Em 2014, durante a Copa FIFA no Brasil, a minha empregadora deu camisas oficiais da seleção canarinho para todos os funcionários. Foi um belo gesto e um belo presente. Mas, se eu já fazia ressalvas à camisa da seleção desde os idos de 2018, o último 8 de janeiro de 2023 veio para sepultar qualquer chance de eu vestir essa camisa no futuro. Ela se tornou um símbolo de tudo o que mais desprezo: estupidez, covardia, golpismo, fascismo… Interrompo a lista, por contenção. Por isso, a camisa foi para a caixa de doações. Não que eu ache que os menos afortunados deveriam ser confundidos com quem veste essa camisa para praticar barbárie. É muita humilhação com gente já marginalizada. Mas entre a doação e o lixo, acho que ela ainda pode servir melhor no primeiro grupo.
No “mundo líquido” de Bauman, as palavras também têm perdido a substância e o sentido original, numa velocidade assustadora. Na política brasileira, então, esse esvaziamento de sentidos é notório e pré-data a era digital, ou seja: não foi ela que forçou o esvaziamento dos sentidos dentro da vida política.
Há muito, eu crítico a Esquerda brasileira pela falta de zelo com as palavras. Foram seus atores que esvaziaram o sentido de “fascismo” e “fascista”. Quando todos são, ninguém é. E os representantes desta Esquerda usaram e abusaram da “licença político-poética” de empregá-la. O resultado, tal qual a fabula de Pedrinho e o Lobo, foi que quando o termo realmente precisou ser empregado para alertar o povo do que estava por vir, ninguém mais se importava com o peso e o alarme nele contidos.
Outra palavra bem surrada é “terrorismo”. Desde 2001, pelo menos, o terrorismo está em todo lugar. Existia antes, mas virou vírgula depois das Torres Gêmeas novaiorquinas. Então, como eu já comentei sobre as 14 características do fascismo, passo a comentar sobre o sentido de “terrorismo”. É bom adiantar que as definições de “terrorismo” são bem diferentes no meio político e no meio jurídico. Começo pelo último.
A Constituição Federal de 1988, Lei maior no ordenamento jurídico brasileiro, e pacto social firmado entre todos os nacionais deste país no que tange à organização do Estado, utiliza “terrorismo” sem, no entanto, explicá-lo. Ele aparece no art. 4º, quando define como o Brasil se comportará nas relações internacionais (e, por lá, repudia o emprego do terrorismo, bem como do racismo) e, mais tarde, no art. 5º, famoso por ser rol maior dos direitos constitucionais fundamentais do cidadão brasileiro, que define o terrorismo como crime inafiançável, conforme inciso XLIII (43), onde se definem inafiançáveis, também, os crimes de tortura e tráfico de drogas. É a conhecida – por quem estudou Direito – trinca “TTT” de crimes. Isso tudo dito, nada explica a Constituição acerca do que é “terrorismo”. E não há crime sem lei anterior que o defina, como comanda a mesma CRFB, neste mesmo art. 5º, inciso XXXIX (39).
Se pesquisarmos o Código Penal, Decreto-Lei 2.848/1940, tampouco encontraremos definição do que vem a ser “terrorismo”. Isso porque a regulamentação do que é terrorismo ocorre em Lei esparsa (fora do Código Penal) e tivemos a edição da Lei Federal n° 13.260/2016.
É essa Lei, conhecida como “Lei antiterrorismo” (embora eu discorde do “anti”, já que ela não se dedica a criar meios de combate ao terrorismo), que define em seu artigo 2º o que é terrorismo para o Estado democrático de direito brasileiro, numa perspectiva legal (jurídica).
Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
§ 1º São atos de terrorismo:
I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
II – (VETADO);
III – (VETADO);
IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.
O primeiro entendimento que alcanço, portanto, é de que a Lei antiterrorismo não se aplica aos golpistas do último dia 8. E aqui cabe alguma contextualização histórica: o diploma legal em comento foi promulgado pela ex-Presidente Dilma Rousseff. Seu passado pessoal em grupos paramilitares pró comunismo, bem como sua posterior filiação ao Partido dos Trabalhadores que é fortemente baseado em movimentos sociais históricos do Brasil (MST, CUT, APEOESP, etc.) levou a todo tipo de pressão no Congresso Nacional para que a Lei antiterrorismo alcançasse tão somente o conceito “internacional” de terrorismo (o terrorismo de grupos religiosos, de grupos supremacistas por etnia, etc.), excluindo qualquer alcance ao “terrorismo doméstico” (grupos de nacionais que decidem executar atos violentos contra o governo em exercício, por qualquer razão). Daí a redação do parágrafo segundo. É este mesmo § 2º que livrará os bolsonaristas envolvidos no 8 de janeiro de se verem acusados de terrorismo nos termos do art. 1º, inc. IV, da Lei supra.
Portanto, “terrorismo”, juridicamente falando, diante do arcabouço (conjunto) do ordenamento pátrio vigente, não é crime pelo qual os vândalos possam ser denunciados. E o Direito Penal é extremamente fóbico a qualquer inovação em entendimento que permita a elasticidade do alcance dos tipos penais. Em outras palavras: o Direito Penal não tolera entendimento que facilite o enquadramento de condutas do indivíduo em crimes legalmente previstos, mas que não citam claramente a conduta perpetrada. E com razão. Fosse o Direito Penal amigável a essa liberdade do Poder Acusatório, todos que incomodassem o Estado (ou o governante) acabariam facilmente atrás das grades. Pelo mesmo motivo, mesmo que o Congresso Nacional editasse nova Lei ainda hoje e o Presidente Lula a promulgasse, ainda assim os bolsonaristas não poderiam ser processados sob a figura da nova Lei. Porque a Lei penal só retroage em favor do réu, nunca contra (art. 5º, XL [40], CRFB).
E se você está esbravejando por concluir que os bandidos de domingo sairão livres, veja isto por outro ângulo: é uma excelente oportunidade para falar para seu parente/amigo bolsonarista sobre a importância dos Direitos Humanos, da legalidade, da obediência à Lei por parte das instituições e do Estado-Juiz, e porquê vale defender um Estado democrático de direito. Fosse uma ditadura, o(s) ditador(es) poderia(m) mudar todo esse entendimento sem maiores melindres e poderia(m) condenar todos os arruaceiros à pena de morte, mesmo que retroativamente.
Mas, e o “terrorismo” no sentido político? Este certamente é termo adequado para os bolsonaristas nas ruas. Embora o mundo nunca tenha chegado a uma definição universal do que é “terrorismo” (porque é um crime de definição “cinzenta” – toda revolução é ilegal, exceto se der certo…), os Comitês das Nações Unidas que se debruçaram nesse tema, nos idos dos anos 2000, chegaram à seguinte definição do que é a conduta terrorista:
“quando o propósito da conduta, por sua natureza ou contexto, é intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a que faça ou se abstenha de fazer qualquer ato. Toda pessoa nessas circunstâncias comete um delito sob o alcance da referida Convenção, se essa pessoa, por qualquer meio, ilícita e intencionalmente, produz: (a) a morte ou lesões corporais graves a uma pessoa ou; (b) danos graves à propriedade pública ou privada, incluindo um lugar de uso público, uma instalação pública ou de governo, uma rede de transporte público, uma instalação de infraestrutura, ou ao meio ambiente ou; (c) danos aos bens, aos locais, às instalações ou às redes mencionadas no parágrafo 1 (b) desse artigo, quando resultarem ou possam resultar em perdas econômicas relevantes”.
Portanto, sim, não há dúvidas de que os movimentos bolsonaristas nas ruas são terroristas, dentro de uma definição política, bastante aceita e atual (ONU, anos 2000). Mas para que se possa falar em crime de terrorismo, este precisa existir na legislação nacional, anteriormente ao(s) ato(s), para que se possa processar, julgar e prender o(s) individuo(s) que praticou(am) tal ação. É óbvio: há diversos outros crimes para acusar a horda de tresloucados. Dano, lesão corporal (contra os agentes que foram espancados), ameaça, crimes contra o patrimônio cultural (Lei 9.605/1998), a própria figura do Golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal) que foi criada em 2021, enfim… Muitas possibilidades, mas não a figura do crime de terrorismo. E, com ela, se vai a característica do crime inafiançável. Ainda terão ao favor de suas defesas, atenuantes do art. 65 do Código Penal, como aquela concedida ao crime cometido sob influência de multidão.
Neste breve resumo, quero alertar para fato que me parece claro: o Brasil, o Estado brasileiro, as instituições, a Lei, nenhum deles está pronto para lidar com o terrorismo bolsonarista. A Lei, como está, não os alcança em magnitude e não protege o Estado brasileiro e os cidadãos que o respeitam em suficiente. Fora da Lei, não há diferença entre bandidos e um Estado de exceção. Como não havia diferença entre os terroristas de Esquerda, planejando sequestros para forçar sua ideologia, ou os terroristas fardados, usando a máquina do Estado para perseguir e aniquilar quem os incomodava. Fora da legalidade e do prévio conhecimento das regras do jogo, vale tudo. E o vale-tudo não pode ter lugar na civilização e na cidadania.
Espectros
Os espectros, os fantasmas, o passado da história brasileira voltaram a aparecer com força inédita, desde a redemocratização. O que se assistiu no domingo passado e o que se ensaia para hoje, no início da noite, foi (e será) nada aquém do que uma tentativa de golpe de Estado. O que queriam os criminosos era que, diante da desordem instalada por eles, as tropas das forças armadas fossem às ruas, e sendo elas recheadas de simpatizantes pelos desordeiros, virassem-se contra Constituição de 1988, tomando o poder político das mãos dos que foram eleitos. Se ainda somos uma democracia é somente porque o cenário internacional não favorece um golpe e as famílias dos militares não querem perder o direito de ir pra Disney. Se não houvesse uma pressão internacional (especialmente dos EUA – ah, a ironia) em sentido contrário ao golpismo, já teríamos a voz do Brasil passando até no Twitter, à essa altura.
O problema é que a história sociopolítica do Brasil é feita de golpes de Estado. O caminho “natural” nunca existiu para a sociedade brasileira. Não. Aqui, política nova se faz com ruptura e solavanco. É verdade que em quase todo país do Ocidente, a história se repetiu do mesmo modo no início, mas o caso brasileiro é especialmente alarmante porque essa lógica jamais foi superada:
A queda da monarquia e o início da República se dá com um golpe dos militares contra o Imperador, em 1889.
O fim da primeira República (iniciada em 1889) e o início do Estado Novo se dá com um golpe de Getúlio, apoiado pelos militares que lhe eram simpáticos, em 1937. Acabou em 1945, também sob ameaça de um novo golpe de Estado e novamente por ação dos militares, agora, opostos a Getúlio.
Chega 1964 e a Democracia cessa outra vez, com os militares dando um golpe de Estado para impedir que o vice de Jânio Quadros, João Goulart, erigido a presidente pela renúncia do primeiro, pudesse levar a cabo seus planos político-econômicos, sob a alegação de que Goulart instalaria um regime comunista no Brasil. Detalhe: Goulart era tão comunista quanto eu ou você. Seu nacional desenvolvimentismo era de matriz Getulista (aliás, ambos eram do PTB, fundado por Getúlio justamente para “roubar” votos da classe trabalhadora, contra partidos abertamente comunistas).
Chegam os anos 1980, os donos da ditadura brasileira, general Geisel (penúltimo presidente do regime militar) e general Couto e Silva (o melhor “político fardado” que dispunham), percebem que vão sofrer uma revolução popular e, antes disso, desarmam a bomba-relógio “se adiantando” e devolvendo a República ao controle popular pelo voto (numa análise reducionista: democracia). Esse adiantamento foi letal para o equilíbrio porque, iniciado no meio dos anos 1970, permitiu que os militares programassem como “perderiam o poder”. E ainda ocupando o poder, obrigaram o outro lado (o nosso) a aceitar os termos postos à mesa. Perderam e não perderam. Influenciaram toda a redação da Constituição e garantiram para si uma Lei de anistia extremamente bondosa e protetora de seus interesses. Não foram julgados, não tiveram sua vasta corrupção investigada. Saíram vitoriosos e ainda poderosos. Vide os moldes atuais da previdência militar.
