O Brasil, o terrorismo e os espectros

Imagem: Ton Molina/AFP, disponível em O TEMPO.

Terrorismo

Em 2014, durante a Copa FIFA no Brasil, a minha empregadora deu camisas oficiais da seleção canarinho para todos os funcionários. Foi um belo gesto e um belo presente. Mas, se eu já fazia ressalvas à camisa da seleção desde os idos de 2018, o último 8 de janeiro de 2023 veio para sepultar qualquer chance de eu vestir essa camisa no futuro. Ela se tornou um símbolo de tudo o que mais desprezo: estupidez, covardia, golpismo, fascismo… Interrompo a lista, por contenção. Por isso, a camisa foi para a caixa de doações. Não que eu ache que os menos afortunados deveriam ser confundidos com quem veste essa camisa para praticar barbárie. É muita humilhação com gente já marginalizada. Mas entre a doação e o lixo, acho que ela ainda pode servir melhor no primeiro grupo.

No “mundo líquido” de Bauman, as palavras também têm perdido a substância e o sentido original, numa velocidade assustadora. Na política brasileira, então, esse esvaziamento de sentidos é notório e pré-data a era digital, ou seja: não foi ela que forçou o esvaziamento dos sentidos dentro da vida política.

Há muito, eu crítico a Esquerda brasileira pela falta de zelo com as palavras. Foram seus atores que esvaziaram o sentido de “fascismo” e “fascista”. Quando todos são, ninguém é. E os representantes desta Esquerda usaram e abusaram da “licença político-poética” de empregá-la. O resultado, tal qual a fabula de Pedrinho e o Lobo, foi que quando o termo realmente precisou ser empregado para alertar o povo do que estava por vir, ninguém mais se importava com o peso e o alarme nele contidos.

Outra palavra bem surrada é “terrorismo”. Desde 2001, pelo menos, o terrorismo está em todo lugar. Existia antes, mas virou vírgula depois das Torres Gêmeas novaiorquinas. Então, como eu já comentei sobre as 14 características do fascismo, passo a comentar sobre o sentido de “terrorismo”. É bom adiantar que as definições de “terrorismo” são bem diferentes no meio político e no meio jurídico. Começo pelo último.

A Constituição Federal de 1988, Lei maior no ordenamento jurídico brasileiro, e pacto social firmado entre todos os nacionais deste país no que tange à organização do Estado, utiliza “terrorismo” sem, no entanto, explicá-lo. Ele aparece no art. 4º, quando define como o Brasil se comportará nas relações internacionais (e, por lá, repudia o emprego do terrorismo, bem como do racismo) e, mais tarde, no art. 5º, famoso por ser rol maior dos direitos constitucionais fundamentais do cidadão brasileiro, que define o terrorismo como crime inafiançável, conforme inciso XLIII (43), onde se definem inafiançáveis, também, os crimes de tortura e tráfico de drogas. É a conhecida – por quem estudou Direito – trinca “TTT” de crimes. Isso tudo dito, nada explica a Constituição acerca do que é “terrorismo”. E não há crime sem lei anterior que o defina, como comanda a mesma CRFB, neste mesmo art. 5º, inciso XXXIX (39).

Se pesquisarmos o Código Penal, Decreto-Lei 2.848/1940, tampouco encontraremos definição do que vem a ser “terrorismo”. Isso porque a regulamentação do que é terrorismo ocorre em Lei esparsa (fora do Código Penal) e tivemos a edição da Lei Federal n° 13.260/2016.

É essa Lei, conhecida como “Lei antiterrorismo” (embora eu discorde do “anti”, já que ela não se dedica a criar meios de combate ao terrorismo), que define em seu artigo 2º o que é terrorismo para o Estado democrático de direito brasileiro, numa perspectiva legal (jurídica).

Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

§ 1º São atos de terrorismo:

I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II – (VETADO);

III – (VETADO);

IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.

