minha meta será achar outra forma. Porque estou morrendo. Todos estamos.

Memento mori, diziam os sábios antigos.

Eu me lembro. Eu realmente me lembro…