Chegamos à redemocratização em 1988 e nos dias de hoje. E como já foi dito muitas vezes, nos últimos dias, porque um deputado pôde homenagear um torturador (ele não homenageou um presidente do regime, mas o torturador dos porões; é bom que se entenda a diferença) durante seu voto no impeachment de Dilma e não sair de lá algemado, aqui estamos: discutindo se a democracia brasileira aguenta muito mais tempo sob esse tipo de ataque. Imagine se o parlamento alemão aceitasse que alguém homenageasse Hitler nos dias de hoje. Seria escandaloso.
O Brasil
“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.”
ou
“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.”…
Talvez, haja obras mais atuais a sumarizar os tempos vividos. Mas eu já estou velho e essas são as músicas da minha geração. Citar Vandré seria pretensioso, já que ele veio bem antes. Buscar o presente seria engodo, já que eu não tenho escutado muito os novos artistas brasileiros.
A pesquisa Atlas-Intel, publicada no último dia 10, entrevistou a população e concluiu que 75.8% não concorda com os atos de vandalismo, enquanto 18.4% concordam. 18% é muita gente de acordo com a barbárie, mesmo que pareça pouco. Quando movemos o recorte para eleitores do Messias, vemos que 38.1% apoiam, enquanto 48.6% repudiam, o que é surpreendente e até positivo. Mas, quando mudamos para religião e olhamos para os que se declaram evangélicos, o problema dispara de novo: 31.2% concordam, contra 14.3% de católicos e 6.4% de outras religiões. Clique no link acima para conferir o tamanho do estrago na sociedade, após ao menos 4 anos de barbárie verbal e prática.
Seja como for, temos que olhar para o material humano disponível no Brasil. Não é possível atribuir tudo à figura do grande mito messiânico que essa horda decidiu seguir. É impossível lhe eximir da responsabilidade, igualmente. Palavras têm força, e na boca ou nos textos de pessoas pelas quais temos apreço, devagar ou rápido, passam a ecoar no nosso imaginário e formar – em parte ou no todo – a nossa opinião.
Não, um presidente que grita “vamu metralhar a petralhada” (sic) não está apenas fazendo um discurso. Não é mero simbolismo, figura de linguagem… Ele está, no médio ou longo prazo, autorizando a violência contra quem não concorda com ele(s). Ademais, praticamente tudo na vida humana é simbólico. O seu contrato de trabalho é simbólico, o casamento dos seus pais é simbólico, a escritura pública da sua casa própria é simbólica, e o contrato de aluguel também é.
A Lei. Especialmente a Lei. Essa é muito simbólica. É um símbolo de que nós todos, unidos pela língua, cultura, território e época, decidimos renunciar a boa parte da (senão a toda) capacidade física e coercitiva de obrigar o outro a fazer o que queremos, e depositamos esse poder em um terceiro ente, idealmente capaz de usar a força na hora certa e mediar a nossa coexistência de forma menos brutal, bestial, animalesca.
Quando um bolsonarista quebra os vidros do STF, ele não está ofendendo o ministro Alexandre de Moraes.
Quando um camisa-amarela fura o painel de Di Cavalcanti, ele não está machucando o Presidente Lula, muito menos a Di Cavalcanti que já está morto há 46 anos. Tampouco machucam os ex-Presidentes cujos quadros foram estilhaçados e jogados ao chão.
Quando um milico da reserva ou policial de folga, raivoso, irrompe contra o mobiliário do Congresso Nacional, em parte trazido da antiga capital nacional (o Rio), quebrando mesas e móveis centenários, ele não está fazendo Pacheco ou Lira chorarem.
Não é aos Presidentes dos Três Poderes que o Governador do DF, agora afastado, Ibaneis Rocha, deve desculpas. As desculpas são devidas aos 215.5 milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram seu patrimônio depredado por capricho e loucura, de forma bestial e animalesca.
Ou defecar sobre a fotocopiadora virou sinal de patriotismo? Que as palavras andavam sem sentido, vá lá, mas isso já é demais.
Quando um bolsonarista joga o escudo da República para tomar chuva, não é o ministro do STF que ele está agredindo. É a mim. É a você. O ministro agora é um. Amanhã será outro. Aquele espaço onde o STF existe (e onde existem os demais Poderes), é sagrado no sentido de abrigar o nosso pacto, a nossa esperança de que possamos coexistir enquanto sociedade, no mesmo espaço e no mesmo tempo, dividindo alguns (jamais todos) valores comuns e tornando nosso país em um lugar melhor de se viver do que já foi ontem.
O ato foi, até aqui, em vão. Serviu, isto sim, para acelerar o desmonte dos acampamentos golpistas e reaglutinar instituições da República que andavam, há muito, separadas. Mas parar nesse entendimento é uma visão demasiadamente otimista, até pueril, eu diria. O bolsonarismo finalmente mostrou a que veio. Se não podem vencer nas ideias e no voto, vencerão de outro modo. Vale-tudo. Barbárie. Terrorismo. Esse é o bolsonarismo.
Espero que o espelho não lhe mostre de camisa da CBF. Se mostrar, fica o recado de quem espera que você saia dessa: você está doente e imerso num mundo igualmente doente. Não dá para respeitar a Constituição, o nosso acordo de coexistência, ou acreditar no futuro da nação e ser bolsonarista. Simplesmente não dá. É uma questão de lógica. E de civilização.
Para quem assiste muitos filmes de suspense, a paródia será conhecida:
Precisamos falar sobre a Polícia…
E este não é um assunto prazeroso para mim… Na verdade, dialoga diretamente com uma parte de mim que sempre quis ser militar, especialmente, na Polícia Paulista. Cheguei muito perto, mas deixei esse sonho para lá, depois de algumas idas e vindas.
Tenho boa quantidade de familiares na “Força Pública” (do bisavô ao irmão, passando por todos os outros “degraus”), e tenho um pai que foi militar durante o fim da ditadura iniciada com o golpe de 64 (e que prestou o serviço obrigatório à FAB e à Justiça Militar), além de outras influências como a década de 1990 inteira, todos os seus filmes e séries (para citar alguns: Máquina Mortífera, Duro de Matar, TopGun, Passageiro 57, e só todos os duzentos filmes de roteiros “cópia-e-cola” do Steven Seagal)… E ainda tinha CyberCops, Giban, Jiraya, Black Kamen Rider, e todas as N séries japonesas estilo “Super Sentai” das Redes Manchete e Record… Falar que esse período do audiovisual nas TVs brasileiras, cheio de enlatados importados, não alimentou o sonho em alguma medida seria infantilidade agora.
Assim, estar perto da farda era uma realidade minha. E desejar “combater o mal” (o que não foi um termo claro, durante boa parte da minha vida) foi constante da minha infância e juventude, como foi para boa parte que cresceu em lares comuns da zona leste paulistana, fazendo e vendo as mesmas coisas que eu. Eu não lembro de alguém que não brincava de “polícia e ladrão”, e todos os amigos odiavam ser da equipe de “ladrões” (então, todos revezavam para que ninguém fosse “o mau”, por muito tempo).
Assim, falar sobre a Polícia é um pouco como falar sobre Kevin (salvadas as devidas proporções, já que não dei à luz a PMESP): É lidar com o incomodo e até a dor de ter de reconhecer que há algo profundamente errado (no entorno e) com aquilo que eu sempre quis tão bem. Também não posso dizer que sou neutro ao tema, como demonstra o meu histórico familiar. Mas, farei meu melhor, aqui, para apresentar um material tão neutro quanto posso me forçar a ser ao fazê-lo.
Para que este não seja um texto cem por cento enfadonho, eu vou mesclar fatos e pesquisas com minha própria história, e contar o causo de como quase fui militar; mas, deixei passar. Talvez, ao invés de 100%, eu atinja 200% no índice “mas que lixo!” da opinião pública (que se digna a ler esse fim-de-mundo em forma de blog), mas, hey!… Eu, ao menos, tentei…
Antes de tudo, uma discussão sobre terminologia
“Negro”, “Preto” ou “Afro-brasileiro”?
Essa é uma discussão que, sozinha, merecia um artigo exclusivo.
O racismo (não o crime, pois, “racismo” é crime específico, tipificado no diploma 7.716/89 e consiste, grosso modo, no ato de impedir alguém de fazer algo [exemplos: Acessar um restaurante, obter um emprego…], por conta da cor de pele, etnia, religião(…)) é parte do constructosocial e é, portanto, estrutural no Brasil.
Por ser estrutural, não poderia deixar de se fazer presente na língua, a forma mais típica para cometer a injúria qualificada (não “agravada”, nem “majorada” – são coisas distintas) por fatores raciais. Aqui, sim, o crime mais frequente na sociedade brasileira. Art. 140, §3º/CP.
Ao longo do artigo, eu decidi por usar a terminologia do IBGE, e chamar a cor e o povo de “preta” e “pretos”, respectivamente. E eu faço isso, contrariando até o que me foi ensinado dada a questão histórica no Brasil.
Nos EUA, “nigger” (que, literalmente, é o nosso “negro”, mas soa por lá como “pretinho”, com significado de inferiorização) é termo altamente ofensivo à comunidade de ascendência proeminente africana de lá. O termo comum é “black people” (literalmente, pessoas pretas). E após os vários confrontos das décadas de 60 em diante, os diversos movimentos sociais tentaram combater o senso de inferiorização, incentivando e promovendo a ideia de orgulho das raízes africanas (como não citar “Black ‘n’ Proud” de James Brown?), usando um termo que já existia antes mesmo da independência americana: “African-American”; embora ele só tenha “pegado” no começo dos anos 1990. Por aqui, temos algumas publicações, entidades e pessoas que dão preferência ao “Afro-brasileiro”, também buscando essa valorização da raiz desta parcela do povo.
Vou começar dizendo porque eu jamais vou adotar “afro-brasileiro” como termo “certo” para determinar os brasileiros de pele escura: Porque eles são brasileiros. Não afro-brasileiros. Assim como eu não sou luso-espano-ibero-sergipano-(coloque aqui o que quiser)-brasileiro. Assim como minha noiva não é nipo-brasileira. Ela nasceu aqui, então é brasileira. Como todo o resto de nós.
Os negros/pretos (ainda mantenho certa divergência aqui) que nasceram no Brasil são brasileiros. Não são afro-brasileiros. E por isso, eu nunca vou adotar o termo “afro-brasileiro”. Se o pai ou a mãe de um sujeito tiver nascido em algum país da África, podemos conversar sobre o uso, mas ainda assim, se ele adotou a cidadania brasileira, para mim ele é brasileiro, ponto.
Estas pessoas são meus conterrâneos, meus compatriotas, e não vou tratá-los (nem para o bem, nem para o mal) como “povo apartado”, só por terem uma raiz genética diferente da minha. Se nasceram aqui, são tão brasileiros como eu. E eu sou tão brasileiro quanto eles. Jus Solis para todos.
Aliás, essa construção tem sido pervertida nas últimas décadas, exatamente onde começou: Nos EUA. O que começou como valorização da “raça negra” americana vem sendo capturado por supremacistas brancos como uma forma de dizer que “há americanos e semi-americanos”. Então, nos EUA, a conversa de que Fulano é “african-american”, e que Sicrano é “asian-american”, e que Beltrana é “latin-american”, e até os índios ganharam o “native-americans”, tem ganhado a função de delimitar claramente “quem é quem no jogo”… Os “true americans” são chamados tão somente de… “Americans”. E isso não é bom para uma comunidade que quer superar o racismo, definitivamente. Aliás, muito dos que se auto-denominam “african-american”, mal sabem que não são…(link corrigido)
Assim, algo que começou como uma tentativa de recuperar o orgulho de uma raiz que sempre foi inferiorizada e estigmatizada no Ocidente de matriz europeia, hoje é usado para lembrar, veladamente (por ora), que há os “semi-americanos” e os “americanos por inteiro”. E eu não vou colaborar para que o mesmo aconteça com o Brasil, um país de sociedade já tão segregacionista, tão feita de guetos e grupos, tão egoísta. Abraçar essas terminologias vai no oposto do que eu sonho para este país: O dia em que vamos parar de brigar organizados em gangues comungando dos mesmos arquétipos; e passaremos a brigar por todos nós, juntos.
É por motivo extremamente parecido que não chamo “favela” de “comunidade“. Enquanto eu acho que os moradores da favela não têm que ter vergonha de sua situação, visto que a maior parte não teve seu direito constitucional à moradia respeitado pelo Estado, eu também penso que “comunidade” tenta normalizar uma situação que jamais poderia ser normal. Aquele modelo de habitação não é digno, e não deve ser normalizado, nem por quem mora lá, nem por quem está fora, sob o risco de todos se darem por satisfeitos com aquela vergonha nacional para o Estado e para a sociedade que permitem, de mãos dadas, que nossos compatriotas sigam morando naquelas condições.