O primeiro entendimento que alcanço, portanto, é de que a Lei antiterrorismo não se aplica aos golpistas do último dia 8. E aqui cabe alguma contextualização histórica: o diploma legal em comento foi promulgado pela ex-Presidente Dilma Rousseff. Seu passado pessoal em grupos paramilitares pró comunismo, bem como sua posterior filiação ao Partido dos Trabalhadores que é fortemente baseado em movimentos sociais históricos do Brasil (MST, CUT, APEOESP, etc.) levou a todo tipo de pressão no Congresso Nacional para que a Lei antiterrorismo alcançasse tão somente o conceito “internacional” de terrorismo (o terrorismo de grupos religiosos, de grupos supremacistas por etnia, etc.), excluindo qualquer alcance ao “terrorismo doméstico” (grupos de nacionais que decidem executar atos violentos contra o governo em exercício, por qualquer razão). Daí a redação do parágrafo segundo. É este mesmo § 2º que livrará os bolsonaristas envolvidos no 8 de janeiro de se verem acusados de terrorismo nos termos do art. 1º, inc. IV, da Lei supra.

Portanto, “terrorismo”, juridicamente falando, diante do arcabouço (conjunto) do ordenamento pátrio vigente, não é crime pelo qual os vândalos possam ser denunciados. E o Direito Penal é extremamente fóbico a qualquer inovação em entendimento que permita a elasticidade do alcance dos tipos penais. Em outras palavras: o Direito Penal não tolera entendimento que facilite o enquadramento de condutas do indivíduo em crimes legalmente previstos, mas que não citam claramente a conduta perpetrada. E com razão. Fosse o Direito Penal amigável a essa liberdade do Poder Acusatório, todos que incomodassem o Estado (ou o governante) acabariam facilmente atrás das grades. Pelo mesmo motivo, mesmo que o Congresso Nacional editasse nova Lei ainda hoje e o Presidente Lula a promulgasse, ainda assim os bolsonaristas não poderiam ser processados sob a figura da nova Lei. Porque a Lei penal só retroage em favor do réu, nunca contra (art. 5º, XL [40], CRFB).

E se você está esbravejando por concluir que os bandidos de domingo sairão livres, veja isto por outro ângulo: é uma excelente oportunidade para falar para seu parente/amigo bolsonarista sobre a importância dos Direitos Humanos, da legalidade, da obediência à Lei por parte das instituições e do Estado-Juiz, e porquê vale defender um Estado democrático de direito. Fosse uma ditadura, o(s) ditador(es) poderia(m) mudar todo esse entendimento sem maiores melindres e poderia(m) condenar todos os arruaceiros à pena de morte, mesmo que retroativamente.

Mas, e o “terrorismo” no sentido político? Este certamente é termo adequado para os bolsonaristas nas ruas.  Embora o mundo nunca tenha chegado a uma definição universal do que é “terrorismo” (porque é um crime de definição “cinzenta” – toda revolução é ilegal, exceto se der certo…), os Comitês das Nações Unidas que se debruçaram nesse tema, nos idos dos anos 2000, chegaram à seguinte definição do que é a conduta terrorista:

“quando o propósito da conduta, por sua natureza ou contexto, é intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a que faça ou se abstenha de fazer qualquer ato. Toda pessoa nessas circunstâncias comete um delito sob o alcance da referida Convenção, se essa pessoa, por qualquer meio, ilícita e intencionalmente, produz: (a) a morte ou lesões corporais graves a uma pessoa ou; (b) danos graves à propriedade pública ou privada, incluindo um lugar de uso público, uma instalação pública ou de governo, uma rede de transporte público, uma instalação de infraestrutura, ou ao meio ambiente ou; (c) danos aos bens, aos locais, às instalações ou às redes mencionadas no parágrafo 1 (b) desse artigo, quando resultarem ou possam resultar em perdas econômicas relevantes”.

Portanto, sim, não há dúvidas de que os movimentos bolsonaristas nas ruas são terroristas, dentro de uma definição política, bastante aceita e atual (ONU, anos 2000). Mas para que se possa falar em crime de terrorismo, este precisa existir na legislação nacional, anteriormente ao(s) ato(s), para que se possa processar, julgar e prender o(s) individuo(s) que praticou(am) tal ação. É óbvio: há diversos outros crimes para acusar a horda de tresloucados. Dano, lesão corporal (contra os agentes que foram espancados), ameaça, crimes contra o patrimônio cultural (Lei 9.605/1998), a própria figura do Golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal) que foi criada em 2021, enfim… Muitas possibilidades, mas não a figura do crime de terrorismo. E, com ela, se vai a característica do crime inafiançável. Ainda terão ao favor de suas defesas, atenuantes do art. 65 do Código Penal, como aquela concedida ao crime cometido sob influência de multidão.

Neste breve resumo, quero alertar para fato que me parece claro: o Brasil, o Estado brasileiro, as instituições, a Lei, nenhum deles está pronto para lidar com o terrorismo bolsonarista. A Lei, como está, não os alcança em magnitude e não protege o Estado brasileiro e os cidadãos que o respeitam em suficiente. Fora da Lei, não há diferença entre bandidos e um Estado de exceção. Como não havia diferença entre os terroristas de Esquerda, planejando sequestros para forçar sua ideologia, ou os terroristas fardados, usando a máquina do Estado para perseguir e aniquilar quem os incomodava. Fora da legalidade e do prévio conhecimento das regras do jogo, vale tudo. E o vale-tudo não pode ter lugar na civilização e na cidadania.

Espectros

Os espectros, os fantasmas, o passado da história brasileira voltaram a aparecer com força inédita, desde a redemocratização. O que se assistiu no domingo passado e o que se ensaia para hoje, no início da noite, foi (e será) nada aquém do que uma tentativa de golpe de Estado. O que queriam os criminosos era que, diante da desordem instalada por eles, as tropas das forças armadas fossem às ruas, e sendo elas recheadas de simpatizantes pelos desordeiros, virassem-se contra Constituição de 1988, tomando o poder político das mãos dos que foram eleitos. Se ainda somos uma democracia é somente porque o cenário internacional não favorece um golpe e as famílias dos militares não querem perder o direito de ir pra Disney. Se não houvesse uma pressão internacional (especialmente dos EUA – ah, a ironia) em sentido contrário ao golpismo, já teríamos a voz do Brasil passando até no Twitter, à essa altura.

O problema é que a história sociopolítica do Brasil é feita de golpes de Estado. O caminho “natural” nunca existiu para a sociedade brasileira. Não. Aqui, política nova se faz com ruptura e solavanco. É verdade que em quase todo país do Ocidente, a história se repetiu do mesmo modo no início, mas o caso brasileiro é especialmente alarmante porque essa lógica jamais foi superada:

A queda da monarquia e o início da República se dá com um golpe dos militares contra o Imperador, em 1889.

O fim da primeira República (iniciada em 1889) e o início do Estado Novo se dá com um golpe de Getúlio, apoiado pelos militares que lhe eram simpáticos, em 1937. Acabou em 1945, também sob ameaça de um novo golpe de Estado e novamente por ação dos militares, agora, opostos a Getúlio.

Chega 1964 e a Democracia cessa outra vez, com os militares dando um golpe de Estado para impedir que o vice de Jânio Quadros, João Goulart, erigido a presidente pela renúncia do primeiro, pudesse levar a cabo seus planos político-econômicos, sob a alegação de que Goulart instalaria um regime comunista no Brasil. Detalhe: Goulart era tão comunista quanto eu ou você. Seu nacional desenvolvimentismo era de matriz Getulista (aliás, ambos eram do PTB, fundado por Getúlio justamente para “roubar” votos da classe trabalhadora, contra partidos abertamente comunistas).

Chegam os anos 1980, os donos da ditadura brasileira, general Geisel (penúltimo presidente do regime militar) e general Couto e Silva (o melhor “político fardado” que dispunham), percebem que vão sofrer uma revolução popular e, antes disso, desarmam a bomba-relógio “se adiantando” e devolvendo a República ao controle popular pelo voto (numa análise reducionista: democracia). Esse adiantamento foi letal para o equilíbrio porque, iniciado no meio dos anos 1970, permitiu que os militares programassem como “perderiam o poder”. E ainda ocupando o poder, obrigaram o outro lado (o nosso) a aceitar os termos postos à mesa. Perderam e não perderam. Influenciaram toda a redação da Constituição e garantiram para si uma Lei de anistia extremamente bondosa e protetora de seus interesses. Não foram julgados, não tiveram sua vasta corrupção investigada. Saíram vitoriosos e ainda poderosos. Vide os moldes atuais da previdência militar.

Chegamos à redemocratização em 1988 e nos dias de hoje. E como já foi dito muitas vezes, nos últimos dias, porque um deputado pôde homenagear um torturador (ele não homenageou um presidente do regime, mas o torturador dos porões; é bom que se entenda a diferença) durante seu voto no impeachment de Dilma e não sair de lá algemado, aqui estamos: discutindo se a democracia brasileira aguenta muito mais tempo sob esse tipo de ataque. Imagine se o parlamento alemão aceitasse que alguém homenageasse Hitler nos dias de hoje. Seria escandaloso.