Resta, então, o problema entre “preto” e “negro”. Os termos são, historicamente, o inverso do caso “black” e “nigger”, nos EUA. Historicamente, “preto” foi usado, no Brasil, como ofensa. A infame expressão “serviço de preto” não seria refraseada como “serviço de negro”. Assim, sinto que estou fazendo “algo errado” ao chamar alguém que tem a pele da cor preta de “preto”. Mas, também preciso me lembrar que, originalmente, “negro” era um termo pejorativo quando foi usado por aqui, no início da escravidão na nossa história .
O costume é fator determinante para uma língua viva como o Português e não posso ignorar que todos estamos acostumados com “negro” como a forma “correta” de nominar as pessoas com pele escura.
Esquecendo o aspecto histórico, o IBGE (e todas as demais instituições que fazem estudos demográficos) “acertadamente” (de um prisma linguístico e “frio”) fala em “pretos e pardos”. E “preto” é tecnicamente perfeito como nome (substantivo) da cor de pele; porque “negro” é um adjetivo e não o nome de uma cor. Eu sou branco (dentro do Brasil, claro) e Fulano é preto. Perfeito.
Porque se Fulano é “negro”, então eu preciso ser “alvo”… E isso seria bem bizarro.
Assim, fico dividido entre abraçar, desmistificar e corrigir um erro histórico, adotando o termo “preto” para pessoas com alta melanina e uma raiz genética mais ancorada em povos africanos do que a minha; ou, posso manter o “negro” que a própria comunidade brasileira abraçou em sua cultura (exemplos básicos: Raça Negra, Negritude Jr., e por aí vai), além de tantos poetas e pensadores que usaram o termo “negro” em poemas e contos enaltecendo o sofrido povo africano escravizado, ainda nas épocas de colônia do Brasil… O termo, sinceramente, não importa por si… O seu uso e entonação determinam a ofensa, a meu ver.
Por fim, vamos à história da “raça negra”: Não existe “raça negra”. Ponto. A raça é uma só: Raça humana. O DNA de pretos, brancos, asiáticos, latinos, europeus(…) é idêntico, exceção pelas partes em que se determinam cor dos olhos, tipo de cabelo, cor de pele, altura(…). Mas, somos á mesma espécie. A mesma raça. E nossos filhotinhos (quando frutos da miscigenação) 100% funcionais (biologicamente falando) são a maior prova empírica desse fato.
Eu vou tentar (mas, confesso me sentir um pouco desconfortável) adotar o termo “preto” ao longo do texto. O objetivo é naturalizar o uso, e combater o tom pejorativo. Veremos se vai dar certo.
A fundação
Há um problema de escopo. A atividade policial não é uniforme, nem mesmo em um Estado falsamente federativo como o nosso Brasil (onde há baixa independência dos estados-membros). Alguns locais partem de uma polícia metropolitana em sua forma de atuar, enquanto outros apostam numa polícia comunitária (fundada no profundo conhecimento de um bairro ou parte dele), e as regiões da dimensão de São Paulo acabam adotando um misto de experiências e roteiros para tentar chegar num denominador comum; mas, na prática, “policiamento” é sempre um tema de difícil concepção e mais difícil (ainda) implementação e gestão. Sempre desemboca no controle de um cidadão sobre outro e isto é sempre conflituoso.
Algumas pessoas, ao comentar “Segurança Pública” (que não é só “polícia”, espero que você saiba disso), acabam falando em tom professoral sobre o que não entendem em absoluto; o que não é novidade em nenhum tema, depois da Internet.
Como exemplo desse completo despreparo, cito o fato de que combater a criminalidade de roubo a celulares em nada tem a ver com combater crimes contra a vida (o homicídio sendo o mais comum), ou o tráfico de drogas; só para citar alguns exemplos. Porém, grande parte dos que se propõem ao debate, incluindo alguns “especialistas”, em meios de comunicação, nunca deixa claro sobre o que está tratando ao falar em “Segurança Pública”.
O problema é a falta de supressão à atividade criminosa? É a baixa qualidade investigativa? É o alto número de homicídios? Ou é o roubo de cargas? Cada um desses temas tem um universo solo de conceitos, fatores, problemas, e não podem ser tratados da mesma forma; se você quer que der certo… Claro…
Todos querem mais segurança e isso faz todo sentido, óbvio, mas, segurança contra o que? Nosso patrimônio é resultado, por vezes, de uma vida de trabalho duro. Mas, a morte é o único evento na existência humana para o qual não temos remédio (ainda). E se você mora no Brasil, onde os números anuais de mortes violentas são piores do que os do Iraque pós-2003 (sem exageros, só pesquisar; já tratei disso no passado, mas antes deste blog), “morte violenta” é algo que deveria te preocupar, como cidadão.
Para a maioria dos cidadãos, se fosse possível, cada rua de São Paulo (e do país) teria um tanque de guerra com scanners térmicos e batedores de plantão. O fato de que isso custaria uma fortuna aos cofres e, consequentemente, aos contribuintes (nós), é coletivamente ignorado, todavia.
No fim, a maioria de nós acaba achando que “Segurança Pública” é como um item de prateleira de mercado… Se você quer mais dela é só “comprar mais”… Mais policias, mais carros, mais armas, mais tudo. Obviamente, esse é um entendimento equivocado do tema.
Para caminhar para algum lugar, é preciso se definir o “conjunto-problema”, pois, ao discutir genericamente, acabamos presos em generalizações ou suavizações, que explicam pouco ou nada.
A Polícia que melhor conheço é, obviamente, a Paulista.
A organização da polícia brasileira é complexa (novidade por aqui [dica: sarcasmo]).
Temos a polícia judiciária (Polícia Civil), responsável, originariamente, por alimentar os processos da Justiça Brasileira contra os cidadãos que infringem a lei; temos a polícia ostensiva (Polícia Militar), originariamente, cuidando do espaço público e tentando prevenir/suprimir a atividade criminosa, à priori, pela própria presença; e, temos a polícia de jurisdição nacional/federal, a Polícia Federal, que é uma polícia proeminentemente judiciária (focada nos crimes contra a União e os interestaduais), mas que também tem ações ostensivas nas fronteias (especialmente em portos, aeroportos, entrepostos em fronteiras secas…) e com operações táticas visando coibir e atacar o contrabando internacional dos mais variados tipos e naturezas, além de ações contra associações criminosas nacionais e transnacionais. Ainda temos GCMs, IBAMA, PRF, Agentes da RFB e tantas outras organizações com poder de polícia… Mas, fiquemos assim…
Focarei na polícia que tem o maior número de queixas por violência policial: A PM.
A PMESP tem sua origem nas primeiras décadas do Brasil Império, período que começa com a Independência de Portugal, em 1822, e termina com a Proclamação da República em 1889 (via um golpe contra o então Imperador, Pedro II; este período pós-império, que veio a ser chamado de “República Velha”, e que termina na Revolução de 1930 (outro golpe, agora, contra o Presidente Washington Luis e, também, o eleito Presidente Julio Prestes que jamais chegou a tomar posse, tendo seu cargo entregue a Getúlio Vargas pela conspiração mineira-gaúcha-paraibana)… Revolução de 30 que motivou a Revolução de 1932, que comemoramos no último 9 de julho, em São Paulo, e foi contra um governo de métodos ditatoriais de Getúlio, cobrando a elaboração da nova Constituição [a anterior, de 1891, foi extinta pelo regime de Getúlio], finalmente promulgada em 1934)…
Parece-me que a primeira lição a aprender aqui é que, na nossa história, a Polícia nunca dependeu da estabilidade institucional do Império, da República, ou de seja lá qual fosse o sistema político, para existir. Embora a Polícia exista para manter um regime legal que uma dada sociedade edificou, durante todos os golpes e mudanças, a Polícia brasileira ficou do lado que parecia “ter mais corpo” (o lado vitorioso).
Sua missão, bem distante do “servir e proteger” – que é um conceito absolutamente moderno de Polícia (e mundialmente inexistente no grosso do século XIX para trás) – era muito mais ligada à ideia de atender aos anseios governistas de suprimir qualquer incidente desinteressante às metas do governante. E embora isso não seja uma exclusividade da Polícia brasileira, o que parece ter havido por aqui é que ela, enquanto instituição, jamais evoluiu de “Guarda a serviço do ‘dono’ do país/estado”, para um modelo de instituição atemporal e apolítica; este último adjetivo, utilizado no sentido de que ela exista e tenha uma missão que não depende da política momentânea de alguém que veio para o Poder, mas vai passar, como todos os outros; pois, ela, a Polícia, não passa e não pode agir ao sabor dos tempos.
O modelo de policiamento ostensivo que temos no Brasil é fruto da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro.
Dom João VI cria, em 1809, a “Divisão Militar da Guarda Real de Polícia”, copiando o modelo lisboense para seu novo lar fluminense; tal divisão seria o embrião, mais tarde, da Polícia Militar Fluminense. O modelo de Lisboa e de Porto, que adotaram por lá a “Guarda Real de Polícia”, também não é inédito. Pelo contrário, é fortemente inspirado na francesa Gendarmaria (uma reformada Marechausée [formação primordial de marechais que protegiam o território francês] com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, às portas da revolução francesa – e todos seus efeitos sociais), e que protegia os comerciantes e delegações nas estradas Reais francesas contra saqueadores e bárbaros – sendo uma das primeiras formações no Velho Mundo com homens armados por ordem Real, especialmente para a função de proteger uma dada sociedade (Gens d`Armes, de onde vem “Gendarmaria”, significa, literalmente, “Homens armados”).
Com Independência da colônia brasileira, em 1822, a Guarda Real se desorganizou (já que a formação da Guarda era esmagadoramente de portugueses, fiéis ao trono). A Regência Provisória organiza, então, em 1831, o corpo de Guarda Municipal Provisória, convertida, pouco depois, para “Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte” por força de decreto imperial, sob a Regência de Feijó (sim; aquele Regente); lei que também autorizava o mesmo nas demais províncias do Império brasileiro. Estava pavimentado o caminho para a Força Pública Paulista.
Já no fim de 1831, a Assembleia Provincial de São Paulo, sob a tutela do Presidente da Província, Brigadeiro (Rafael) Tobias Aguiar (o mesmo que empresta as iniciais às companhias do 1º Batalhão de Choque, a ROTA – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) funda o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, com cem praças à pé e trinta praças a cavalo. “Os 130 de 31”, diriam os aficionados por história militar nacional…
Em 1871, com o advento do “Inquérito Policial” como parte essencial da separação entre “Polícia e Justiça”, separa-se aquela Guarda Permanente em 3: Brigada Policial, Corpo de Guardas Cívicos, e Corpo de Guardas Cívicos do Interior. Muitas outras divisões e junções ocorreriam até que, em 1970, a Força Pública (que reagrupou a tripla divisão, já citada) se fundiria com a Guarda Civil, originando a denominação atual de “Polícia Militar” que conhecemos. Houve mais mudanças, mas são menos relevantes ao enredo.
A segunda lição, aqui, é que a origem da “Polícia Militar” não tem a ver com o golpe de 64, a truculência, a barbárie, e tudo o que se sucedeu nos últimos terríveis 20 anos de ditadura do século XX brasileiro. Sua origem militar remonta à sua essência de Guarda Real, ainda em épocas de Império.
Não estou tentando “tapar o Sol com a peneira” aqui, e dizer que o militarismo os torna mais humanos, pois, o militarismo é, essencialmente, o adestramento do “bicho-homem” em algo que suporte condições desumanas, como requisito para que este possa restaurar uma dada ordem (boa ou má), pela força e pela violência, em momentos de ruína social.
Mas, isso é tema para mais tarde. O que me importa, aqui, é dizer que eu não entendo que a Polícia Militar é violenta por descender da polícia da Ditadura; ela esteve lá, enquanto Polícia do Estado Totalitário, e tem seus episódios de vergonha pelo terror estatal que ajudou a perpetrar (como também deveriam ter vergonha os terroristas pró-comunismo, organizados em grupos como o MR-8, COLINA, MOLIPO(…), e todas as formações paramilitares em prol de regimes ditatoriais aos moldes do soviético e chinês, naquela época).