O Brasil

“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.”

ou

“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.”…

Talvez, haja obras mais atuais a sumarizar os tempos vividos. Mas eu já estou velho e essas são as músicas da minha geração. Citar Vandré seria pretensioso, já que ele veio bem antes. Buscar o presente seria engodo, já que eu não tenho escutado muito os novos artistas brasileiros.

A pesquisa Atlas-Intel, publicada no último dia 10, entrevistou a população e concluiu que 75.8% não concorda com os atos de vandalismo, enquanto 18.4% concordam. 18% é muita gente de acordo com a barbárie, mesmo que pareça pouco. Quando movemos o recorte para eleitores do Messias, vemos que 38.1% apoiam, enquanto 48.6% repudiam, o que é surpreendente e até positivo. Mas, quando mudamos para religião e olhamos para os que se declaram evangélicos, o problema dispara de novo: 31.2% concordam, contra 14.3% de católicos e 6.4% de outras religiões. Clique no link acima para conferir o tamanho do estrago na sociedade, após ao menos 4 anos de barbárie verbal e prática.

Seja como for, temos que olhar para o material humano disponível no Brasil. Não é possível atribuir tudo à figura do grande mito messiânico que essa horda decidiu seguir. É impossível lhe eximir da responsabilidade, igualmente. Palavras têm força, e na boca ou nos textos de pessoas pelas quais temos apreço, devagar ou rápido, passam a ecoar no nosso imaginário e formar – em parte ou no todo – a nossa opinião.

Não, um presidente que grita “vamu metralhar a petralhada” (sic) não está apenas fazendo um discurso. Não é mero simbolismo, figura de linguagem… Ele está, no médio ou longo prazo, autorizando a violência contra quem não concorda com ele(s). Ademais, praticamente tudo na vida humana é simbólico. O seu contrato de trabalho é simbólico, o casamento dos seus pais é simbólico, a escritura pública da sua casa própria é simbólica, e o contrato de aluguel também é.

A Lei. Especialmente a Lei. Essa é muito simbólica. É um símbolo de que nós todos, unidos pela língua, cultura, território e época, decidimos renunciar a boa parte da (senão a toda) capacidade física e coercitiva de obrigar o outro a fazer o que queremos, e depositamos esse poder em um terceiro ente, idealmente capaz de usar a força na hora certa e mediar a nossa coexistência de forma menos brutal, bestial, animalesca.

Quando um bolsonarista quebra os vidros do STF, ele não está ofendendo o ministro Alexandre de Moraes.

Quando um camisa-amarela fura o painel de Di Cavalcanti, ele não está machucando o Presidente Lula, muito menos a Di Cavalcanti que já está morto há 46 anos. Tampouco machucam os ex-Presidentes cujos quadros foram estilhaçados e jogados ao chão.

Quando um milico da reserva ou policial de folga, raivoso, irrompe contra o mobiliário do Congresso Nacional, em parte trazido da antiga capital nacional (o Rio), quebrando mesas e móveis centenários, ele não está fazendo Pacheco ou Lira chorarem.

Não é aos Presidentes dos Três Poderes que o Governador do DF, agora afastado, Ibaneis Rocha, deve desculpas. As desculpas são devidas aos 215.5 milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram seu patrimônio depredado por capricho e loucura, de forma bestial e animalesca.

Ou defecar sobre a fotocopiadora virou sinal de patriotismo? Que as palavras andavam sem sentido, vá lá, mas isso já é demais.

Quando um bolsonarista joga o escudo da República para tomar chuva, não é o ministro do STF que ele está agredindo. É a mim. É a você. O ministro agora é um. Amanhã será outro. Aquele espaço onde o STF existe (e onde existem os demais Poderes), é sagrado no sentido de abrigar o nosso pacto, a nossa esperança de que possamos coexistir enquanto sociedade, no mesmo espaço e no mesmo tempo, dividindo alguns (jamais todos) valores comuns e tornando nosso país em um lugar melhor de se viver do que já foi ontem.

O ato foi, até aqui, em vão. Serviu, isto sim, para acelerar o desmonte dos acampamentos golpistas e reaglutinar instituições da República que andavam, há muito, separadas. Mas parar nesse entendimento é uma visão demasiadamente otimista, até pueril, eu diria. O bolsonarismo finalmente mostrou a que veio. Se não podem vencer nas ideias e no voto, vencerão de outro modo. Vale-tudo. Barbárie. Terrorismo. Esse é o bolsonarismo.