A violência não é uma característica exclusiva das Polícias Militares brasileiras, ou das ostensivas mundo a fora. Porém, o fato de que é a Polícia Militar a encarregada de fazer o patrulhamento ostensivo a torna em permanente contato com a população, e aí é onde a violência policial mostra sua pior face: Nas ruas e becos escuros de um país com séculos de atraso em sua infraestrutura e dignificação da moradia (ainda que esta esteja no art. 6º da Constituição de 88, como direito de todos nós), problema que, de modo algum, é exclusivo de São Paulo. Este estado é o 2º melhor (dados de 2016), atrás apenas do Distrito Federal, no IDSM(índice de desenvolvimento sustentável para municípios) da FGV, com nota “geral” em 5,71 e obtendo a maior nota para a composição “habitação” (5,73) do mesmo índice. O terceiro mais bem qualificado no IDSM, o Rio Grande do Sul, vem com nota geral em 5,55 e habitação em 5,40…
Quando temos medo de quem deveria nos proteger…
Uma das coisas que mais me entristece nesse assunto é ter de dar substancial razão à crítica daqueles que dizem que têm mais medo do highlight (para os mais antigos: o giroflex) do que do bandido.
Enquanto o exagero da fala não me escapa (e demonstrarei, na parte 2), eu admito que o agente policial contemporâneo tem agido com mais violência e imprevisibilidade do que em outros momentos.
Tempos atrás, eu faria pouco caso e até atacaria (no campo da discussão, claro) a pessoa que dissesse a frase de abertura desta seção. Usaria um velho bordão no qual eu sempre acreditei (mas, já não acredito mais):
“Quem tem problema com a Polícia, tem problema com a Lei”…
E eu sempre me considerei “do lado da lei”, então… Bem, voltaremos nisso, daqui a pouco.
Eu dou razão a quem tem medo porque, eu entendo que a atuação da PM na periferia é completamente distinta da atuação desta mesma PM em bairros de alto padrão. Logo, o local em que você mora, determina o tipo de tratamento e truculência que você sofrerá, e este é um fato.
Como não citar o patético vídeo protagonizado por um PM e um “novo rico”, em Alphaville?
Este vídeo é prova cabal de que se você mora numa periferia, será tratado de um jeito, e se mora em um bairro rico, será tratado de outro. E isso é tudo, menos Justiça.
E, se você é “pró-Polícia”, talvez me pergunte, já se exaltando, “e queria que o Policial fizesse o que?”.
Bem, ele tinha duas rotas:
a) Partir para cima do agressor, prende-lo à força, após este se negar a cumprir ordem Policial (legítima e legal, pois, trata-se de flagrante, e dispensa o mandado); ou
b) Chamar o reforço, cercar a residência, e esperar que o agressor ceda, pelo cansaço. O que é mais inteligente e menos arriscado do que a opção “a” (que segue válida, dentro do conceito do uso moderado e progressivo da força, constante nos manuais de qualquer Polícia do mundo.).
Agora, é mandatório notar que ele nunca cogitou a opção “c”, utilizada frequentemente nas periferias mais esquecidas de SP (ZS [Grajaú, Jardim Ângela] e ZN [Brasilândia] sabem bem do que falo, a seguir):
c) Invadir a casa, sem identificação no fardamento e cobrindo o rosto com touca-ninja para não ser reconhecido, com a arma na mão e apontado para o agressor, enquanto o parceiro usa munição de elastômero (“bala de borracha”), cassetete, ou spray-de-pimenta para derrubar o “marginal” no chão, para algemá-lo e encher ele de porrada na rota para a Delegacia, onde vai ser apontado no B.O. que o suspeito “caiu da escada”, ou “se debateu” (e se esse rico, nojento e desprezível, não age como marginal, eu já não sei o sentido das palavras). E isto é “o final feliz” na periferia, porque, dependendo da falta de humor do agente, a munição real será utilizada.
Se a mulher com a criança no colo falasse alguma coisa do tipo “deixa ele!”, espero que o agente considerasse tratá-la com o mesmo respeito que usa na períferia, com a mulher dos suspeitos e dizer “cala a porra da boca, sua vagabunda imunda”.
E tem um lado importante aqui: O cabo, na filmagem, é conhecido como alguém extremamente pacífico e paciente. E isso é ótimo para ele e para a comunidade que ele serve. E eu não queria que ele fosse o monstro do paragráfo anterior. O que me irrita é saber que se ele trabalhasse em outro bairro, dificilmente ele manteria esse perfil.
Assim que o policial é transferido para uma região nobre, vindo de uma periferia, ele já é advertido pelo “01” que “as coisas ali na área são diferentes”.
No fim do dia, eu realmente entendo quem diz ter medo da Polícia. Eu não tenho, eu a conheço bem, e eu ando em bairros relativamente seguros e tranquilos de São Paulo. Mas, para quem não teve escolha senão morar nas periferias, a realidade é muito distinta da minha. Eu vim de uma periferia e eu sei que as coisas mudam.
Outro ponto que não posso negar é o sentimento de impotência do cidadão comum. Se um bandido te faz mal, você disca 190.
Mas, para quem você disca se o “190” te faz mal? Para a Corregedoria? E você imagina que eles vão chegar em tempo de abordar os maus policiais em flagrante? Ou você vai sofrer do o trauma do abuso policial e terá de torcer para sair vivo dessa (o jovem Guilherme Guedes, de apenas 15 anos, não saiu do seu encontro com o Sargento da PM, Adriano de Campos), para, se não estiver morrendo de medo de represálias, fazer uma denuncia que provavelmente não dará resultado (você se lembra do número da viatura, ou do nome e ranking do policial?)? Sabemos as respostas.
A violência policial com fundo racial
A violência policial é um problema muito atual nas Américas (e eu estou fazendo um esforço enorme para ter um foco “pequeno”, porque não posso permitir um escopo tão grande como “a função da atividade policial, no mundo” – por uma questão de evitar absurdos, e não escrever sem fundamentação).
O caso Floyd, nos EUA, pode custar a corrida presidencial a Donald Trump, no fim deste ano. E enquanto o simpático Garotão-Laranja já vinha capengando depois de todas as cretinices que aprontou – como sugerir que acometidos pela COVID-19 considerassem injetar cloro nas veias; e sempre fazendo Escola, com seu pupilo (ou seria seu “puppy”?) brasileiro querendo competir pelo pódio da asneira – definitivamente, a morte de George Floyd foi o caminhão dos Bombeiros jogando gasolina ao invés de água, numa fogueira que já vinha ardendo muito bem, obrigado.
O caso Floyd não é um episódio isolado (quem dera…) e a violência policial, especialmente contra pretos, é tema recorrente na sociedade estado-unidense. Lembrando de outro preto, morto por enforcamento – tal como George Floyd – Eric Garner, em 2014, que também morreu “na forca policial” (eu disse forca, sem cedilha, mesmo).
E aqui, faço uma pausa, esquecendo toda a tragédia nessas mortes, para me apegar a um problema técnico: Os agentes policiais envolvidos foram tão mal treinados (ou maldosos; você escolhe) que mataram as vítimas através de sufocamento ( = falta de ar), quando as técnicas usadas são técnicas de estrangulamento.
Para quem não entende a diferença, técnicas de estrangulamento visam cortar a corrente sanguínea na região do pescoço através da pressão aplicada sobre as artérias, levando a vítima da técnica ao desmaio em pouquíssimos segundos. E não os ~9 minutos de asfixia para Floyd, ou as 11 vezes em que Eric Garner disse “I can’t breathe”… Esses dois homens pretos morreram, literalmente, enforcados. A fonte da afirmação sobre a técnica sou eu mesmo, pois, eu treinei (não só) para isso, por alguns anos. A fonte sobre a natureza das mortes é pública. Basta procurar por “coroner’s report” + o nome das duas vítimas de execução policial.
Coincidência macabra: Ambos morreram avisando os agentes policiais, com as mesmíssimas palavras:” I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”). É claro que é a frase óbvia a se dizer quando não se consegue inalar o ar [que é diferente de oxigênio, só pra constar, viu Datena…]); porém, é mais uma coincidência macabra da forma da violência policial especialmente contra a população preta nos EUA; isso é fato para mim. A agonia de morrer lentamente enquanto luta para tragar o ar é muito maior do que levar um tiro na nuca; e embora isso não seja um campeonato da morte mais horrível, eu sei qual dos dois fins eu detesto mais.
Outro detalhe que só piora tudo: No caso de Garner, a ocorrência se deu no Estado de Nova York, onde a Polícia havia banido o estrangulamento como técnica de retenção de suspeitos desde 1993.
Modo geral, eu entendo e defendo que a legitimidade de decidir se um(a) cidadã(o) é culpado(a) ou inocente cabe ao juiz (ou um júri), com base nas provas e testemunhos produzidos pela investigação policial, e apresentados através do Ministério Público; e não cabe a tarefa de condenar ou inocentar à opinião pública, à vizinhança, ao jornal, aos programas de auditório, e muito menos a um blog, escrito por um qualquer.
Isso tudo dito, como confiar que se “fez Justiça” quando esta se alimenta de inquéritos policiais feitos por colegas de profissão do acusado (que nem precisam ser amigos do acusado; basta pensarem que amanhã, podem ser eles no banco dos réus), e com juris quase sempre compostos, desproporcionalmente, por brancos? No caso de Garner, o policial foi inocentado. No caso de Floyd, parece-me que também será (os agentes tiveram a fiança, caríssima, paga por “crowdfunding“, o que significa que muita gente – que deve vir a compor o juri – concorda com a atitude dos policiais; e eles estão livres para sumir com provas e ameaçar testemunhas)… Igualmente, nos dois casos, os pretos jazem a 7 palmos de profundidade na terra. Pelo menos, o tratamento é homogêneo, não é mesmo?
Diferentemente dos EUA, onde apenas 13.4% dos mais de 350 milhões de habitantes são pretos, o Brasil tem uma demografia bem diferente: Dos seus quase 211 milhões de habitantes, meu país tem aproximadamente 51.14% de pardos e pretos.
Chama-me a atenção que na composição desta porcentagem, a maior parte se declare “parda” (43.42%), com uma minoria dizendo-se preta (7.52%).
Claro que isso tem forte reflexo da nossa miscigenação intrínseca, quase inexistente nos EUA – ou, no resto do mundo, para ser justo com o Brasil. Mas, também há o fato de que, na realidade, muitas pessoas querem ser “qualquer coisa” menos pretos (ou “negros”). O preconceito racial também dá suas caras através dos censos nacionais.
Então, poderíamos dizer que, no Brasil, a violência policial ocorre menos voltada à cor da pele? Não é tão simples assim.
O Atlas da violência – obra indispensável para quem quiser discutir, com qualidade, o tema “Segurança Pública” no Brasil – compilado pelo IPEA, nos mostra que dos 60.559 (faço questão de escrever por extenso: sessenta mil, quinhentos e cinquenta e nove) homicídios contra o sexo masculino, no ano de 2017, 46.217 (quarenta e seis mil, duzentos e dezessete) mortos eram homens pretos. Para mulheres, não melhora: 4.936 (quatro mil, novecentas e trinta e seis) mulheres mortas em 2017. 3.288 (três mil, duzentas e oitenta e oito) eram pretas.
Quer dizer que do universo de homens mortos de forma violenta, em todo o ano de 2017, nos trágicos números de guerra brasileiros, 76.32% eram pretos. No número das mulheres, das quase 5 mil, 66.61% eram pretas.
Se esses números não fazem soar nem um singelo alarme de que há algo perturbador acontecendo com os brasileiros de cor preta, eu lamento informar, mas você perdeu sua humanidade em algum lugar da sua história. Torço para que, um dia, você a reencontre. E não: Como falarei a seguir, não estou imputando o quadro somente à Polícia.
São Paulo tem números bem menores de homicídios (como o Sudeste como um todo; e faz sentido, dada a menor população [comparando com o país] e o maior IDH) e quando usamos métodos estatísticos de comparação, as proporções de mortos “não-pretos” vs. pretos melhoram bastante (no número geral, o Brasil tem 31,59 mortos por 100 mil habitantes, e São Paulo tem 10,27 mortos por 100 mil habitantes – quer dizer que a cada 100 mil brasileiros, quase 32 serão assassinados; e quase 10,5 a cada 100 mil paulistas):
Em São Paulo, dos 4.134 homens mortos por violência em 2017, 2.002 eram pretos. Significa que 48.43% dos mortos eram pretos. Mas não dá para “bater palmas” (nunca daria, só para deixar claro). Como demonstro a seguir, “pretos e pardos” representam, grosso modo, 30% da população paulista e são, praticamente, 50% das mortes violentas do Estado. A situação para esta cor de pele segue, portanto, perversa.
Para mulheres, o número é mais condizente em sua distribuição vs. demografia: Das 495 mulheres mortas por homicídio “simples”, em 2017, 166 eram negras (33.54%). Novamente: Este número deveria ser zero. Mas, ao menos, ser mulher e negra não aumenta o risco do homicídio sem qualificadoras (mas, aumenta outros riscos como da violência doméstica, feminicídio; e não é meu foco, hoje).
No entanto, é óbvio para mim, mas surpreendente para outros, que a PM não responde pelo total desses números de mortes. Na realidade, como veremos a seguir, em São Paulo, a cada 3 mortes, uma é causada pela Polícia Militar. Assim, de fato, ser preto no Brasil, é correr muito mais risco de morte, mesmo no Sudeste, onde a coisa está melhor.
Mas, esta não é uma violência causada somente pelo braço armado do Estado contra os pretos. Há uma guerra entre facções e criminosos, matando mais pretos do que brancos (porque há mais pretos em regiões perigosas, do que brancos) e a PM é apenas a menor parte disso. Não significa “passar pano” e dizer que a Polícia mata pouco, ao matar um terço dos mortos por violência, no meu Estado.
Idealmente, ela deveria matar zero; ela não é paga para matar, mas para garantir a Lei Brasileira, e a Lei Brasileira diz, via sua Lei Maior, que a vida é um direito inviolável (caput do art. 5º/CF).
Contudo, também significa dizer que a violência entre os moradores de periferia (onde a maioria é preta ou parda), mata mais pretos do que o braço punitivo do Estado mata. O maior inimigo do preto é a violência das gangues na comunidade em que vive, estatisticamente falando.
A Polícia vem em segundo lugar. Mesmo que este fato incomode alguns que procuram, só e somente só o viés de confirmação de suas crenças e preconceitos (no caso, contra a Polícia). E claro: A violência epidêmica dessas regiões é culpa, sim, do Estado (mas não da Polícia, que só vai lá quando todoo resto falhou; a saber: Família, moradia digna, educação de qualidade, oportunidade de emprego digno e de rendimento compatível com o custo de vida…).
Aqui, não tem espaço para opinião: Os números são esses, o IPEA merece todo o respeito, e se você não respeita a seriedade da instituição e de seus números (excluindo eventuais equívocos que eu tenha cometido ao compilar os resultados, óbvio), o problema e a cegueira são só seus e não do IPEA (ou meus). Pode parecer truculência gratuita com a opinião alheia, mas eu já disse que não vou mais tolerar os intolerantes, e negar estatísticas do IPEA (acreditado por inúmeras instituições nacionais e estrangeiras) é como negar a própria realidade.
Por que eu queria ser Militar?
Eu queria ser Militar. Não tinha dúvidas durante toda a minha adolescência. Preparei-me para isso, por anos.
Eu tentei – e fui um fracasso – ingressar na AFA, em Pirassununga: 10 vagas para piloto, para os COMARes do Brasil todo (só em São Paulo, o Anhembi estava lotado de candidatos em suas arquibancadas). Bem… Eu me achava preparado… Mas, não era tão bom assim… O nível da prova não deixa muito a desejar na comparação ao que eles exigem de um cadete ingressante no ITA… As questões de física (matéria em que sempre fui bem, no Ensino Médio) me davam a impressão de que eu já era um piloto treinado. E na prova de inglês, analisamos, sintaticamente, a oração “Ave Maria”; em inglês… Arcaico… E isso não é piada da minha parte.
Ciente das minhas limitações e ciente de que eu não tinha chance contra os filhos de militares de carreira da FAB, estudando em colégios preparatórios de alto nível desde o início da vida (enquanto eu vinha sempre de escolas periféricas), percebi que essa janela estava fechada desde o dia em que nasci.
Mas, existia uma segunda chance para o sonho da farda. Se eu não poderia estar entre os melhores da FAB, eu poderia estar entre os melhores da PMESP. “A barra baixaria”, mas, como explico a seguir, só um pouco.
Assim, tracei o plano e calculei onde eu chegaria, o mais rápido possível: Eu estaria na 2ª Companhia do 4º Batalhão de Policiamento de Choque de São Paulo; que abriga os grupos de elite da PMESP.
Sendo a 1ª companhia, o COE (Comando & Operações Especiais), e a 2ª companhia, o GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais). A primeira, especializada em operações em áreas florestais e “selvagens” do estado; a segunda, em operações especiais em área urbana.
Claro, eu tinha um plano B: Se minha nota em Barro Branco não fosse suficiente, eu aceitava ficar no GRPAe, grupamento responsável pelos “Águias”.
Como se pode ver, sempre tive metas simples. Sonhos contidos e de fácil completude. Yeah, right…
Ser policial, para mim, era uma questão, àquela altura, de excelência e vocação.
Excelência porque eu não me imaginava patrulhando ruas, diariamente. Eu queria estar nos grupos que solucionavam o “insolucionável” (perdão pelo neologismo). E não é fazer pouco caso com quem patrulha ruas, porque, é óbvio que este é o trabalho mais importante de qualquer Polícia que quer evitar o crime. A violência do cotidiano não é a do tipo que precisa de tropas de elite. Mas, o que eu queria fazer comigo mesmo era me submeter ao rigor absoluto de um dos treinamentos diários e permanentes, mais difíceis do mundo.
Eu queria estar “pronto para a Guerra”, por 30 anos da minha vida, mesmo que a Guerra jamais viesse. Tente se lembrar das últimas três vezes em que você viu o GATE trabalhando. Vou falar a última vez que lembro de vulto do GATE na mídia: O caso Eloá. E foi uma tragédia. Tudo que poderia dar errado “no teatro de operações especiais”, deu. E os culpados são os membros daquele grupo que eu queria integrar, não obstante eu entenda a argumentação de que a mídia muito atrapalhou. Mas, sinceramente, pensando com mentalidade de militar: “Desculpas são para quem não tem competência”. Assim eu pensava, quando me imaginava operando num grupamento de Táticas Especiais. Eu treinaria ao ponto de estar sempre pronto para o inesperado, o absurdo, ou inconcebível…
Ler esse último parágrafo, tantos anos depois, é um pouco constrangedor; sou obrigado a confessar.
Um dos homens mais brilhantes em termos de registros militares, o atirador de elite, Chris Kyle, um Navy Seal, membro da elite (da elite) dos Estados Unidos, foi morto ao confiar em um colega de farda ensandecido.
Para o Rodrigo de ~18 anos, faltou ao Kyle prever o imprevisível. Para o Rodrigo de 34, a vida é pura contingência e a exceção é, de fato, quando ela segue seus planos. Você prevê e planeja para tanto quanto pode, mas a regra é que a vida sempre pode mais do que você pensa ou planeja. Para o bem e para o mal.
Aliás, o GATE surge de um incidente similar ao de Eloá, em fevereiro de 1987, quando a pequena Tabata (com apenas 3 meses) é feita refém por ex-estudantes do ITA, fora de si, (gente muito inteligente, ironicamente; e não os temíveis marginais do tráfico de drogas que pairam no imaginário coletivo), ameaçam matá-la, em Mogi das Cruzes. O teatro de operações termina com os criminosos mortos e a menina salva, apesar de um ferimento de faca causado pelos criminosos. Depois disso, o GATE é considerado uma necessidade indiscutível.
Bem, eu queria ser parte desta Elite. Precisão, controle sobre o corpo, sobre a máquina, sobre as emoções, sobre a situação… E atividade policial de elite era a minha rota escolhida. Esqueça as forças especiais federais. Várias estão sucateadas pelo desprestígio do próprio Comando que está mais preocupado em investir naquilo em que pode faturar (seja faturamento político ou mesmo monetário).
O GATE – e, em alguma medida, o COE – possui equipamentos muito melhores do que boa parte das Forças Especiais brasileiras. É uma tropa menor, limitada quanto à jurisdição, e no estado mais rico da nação. É até óbvio que seja mais bem equipada, no comparativo.
Aliás, entrar no GATE é como entrar na Engenharia da NASA: No mundo, só outros 6 cursos de formação de Policias Especiais são considerados tão difíceis quanto o do GATE: BOPE (no RJ), GIGN(França), GSG9(Alemanha), SWAT(especialmente a mais antiga, de L.A.), LE RAID(França), OMON(Rússia). Chamo a atenção de que dois dos sete cursos estão no BR (GATE e BOPE). Isso também fala do tipo de violência que se espera combater.
E, então, a vocação: Acho importante discutir o caráter um tanto quanto religioso da palavra “vocação”.
“Vocação” descende do termo em latim, “vocare”, que significa “chamar”. Portanto, quem tem vocação, “atende ao chamado”. Ninguém diz que você está pronto para aquilo. Você simplesmente sabe que está. Você simplesmente sabe que aquele é o seu chamamento; o seu lugar…
A vocação de ser Padre, de ser Professor, de ser Médico, de ser Policial… Perceba: É totalmente possível se habilitar professor fazendo um curso online de 2 ou 3 anos. Isso nunca fará de você um Professor vocacionado. O mesmo para as outras profissões que requerem vocação. Nem todas requerem. Mas, em boa medida, é fácil notar quando as pessoas têm vocação para uma área ou não. Aquele Professor fazendo milagres em uma escola em frangalhos (o que é uma realidade lastimável e comum, acrescento), na periferia de algum canto abandonado deste país; ele (ou ela) tem vocação.
E eu sentia a vocação. Eu sentia o chamado para perseguir uma perfeição quase desumana, me submeter a uma carga brutal de treinos e torturas psicológicas (porque fazem parte do treinamento), visando me tornar pronto para o trabalho que poucos podem realizar. Se fosse preciso perder o dedo para salvar a mão, é o que eu faria. Se meu colega de farda se tornasse uma ameaça, no meio da operação, eu faria o que fosse preciso para proteger o teatro de operações que me foi ordenado garantir.
Dou a você o direito de rir. Vai na fé. Eu ri ao reler o que escrevi. Mas, isso, aos 34 anos. Dos 11 aos 21 anos, isso foi uma certeza tão cristalina quanto a absoluta necessidade de inalar ar (e não “oxigênio”, relembro). Ainda tive uma recaída aos 27 anos. Mas, “quis a Contingência” encerrar essa fase para sempre (acertei praticamente todas as questões objetivas, mas, misteriosamente, minha redação teve a nota zerada – alegaram extravio de minha parte).
Se você me conhece ao vivo, hoje, deve ser ainda mais engraçado: “Como essa rolha de poço achou que seria parte da elite da polícia paulista?”… Entendo a crítica.
Mas, aos 20, eu era outra pessoa. Cheguei a atingir 15 barras pronadas e 40 abdominais-remador, em 1 minuto, cada. Corria, sem sofrer, os 3km em 12 minutos, e só desapontava na corrida de 50 metros: 8 segundos. Como eu disse, hoje eu me canso só de olhar para esses valores. Mas, esses eram meus números, ~15 anos atrás. A menor pontuação seria a corrida de 50 metros. No resto, eu ficaria com 80 ou 100 pontos (o máximo). E a parte escrita não era uma piada (na época, ainda era a FUVEST a fazer a admissão em Barro Branco e a VUNESP nos concursos de Praça) e a relação candidato-vaga para a Academia era absurda (“dava pau” em Medicina na USP, só para constar).
Mas, eu acreditava, sinceramente, que eu conseguiria ficar entre os 160. E, para minha meta, a nota de entrada não importava.
O que importava era a classificação na saída. Quanto mais perto do topo, melhor. O primeiro escolhe para onde vai, de acordo com as vagas disponíveis. E, depois, o segundo. E, então, o terceiro… Eu podia entrar em 160°, não me importava. Lá dentro, eu seria o Diabo. Esse era o plano…
Uma Polícia treinada para proteger ou para matar?
Vamos manter o escopo da análise em São Paulo.
São Paulo é um país. Tudo bem: Não é… Mas, poderia ser. Com seus mais de 44 milhões de habitantes, meu estado de origem “deixa no chinelo” muitos países conhecidos da Europa. Suécia (~10.2), Portugal (~10.28 mi), Bélgica (~11.46mi), Holanda (~17.28 mi). E briga com a Espanha (~46.9mi). Assim, considerar que a população de SP o habilita à categoria de país, não é exagero.
Em extensão territorial, a briga fica ainda melhor: Com seus quase ~248 mil km², o estado é maior que o Reino Unido inteiro (243 mil km²). E só para te lembrar: O Reino Unido contém a Grã-Bretanha, mais a Irlanda do Norte (que fica numa ilha à esquerda da anterior). E a Grã-Bretanha contém a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales… Esse é o tamanho de SP.
A Polícia Militar do Estado de São Paulo é, atualmente, formada por mais ou menos 100 mil homens e mulheres, no entanto, o efetivo nas ruas é da ordem de ~80 mil policiais. O resto opera o administrativo da Força Pública; do RH ao treinamento, passando por centros de formação etc.. E não estou considerando os afastados do serviço por inúmeras razões.
Aproximadamente 64% são brancos. O que não está em desacordo com a demografia Paulista e não tem nada de errado (embora o jornalista tente dar este viés). Em São Paulo, “pretos e pardos” somavam, no Censo 2010, 30.5% dos 42 milhões de habitantes. Os brancos, por outro lado, atingiam 67.9% da população do estado. Em outras palavras, podemos até dizer que a distribuição de “etnias” dentro do efetivo policial reflete a realidade demográfica do estado.
Já, quando o assunto é gênero, a PMESP continua muito distante da realidade demográfica. Num levantamento de 2016, dentre os 100 mil policiais militares, não mais do que 15% eram do sexo feminino. E nada indica que houve mudança substancial nesse percentual. O estado de SP, no entanto, tem 51.33% de mulheres, para seus mais de 44 milhões de habitantes, hoje. Considerando o número de Coronéis na ativa (cerca de 60), apenas 3 são mulheres, de acordo com o relatório da própria PM, em 2011; o que também diz muito sobre o número de mulheres ingressando na Força.
créditos: PMESP ®2011
69% dos policias nunca fizeram um curso superior (no universo de mulheres, 57% têm nível superior antes do ingresso na PM), além do próprio curso de formação policial que, hoje, é tido como Superior tecnólogo em Segurança Pública (grau concedido aos Praças [Soldado, Cabo, Sargento, Subtenente]), num curso integral que costuma durar 1 ano, a depender do momento da Secretaria de segurança pública – SSP (“momento” = pressa).
Por outro lado, Barro Branco, a Academia da PM Paulista, forma os Oficiais (Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel), no grau de bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. A carga integral do curso (com o primeiro ano em regime de internato e outros três anos) é suficiente para que o recém-formado em Barro Branco possa obter o bacharelado em Direito, cursando apenas mais um ano de estudos em uma Instituição de Ensino Superior comum. Não me recordo da fonte, mas, me lembro que o mesmo valia para o bacharelado em Administração.
Assim, é possível notar alguns abismos “logo na largada”: A formação dos Oficiais da PMESP é incomparável com a formação dada aos Praças. Os Oficiais saem com um repertório humano e acadêmico absurdamente superior ao dos Praças, ainda que haja os Oficiais medíocres, que apenas passam raspando pelas provas internas. Mesmo assim, há muita distância da formação recebida pelo melhor Praça para o Oficial minimamente aplicado.
O salário também. Enquanto o Soldado 2ª classe tem o salário-base em R$3.000 reais, o salário-base do 2º tenente (o primeiro ranking logo após os 4 anos de Academia) é na casa dos R$6.700. E pasme: São Paulo não tem, nem de longe, o melhor salário para suas Polícias. Só para humilhar com a pior “das minhas armas”, no Distrito Federal, Soldados 2ª classe da PM ganham o equivalente a 50% do salário de Policiais Federais (que está na casa dos R$11 mil) e vêm brigando, ao lado dos Policiais Civis, para equipararem o salário em 100% (“Todos são iguais perante a lei”… Certo… Só que não…), afirmando que eles patrulham a mesma população que a PF, por estarem no DF. Agora, basta Bolsonaro assinar para que isso possa ocorrer.
A questão é que, uma vez “na rua”, a atividade policial não se equaciona por essas diferenças de formação e salário. Pelo contrário: É óbvio que a proporção de Praças é muito maior do que a de Oficiais (como seria a proporção “funcionário/chefe”, em qualquer empresa). No entanto, esses indivíduos, preparados ou não, bem-remunerados ou não, atendem às ocorrências do “país” que é São Paulo, do mesmo modo. A sua experiência como cidadão (ou cidadã), ao ser abordado por uma viatura com Oficial presente pode vir a ser bem diferente da experiência com o veículo formado somente por Praças. E não tratemos das exceções, mas sim da regra, por aqui.
E é claro que cargos e salários não são justificativas para a deformação de caráter. E é claro que há Oficiais cometendo crimes, mesmo sendo relativamente bem pagos. E é claro que há Praças realizando um exemplar serviço de segurança pública à população paulista e visitantes do estado, respeitando a lei e os valores humanistas, como homens cheios de diplomas e títulos jamais o farão.
Mas, remeto-me à questão apresentada por um antigo blog da Folha, que me inspirou a fazer Direito e que, infelizmente, deixou de publicar conteúdo novo. O blog se chama “Para entender direito”. Era feito por profissionais da área Jurídica e voltado a treinar os jornalistas a entenderem “as regras do jogo” para prevenir que estes publicassem (muitos) absurdos, em matéria de Justiça e Direito. Pois bem, este blog, nos idos de 2000, publicou uma matéria falando sobre a questão da violência policial, histórica e, em algum grau, crônica, na nossa sociedade. Já nos “finalmentes“, o artigo assim dizia: “Se pagar bem o policial não é certeza de que este agirá dentro da lei, pagá-lo mal é certeza do incentivo à corrupção e ao recrutamento de baixa qualidade”.
Pense bem nisso, agora: Se você tem “tutano” nessa sua cabeça, o suficiente para ganhar bem mais que um soldado, ou, até mesmo, ganhar mais do que um tenente, qual é a probabilidade de você vestir uma farda, trabalhar em uma organização de valores rígidos e dogmas, por vezes, sem propósito real?
E que tal vestir um colete a prova de balas em uma viatura que não tem ar-condicionado, no verão paulista de Ribeirão Preto? Blindagem da viatura? Você está louco. Poucas viaturas, destinadas a grupamentos de choque (como a ROTA) devem começar a ter blindagem parcial no futuro, mas a licitação, com a crise econômica, já foi suspensa – sabe-se lá quando retomarão.
E, que tal enfrentar a organização criminosa mais perigosa do país, com armamentos assustadores, como fuzis e metralhadoras anticarro (calibres FN 5.7×28, por exemplo) e antiaéreas (calibres .30 e .50)? E mísseis (como o Stinger que estavam negociando, ou aquele aprendido em 2005)? Bem, se você me disser que você quer essa vida, mesmo assim… Eu acho que você é mais louco do que eu era.
Porque, diferente do “eu, jovem”, você assumiu que sabe da sua competência para ganhar mais do que qualquer cargo inicial da Polícia Militar paulista. Além de ter seus fins de semana (ou quase todos), as madrugadas e tudo fora das 40 ou 44h semanais, só para você. E, ainda assim, você prefere a organização anacrônica, cheia de ritos “religiosos” sem justificativa prática, e que vai te colocar na linha de frente do arsenal que sabemos que o crime tem (e fico pensando sobre o que não sabemos)…
Como você imagina que são treinados os policiais que passaram para o cargo de soldado segunda classe, com salario inicial por volta dos 3 mil reais/mês e recrutados das camadas da população com menor instrução formal e, geralmente, da mesma periferia em que a maior parte das pessoas que sempre foram de classe média, temem passar perto?
Você imagina que, numa dada semana do curso de formação, eles têm uma longa reflexão sobre a atividade policial, sobre a necessidade de lidar com uma sociedade conflagrada, ignorante e com conceitos sociais rudimentares, com tensões sociais históricas, de uma perversidade ainda maior, justamente contra aqueles tidos mais fracos (as crianças, os idosos, as mulheres), e um descaso sistemático e histórico do Estado de Direito?
Ou, talvez, você imagine que eles recebam uma grande mesa redonda para discutir porquê o Estado brasileiro deixa a favela ser criada, crescer, crescer mais, até explodir em ódio quando um morador de lá é baleado pela Polícia (sendo criminoso, ou não), ao invés de garantir que o “déficit habitacional” (termo polêmico) seja de ZERO? Dica “de grátis”: Sempre foi possível zerar o déficit. Não acredite em quem te diz o contrário. Mas não é tema pra agora.
Ou, ainda, talvez você imagine que eles discutam, por semanas e meses, o porquê de um Estado que cobra tantos impostos e encargos só usar o braço armado que eles agora farão parte para oprimir aqueles que se insurgem, sem jamais entregar a todos eles (os que se insurgem e os próprios polícias, que também viveram e cresceram na periferia) o que ordena a Constituição Federal e tudo o que emana dela; texto legal que eles jurarão defender, ao receber a farda pela primeira vez…
Se você cogitou “sim” para qualquer parte dos parágrafos acima, eu só tenho uma pergunta para você: Sua mãe sabe que você usa entorpecentes?
Os policiais, no curso de 12 meses (já cogitaram fazer em 8, quando calcularam mal as baixas por aposentadoria, afastamento por problemas psiquiátricos etc.), aprendem:
Sobre conduta militar (o temido e famigerado RDPM – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar – Lei complementar 893/2001).
Sobre a Hierarquia e a Disciplina como os únicos valores inquestionáveis. Quebrar a hierarquia ou cometer um erro grave de indisciplina é garantia de exoneração. A prisão em Romão Gomes (o estabelecimento carcerário para PMs, em São Paulo) dependerá de quase nada além de um “sim”. “Ampla defesa” e “Devido Processo Legal” são temas ainda estranhos na Corporação (mas, melhorou, mesmo que timidamente, na última década).
Sobre como passar o uniforme, com vincos na calça e o nível certo de lustre na bota (não estou brincando).
Algum tempo (mas bem menos do que um civil pode imaginar) manejando armas de fogo, típicas da operação. Mas não todas: Diferentemente do crime organizado que ensina o moleque de 12 anos a usar um Fuzil, o nível de armamento ensinado na PM depende do seu ranking e lotação. O básico é a Pistola .40 e a “Calibre 12” que “tem fama”, mas não se compara ao poder de fogo de fuzis e submetralhadoras.
Um pouco “sobre lei”. Se der um terço do tempo de curso, pode bater palma.
No resto do tempo, o treinamento passa por “criar casca” nos recrutas, força-los a trabalhos desprezíveis à atividade policial (como arrancar grama com a mão, para limpar um jardim imenso), ficar em pé em posição de sentido por uma hora inteira, embaixo de Sol a pino, e outras idiotices que EM NADA contribuem com a formação de um futuro policial de alto nível para a sociedade).
Nesse tempo, eles não são treinados para “atirar para matar” como algumas fontes civis sugerem – o método de tiro que eles treinam na academia é o método Giraldi, e este não é feito para aumentar a letalidade, mas para garantir a baixa margem de erro do alvo (escolhendo as áreas maiores do corpo) e garantir o rápido cessar da agressão que se repele.
A PM não é hermética à Sociedade
No futebol, toda vez que cenas de violência entre torcidas surgem, os comentaristas dos canais que assisto se apressam a dizer (e o dizem, acertadamente, para mim) que o futebol não é um mundo à parte da sociedade na qual ele está inserido. Assim, a violência que explode nos estádios não deveria surpreender tanto o expectador atento, já que vivemos em uma sociedade violenta e conflagrada, o tempo todo. E se você supõe que isso é uma impressão equívocada, sugiro voltar a analisar o Atlas da Violência do IPEA com o devido apreço.
Do mesmo modo, eu costumo dizer que a PM é tão violenta quanto a sociedade que a mantém. Mantém com impostos, com políticas e diretrizes; mas principalmente, mantém com mão de obra.
Um dos lemas dos PMs é “Paisano é bom, mas tem muito”. Paisano = Eu e você. Além do erro de português (porque a interlocução adjetiva correta é “à paisana”, e “paisano” é substantivo para o nativo de algum lugar [vs. um turista, por exemplo]), o que se revela é um senso, mesmo que carregado de humor (o animus jocandi, no empolado latim jurídico), de superioridade da tropa com relação aos civis; civis que os PMs juraram proteger quando decidiram se tornar Policiais, ainda que nem todos se recordem bem disso.
O motivo dessa superioridade advém, primeiro, do fator enraizado na sociedade brasileira de que “militares são melhores do que o resto do povo” por motivos e razões que não cabem agora, mas que abordarei, mais tarde.
O segundo motivo é a impaciência da tropa com o conjunto de fatores que fazem com que sejam acionados para separar brigas familiares, especialmente entre marido e mulher e, mais tarde, na delegacia, presenciam a mulher tentado salvar o agressor do processo. Outro ponto crítico é o sentimento de injustiça, após uma ou duas horas de perseguição (eles usam o termo “acompanhamento”, pois, não podem fazer de tudo para perseguir o suspeito) e, logrando êxito em prender o suspeito em flagrante, vê-lo sair da delegacia após preencher um termo circunstanciado (o famoso TC), por vezes, antes mesmo da liberação do próprio policial (que tem uma grande burocrácia pela frente).
Os tramites em um flagrante consomem, sem qualquer exagero, de 2h a 8h do tempo de um policial, a depender das circunstâncias. Para o PM, isso inclui o tempo de ser recepcionado na delegacia civil, entregar o suspeito, narrar sua versão e apresentar provas e, depois, no batalhão, fazer o BOPM (Boletim da PM), que não é interligado ao BO feito pela Polícia Civil.
Um tramite para uma ocorrência de agressão leva de 2h a 3h. Se for um flagrante de tráfico de drogas, o tempo passa facilmente das 6h de processo. E se o Policial Militar, após 12 horas de atividade, faz um flagrante na última hora do dia de trabalho, essas 2 a 8 horas entram na conta, de graça – Hora extra? Você só pode estar brincando.
Esse sentimento de impunidade, misturado ao sentimento de que o cidadão aciona a Polícia, faz ela se envolver em questões e picuinhas familiares (por vezes, a PM é acionada apenas para “assustar” o outro lado) para, depois, ver a parte reclamante desistir da ação, (quando o policial já tomou arranhadas, garfadas, e todos os outros objetos atirados), atingindo ~16 horas de trabalho, literalmente à toa, tornam o “paisano” um “cliente” dos mais problemáticos e dos mais odiados, especialmente para os PMs há muito tempo na profissão.
O paisano é visto como um elemento ruidoso, indisciplinado (especialmente, se comparado à carga de disciplina militar), inocente (pejorativamente falando), que cai em golpes e armações rudimentares e que requerem grande estupidez por parte da vítima, e que envolve a PM para fazer chantagem ao outro, mas não para ver a Justiça legal efetivamente ser cumprida.
A formação dada aos Praças não é dirigida a formar “agentes assassinos”, como a sociedade brasileira insiste em afirmar por meio de pseudo-intelectuais (porque, se são mesmo intelectuais, têm que ao menos considerar o que considero aqui [não necessariamente com a mesma conclusão, já que não me suponho dono da verdade], e não simplesmente afirmar que o treinamento visa o óbito dos suspeitos que eles enfrentam) e porta-vozes nas mídias das mais diferentes matizes.
Mas, a maioria jamais se debruçou, sem paixões ou clubismos, sobre o ambiente tóxico onde esses Polícias trabalham, e a condição terrível e inerente a ele. Todos se apressam (e eu faço coro com estes) para dizer que muitos dos criminosos são fruto do ambiente em que crescem e vivem, e que com estrutura, apoio familiar, social e do Estado, além de oportunidades para lidarem com o que está errado, a maior parte não seria criminosa. Eu fico enraivecido de não ver a mesma ótica, benevolente e principiológica com os Policias, seu ambiente tóxico, sua falta de apoio social, estatal, e a falta de mecanismos para que eles possam lidar com o que está errado. E acredite: TEM MUITA COISA ERRADA dentro da Polícia Militar.
Também, me parece equivocado dizer que o militarismo cria uma mentalidade assassina, por si só; muito embora, eu conceda, de pronto que ajudar a pacificar as relações, ele não ajuda; ou seja… Se não faz mal, bem é o que não faz. O militarismo endurece o cidadão, o deixa pouco sensível à natureza falha dos seres humanos e, principalmente, o militarismo prega que os fins justificam os meios, e conquistar o objetivo é mais importante do que a ética (ou a falta dela) envolvida na manobra – e esse é o maior problema quando pensamos no policiamento em um Estado de Direito (onde os fins jamais justificam os meios).
Por outro lado, o militarismo mantém na linha uma multidão de 100 mil homens e mulheres que, não fosse o modelo, provavelmente fariam greve com enorme frequência, por melhores condições. E sim, a greve é ilegal para agentes armados (militares ou não), porém, enquanto os civis apenas respondem ao processo comum, os militares enfrentam os crimes militares de motim e revolta, previstos no RDPM, com penas bem mais duras e sem todo o aparato legal que o civil encontrará em seu favor.
Por fim, o que fica nítido para mim é que 50% do problema do serviço policial e sua inerente falta de qualidade cívica, jaz no recrutamento de baixa qualidade e assim o é, em larga medida, pois, o pagamento é totalmente incompatível com o risco e com a natureza da atividade policial, motivando boa parte daqueles que não detém os atributos que esperamos para o exercício da atividade policial.
O desrespeito deles pelos civis, devido à dureza da formação militar que exige deles uma inflexibilidade superior ao mediano, faz com que os civis problemáticos, e que são seus maiores “clientes” (o abuso de álcool, as brigas em família, de vizinho contra vizinho – e não o combate a criminosos armados), removam outra parte da boa-vontade dos policiais. O sentimento de injustiça ao lidar com o suspeito em flagrante que deixa a delegacia antes deles, leva o resto do espírito de “fazer o melhor” embora.
Pode soar elitista e eu aceito a crítica de bom grado, porque eu a encararia assim, tempos atrás. Mas a verdade, para mim, é que estamos recrutando o grosso da Polícia Militar no mesmo lugar e faixa de inteligência (para o serviço policial) que o crime organizado se abastece. A diferença é que ao invés do lucro do tráfico, se abraçaram a algum sonho de criança, ou idealismo (como os que eu tinha).
Também, me incomoda muito a compreensão e o “abraço” de intelectuais e movimentos diversos aos criminosos, sob a argumentação de que faltaram oportunidades e estrutura à maior parte dos criminosos; fatos com os quais, sim, eu concordo. Mas também falta estrutura e apoio aos Polícias que também vêm – em franca maioria – das mesmas periferias esquecidas por todos, e isso quase sempre não está no discurso de quem ataca a Polícia. No fim, a tragédia da PM é a mesma tragédia do crime, e há apenas o pobre matando outro pobre; com ou sem farda. Os verdadeiros vilões estão em outra liga.
Trabalhar na Polícia exige vocação. E vocação vem de sonhos e ideiais. Mas sonhos e ideiais não aguentam, por muito tempo, o que eles vivem nas ruas…
Estou de volta. Foi um longo inverno por aqui, concordo e lamento. Como penitência, faço um texto longuíssimo. (Pensando bem, a penitência é sua que vai tentar ler isso tudo… Me perdoe, de coração).
Acomodar uma nova formação acadêmica em minha vida foi tarefa mais desafiadora do que eu poderia imaginar. Mas, claro, não foi só isso. Escrever só por escrever nunca foi a minha vontade. E 2018 teve tanta pauta e tanta lama, que parecia ser impossível discutir qualquer tema relevante sem muito esforço e muito estudo. E tudo isso demandava tempo. Tempo: O commodity que eu não tinha.
Diz “o Livro da Economia” (Ed. Globo, 2012) que a primeira lição da Economia é a Escassez: Não há nada que queiramos em quantidade suficiente para todos os que querem. Pela diversão, embora fuja ao ponto, a segunda parte dessa lição cita que a primeira lição da Política é ignorar completamente a primeira lição da Economia. Mas, voltando… Commodities…
Bem, novamente, no ramo da Economia, as commodities são as matérias-primas de circulação mundial, isso porque sem elas, nada pode ser produzido. O aço, a água, o milho…
Um outro commodity é o Tempo. Ok, não vejo como vender tempo, no sentido literal da tradição, de tal modo que eu venha a viver um ano a menos e você, um ano a mais, mediante um pagamento substancial de dinheiro seu para mim… Outro problema em colocar o Tempo como commodity é que a definição clássica espera que um commodity tenha um preço quase tabelado ao redor do Globo, não importando sua origem ou sua história. Quer dizer: Um saco de milho do Brasil não tem muito motivo para ser 2x mais caro, melhor, mais milho, ou 2x mais barato, pior, ou menos milho do que um saco desse commodity vindo dos EUA. Claro que há todo o problema tarifário, tecnológico, de infraestrutura, mas ei… Não é disso que quero falar… A teoria pura das commodities diz que esses materiais básicos para a produção são 100% fungíveis e têm preços muito semelhantes quando feitos por competidores do mesmo tamanho. Isso porque por serem matérias-primas e, portanto, não refinadas, nem trabalhadas para serem o produto final, o valor agregado é o menor possível. Daí a pasteurização pecuniária.
Não é bem assim com o Tempo… Como Marx propõe no capítulo I do livro “O Capital”, percebemos que o Tempo de um empregado hábil, com ferramentas, tecnologia, ciência, nunca custará o mesmo que o tempo de um empregado sem essas características. E assim é com a vida:
Uma hora a mais de vida para alguém a beira da morte parece valer qualquer esforço. Para um jovem de 17 anos, as horas são um recurso em sobra e até irritantes: Ele não vê a hora de atingir os 18. Pularia todo aquele ano enfadonho se a opção lhe fosse dada.
Pois bem, já me parece razoável a certeza de que a ideia de que as horas de nossas vidas não custam a mesma coisa está clara para quem lê. Não é a mesma sequer para a mesma pessoa (o jovem que pularia todo o tempo dos 17 para os 18, não cederia um minuto de vida, se assim pudesse evitar, quando chegasse a hora derradeira). Mas afinal, do que estamos falando por aqui? Na verdade, e sendo bem sincero: De nada. Diferente de outros textos que já escrevi, este aqui só quer conversar contigo. Sem pretensões. Só meus achismos.
Com 32, indo para 33, sinto desejo por algo novo: O tempo é tudo que eu quero. Nem casa na praia, nem carro do ano. Troco tudo isso por mais tempo. Você vai dizer “tá bom… Vamos ver se recusará se alguém bater na sua porta e te der tudo isso”. E aí te direi “você entendeu tudo errado: Claro que vou aceitar. Mas, para poder vender tudo e, com esse dinheiro, comprar mais tempo pra mim”.
Aí que está a teoria de tudo: Tempo é commodity. E commodity é um bem que se compra. Já expliquei isso antes. E daqui, ocorre-me outro desdobramento: A insanidade com a qual convivemos pacificamente é que trabalhamos para comprar de volta o que sempre foi nosso: O Tempo. Vamos perder um tempo (já sentiu o prejuízo, hein?) nessa parte…
O que você vende para a empresa onde trabalha é seu tempo. Se for o dono da empresa, a empresa passa a ser sua razão de existir e, com isso, todo seu tempo é dela. Assim, empregado ou dono, você vende seu tempo de vida para alguém (mesmo que o patrão seja você).
Você recebe, em troca, dinheiro. A quantidade desse dinheiro depende de muitos fatores, alguns até imorais (como o incompetente filho do dono, que tem cargo de diretor). Outros são a expressão máxima da ideia de meritocracia, como a faculdade com bom nome, o histórico com notas altas, a pós-graduação, os idiomas, as especializações… Por aí vai.
Porém, embora você, engenheiro, médico, advogado ( = chavões) venda suas ~8h de forma mais cara do que o desqualificado, não necessariamente você vive mais (ou melhor) do que ele. Senão vejamos:
Um gerente de empresas tem um salário – bem – maior do que o estagiário. Mas quando as férias escolares chegam, é o estagiário que vai para a balada e, depois, transa mais que funileiro gaúcho (piada interna, perdão), enquanto o gerente pode estar fazendo turnos de 10 a 12 horas diárias, chegando em casa quando os filhos já dormem e a mulher já saiu do clima de festinha, se é que me entende… Parece exagerado, eu sei. Quem dera o fosse. Não é.
Eu trabalho com as maiores corporações do país, graças ao emprego que tenho (em uma das 5 companhias mais valiosas do mundo). Eu lido rotineiramente com líderes de equipe, quando não com diretores e, em geral, todos sofreram um bocado para estarem onde estão. E o que vejo e ouço na vivência com eles me garante: Eles não são mais livres ou vivem mais que o analista júnior. Comparar com o estagiário é até mancada. Não o farei mais.
Alguém vai me derrubar “do devaneio” que estou construindo. Vão me dizer “Tá bom… Mas o gerente passa as férias nas Bahamas e vai ao Aeroporto de Mercedes. Seu analista júnior não pode comer bife todos os dias da semana, ou vai à falência”.
O argumento é cruel; não posso deixar de reconhecer a obviedade de que meus gostos e meus sonhos só podem ser alcançados sendo o Engenheiro e jamais o Estagiário. Mostra o tipo de sociedade consumista em que nos moldamos. “Você é o que você tem e pode mostrar”, a maioria vai dizer. É uma realidade. Mas também é uma mentira. E eu vou tentar provar o erro que me parece existir nessa filosofia.
O primeiro aspecto a considerar é um tanto óbvio, porém, continuamente ignorado. O Estagiário realmente não vai às Bahamas. Não dá. Não com o que ele ganha. Mas eu tenho CERTEZA que ele se encontra “com os parças”, toda semana. E quando o dinheiro do goró (jovens, vocês ainda usam “goró”?) acaba, isso não importa. Um faz “o corre” do outro. E se ninguém tiver, não tem problema 2.0: Sentam na sala da casa da mãe de um deles e jogam conversa fora. O Tang é bom. A conversa, melhor ainda.
O Gerente, o Diretor, realmente vão às Bahamas. A cada quantos anos? Dois? Três? Só quando o casamento está acabando? Quando pegaram a mulher no Tinder, cansada de se deitar sozinha? Vão levar os filhos também, aquelas crianças que eles não sabem nada a respeito, mas que sabem que trouxeram ao mundo. Eles verão e desfrutarão coisas que o Estagiário só pode sonhar. Por 7 ou 15 dias a cada 2 ou 3 anos.
Não consigo me decidir de quem tenho mais dó.
Não sou hipócrita: Tenho sonhos, gostos e hobbies caros. Tenho um padrão de vida que não pode ser adquirido com sorriso no rosto e vida bucólica. Conheci os EUA em várias partes, o Chile, a África do Sul de Sul a Norte. Não dá para fazer o que faço com mil e duzentos reais por mês. Simplesmente não dá.
Mas eu jamais me permito esquecer: A única coisa que faz valer a pena sair da cama para perder 10 ou 12 horas do meu dia enriquecendo acionistas não é o dinheiro em si. É o que ele me permite fazer.
Daqui, decorrem mais alguns fatos para você analisar – como eu faço agora: Ninguém sobrevive num emprego como o que tenho, trabalhando 8h por dia. Ninguém. Podem lhe contar a mentira que quiserem. Não dá. Os mais “pé no freio”, como eu, fazem 10h. Os gerentes fazem 12h. Os alucinados, esses já não sabem mais dizer ao certo. Outro fato é que, realmente, é mentira se alguém lhe disser que a empresa nos obriga a isso. Ela não obriga. Você apenas não tem condições de entregar o que o cliente final contratou e ainda se manter em dia com as obrigações como funcionário dela. A armadilha está montada. Ela não te pede isso. Apenas é impossível ser um profissional bom sem fazer isso. E os profissionais não-bons, não-duram (com o perdão do “trocadilho gráfico”).
Eu trabalho para viver ou vivo para trabalhar? Tem horas que a diferença é impossível de se ver a olho nu. Porém, é só se lembrar de algo doloroso de se encarar: Você nasceu em uma família e cresceu com amigos. A carreira só veio bem depois na sua vida, lá pelos 16 ou até mesmo 20 anos. E você quer voluntariamente passar mais tempo com a última em preterição aos 2 grupos primeiros?
Que você não se engane: Ninguém aqui está vendendo sonhos. Só pode descansar no galho alto da árvore quem se deu ao trabalho de subir até lá. E se você nasceu pobre como eu, em uma periferia que nem asfalto tinha, a subida é uma merda, eu sei. Só que aqui mora o truque supremo do Diabo: Para que (e não por que) você quer ir até o galho mais alto? A maioria das pessoas com quem falei não soube responder com grande clareza. Algumas ensaiam um “é pela vista”. Ao que retruco “e quem vai subir com você até lá para discutir aquilo tudo que se vê e como foi a viagem até ali?”. A maioria desisti aqui. Alguns são o exército de um homem só: “Quem não aguentar a subida não é digno do que nos aguarda lá no alto”. Ok, Rambo… É seu direito pensar assim. O mundo só pode ser separado em vencedores e perdedores, você me diz. Respeito. É tosco pra mim. Mas respeito que funcione pra você.
Do meu lado, está bem claro: Não faz o menor sentido ter o melhor vinho de 2018 na minha adega para abri-lo sozinho e tomá-lo inteiro, sem ninguém para comentar todos aqueles aromas e sensações. Isso [de tomar uma garrafa, solo] é coisa de alcoólatra; não quero ser um.
Cada um sabe qual é o seu WLB (Work-Life Balance, sigla da nave-mãe onde vendo minha vida), é bem verdade. Para mim, WLB é ter a ajuda do meu gerente para estar na faculdade, por mais 4 anos no mínimo, das 19h às 22h, segunda a sexta, no período tipicamente letivo do Brasil. Para outros colegas, WLB é ter milhas infinitas para viajar de graça. Nenhum dos dois está errado. É só cada um correndo atrás do que quer. Só que tem uma coisa: Eu já passei tempo demais em saguão de aeroporto, hall de hotel e dentro de carros para saber que essas horas não voltam. Nenhuma delas, não importa como você as empregue, voltam, na verdade.
10 horas numa festa com os amigos, ou 10 horas dormindo. Ou ainda, 10 horas em uma UTI de hospital. Já passei por todas. São 10 horas. E nenhuma delas tem o mesmo preço. Marx all over again…
Eu vou te contar o melhor que ocorreu em 2018, comigo: Eu passei 4 dias com minha segunda família. Aquela feita pelas amizades que forjei no caminho que já percorri. Nem todos estavam lá, verdade. A vida não deixa que nada seja pleno, perfeito ou eterno. É parte da ironia que nos maltrata e que também a deixa tão bonita. Não foi de graça, claro. Pagar metade de um salário-mínimo é um luxo, num país com 13 milhões de desempregados. Não sou idiota e entendo como eu pude fazer isso.
Mas quer saber?
Somos nós que criamos as prisões em que nos trancafiamos. Nós dizemos qual é o preço. Nós dizemos que para ver os amigos, rir, falar besteira, aos 33 anos de idade, precisa custar X vezes mais do que custava quando éramos todos estudantes pobres em uma escola pública por aí. Novamente, não sou idiota: Eu quero estar com eles, tomar boa cerveja, comer carne na brasa, ter café da manhã com todos os requintes que desejo. E tudo isso custa dinheiro… Mas esse não é o problema… O problema vem abaixo.
Estamos, todos nós, morrendo, o tempo todo. Nesse exato minuto, você e eu estamos mais perto da morte. E ninguém sobrevive a ela. Eu garanto. Só que o sistema que criamos (e se não criamos, no mínimo, sustentamos com cada escolha que fazemos) diz que a única forma de viver com conforto, corretamente, dignamente – use o adjetivo preferido – é vendo o cliente 40 ou 60 horas por semana, e vendo os amigos 3 horas por mês, ou indo com a mulher para as Bahamas a cada 2 anos, por 15 míseros dias. Seu filho deu o primeiro passo e você estava fazendo hora-extra. E você diz “é por ele”. Bem, só tome o cuidado de não pôr tudo na conta dele. Não se assuste se um dia você chegar em casa e ele estiver com barba. A escolha foi sua, nunca dele. Se você for um completo estranho para aquele cara com 15 anos que ainda ontem você trocava fraldas, não diga que foi tudo por ele. Me parece um pouco covarde ou desonesto. Foi por você. Como meus hobbies são por mim. Se eu preciso ter uma adega com 30 garrafas dentro, não é pela adega. Não é pela minha noiva, nem pela minha mãe. É por mim. E tem um preço. O preço é medido em dias da minha vida. Dias e horas que não me pertencem, porque eu os vendo. Se vendo por um preço justo, a história que fiz e faço dirá.
Para todo o apaixonado pelo vil metal, pelo contracheque, pelos zeros que se acumulam na conta… Fica só uma sugestão: Tome cuidado para não gastar tudo que acumulou, sozinho e/ou numa cama de hospital. Ter um milhão é legal, claro. Olhar pro lado e saber que você não poderia estar melhor acompanhado (família, amor, amigos, cachorro, whatever) é muito melhor. Se você conseguiu os dois, te parabenizo e te invejo. Quem sabe um dia. Mas te garanto que conhecer a Savana africana com 30 é melhor do que conhecer com 60 ou 70, quando as costas já não aguentam mais a dor da estrada de terra. O tempo do garoto não custa o mesmo do velho, lembre-se disso sempre.
Toda vez que você vende barato o que não tem preço (a.k.a. seu tempo nesse mundo), você está sempre dizendo que é pelos outros, ou pelo futuro, ou sabe lá em nome do que. Enquanto isso, o que escorre pelas suas mãos é a vida. A única que você terá aqui. Se houver outra, só tem um jeito de saber, e é um preço caro demais para se pagar e confirmar.
Eu disse que não ia vender sonhos. E continuo dizendo: Semana que vem eu vou estar no trabalho. Os boletos continuam chegando. Da faculdade, do aluguel, do vinho. Eu quero tudo isso. Mas as prioridades têm de ser claras para mim. Eu não vou vender o tempo que sempre foi meu para conseguir mais dinheiro, para guardar mais, para ter mais bens que não vou utilizar (porque estarei fazendo hora-extra em algum lugar, para enriquecer alguém que não sou eu), para um dia, quem sabe, se a loucura do hospício que é o mundo adulto não tiver me roubado toda a saúde, eu, enfim, aproveitar isso tudo. Lembrando o que eu já disse: Miami com 30 anos é bem melhor que Miami com 60. E com 20, é melhor que com 30. A disposição, a aventura, a doçura das memórias; essas coisas não podem ser compradas.
Estamos todos em rota de colisão com o fim. A vida é agora. Longe de mim entrar na onda idiota do “Carpe Diem”, lema romano usado no fim do império, já na decadência, para justificar abusos e inconsequências. Quem me conhece sabe muito bem que esse não sou eu.
Mas, 2019 será um ano que dedicarei a viver com menos. Eu vou enxugar os gastos, reduzir o que puder, sem tornar a vida enfadonha, sem tornar o emprego insuportável (eu vou para lá por tudo o que ele me permite fazer fora de lá; nunca me esqueço dessa ordem) e, então, eu vou saber de quanto preciso para manter a roda girando. E em 2020, a meta é trabalhar menos.
O homem planeja e Deus ri, é verdade. Só estou compartilhando um plano. Planos mudam. Nem por isso devemos deixar de fazê-los… Eles nos dão Norte para seguir nas horas mais escuras.
Mas eu sei o que faz a vida valer a pena. E não tem nada a ver com meu cargo, meu e-mail, ou meu currículo. Não que essas coisas sejam ruins. Pelo contrário: É o melhor lugar em que já trabalhei em toda a minha vida. O melhor gerente, a melhor equipe. Mas houve um tempo em que todas as horas da minha vida eram minhas, e como o estagiário, eu via constantemente as pessoas que fazem o mundo ser um lugar que vale a pena estar. É isso que eu quero. O caixão não terá cofre. Só vão lembrar de mim as pessoas com quem eu me relacionei humanamente. Nenhuma empresa em que troquei o servidor de e-mails fará uma homenagem quando eu partir.
Agora, eu vendo minhas horas por um preço que não atinge 13% do valor que elas geram para minha companhia. Detalhe sórdido: Fiz a conta com o salário bruto, como se não houvessem impostos. E alguns dos meus colegas estão determinados a não ver os amigos, não ver os filhos, perder a mulher para o encanador… Alguns porque tem um plano e o sacrifício é valido, com começo, meio e fim. Eles têm minha admiração, no entanto ela valha de nada. Porém, outros tantos o fazem porque disseram para si que “não há outra forma”. Pois, minha meta será achar outra forma. Porque estou morrendo. Todos estamos.