Espero que o espelho não lhe mostre de camisa da CBF. Se mostrar, fica o recado de quem espera que você saia dessa: você está doente e imerso num mundo igualmente doente. Não dá para respeitar a Constituição, o nosso acordo de coexistência, ou acreditar no futuro da nação e ser bolsonarista. Simplesmente não dá. É uma questão de lógica. E de civilização.

Sobre o verdadeiro vírus

Tem quem ache que o pior vírus, no momento, é o Coronavírus… Mas, isso, só até conhecer o nosso presidente (em minúscula, mesmo)…

(créditos da imagem: Aroeira, 2020 – Publicada em https://jorgalistaslivres.org)

O Brasil enfrenta, em paralelo ao resto do mundo, uma segunda epidemia. A primeira é causada pelo SARS-CoV-2, e todo o planeta luta contra ele, buscando por respostas – mais ou menos – em conjunto. A outra é uma epidemia de estupidez e “descivilização” (como cunhou o Professor suíço, Manuel Eisner, ao analisar a violência no Brasil); porém, esse combate é bem mais complicado do que criar uma vacina para a COVID-19.

De repente, todos sabem muito sobre tudo…

Bem, faz um tempão que não escrevo por aqui. Precisamente, 150 dias…

O motivo, como sempre, é a vida: Muita coisa para fazer, pouco tempo para realizar. Mudança na carreira, faculdade pegando fogo, matérias encavaladas para acompanhar… E aí… Pah!!! COVID-19

E teve tanta coisa que eu queria falar… Mas, sinceramente, acabei por concluir que era momento de falar menos e ouvir mais. Dar espaço para as autoridades, diminuir o ruído de fontes disponíveis… Sou grão de areia, eu sei, mas fiz minha parte e me calei.

Nas primeiras semanas de COVID-19, tínhamos especialistas em Virologia das mais variadas matizes e formatos. Muitos, até hoje, não sabem a diferença entre um vírus e uma bactéria (dica: praticamente tudo; é bem mais fácil dizer no que se parecem), mas, estavam lá, falando com grande propriedade da função da máscara de pano como filtro antiviral, fórmulas caseiras para matar o vírus, incluindo vinagre (?!?!?!)…
Bem, ainda tem quem ache que vinagre “limpa” a salada… Outros falaram que o calor tropical nos protegeria. Se fizer 56 graus lá fora (temperatura em que o vírus “morre” – fonte), sua preocupação passará a ser outra, garanto…

Restou me calar para não ser mais um louco no show de horrores que foi viver os primeiros dias da pandemia de Coronavírus, misturada com a epidemia de estupidez e desinformação que sempre vivemos por aqui. E, sinceramente, esse é o ponto mais importante em buscar educação: Ter autoconhecimento suficiente para saber sobre os limites do seu conhecimento, e poupar os outros e a si de falar grandes atrocidades.

Como disse Bertrand Russell:

O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas…

E, por Deus, como há idiotas nesse país. É como uma convenção que nunca acabou, porque o idiota-mor que organizou, esqueceu de pôr uma data de término.

Bem, para te adicionar algo novo, como eu sempre tento fazer quando escrevo, vou buscar apresentar um pedacinho do que é a Virologia para, depois, propor algumas ilações com o tema principal. Você não vai sair pronto para sustentar um debate na área, mas vai ter alguma referência e, se quiser, até um material extra para ler e, a partir daí, falar com um pouco mais de fundamento sobre o mundo dos vírus.

Vamos perguntar a quem sabe:

O material no qual me baseio é o excelente guia da Fiocruz, de ~90 páginas, disponível aqui. Sua leitura é muito mais profunda e detalhista do que eu farei por aqui, mas convido a todos que se interessam a le-lô na integra. O material tem linguagem de fácil acesso, requerendo conhecimentos básicos em biologia e química do Ensino Médio. Nesse tema, se alguém sabe do que fala, esse “alguém” é a Fundação Oswaldo Cruz.

Em Virologia, área de especialização da Microbiologia, o estudo dos vírus se dá por escopos como:

  • Taxonomia & Estrutura viral
    • É o escopo que classifica (~“dá nomes”) aos entes virais, e estuda sua estrutura químico-físico-biológica. Por exemplo, a classificação se dá pela presença de moléculas de RNA ou DNA (somente uma família de vírus [mimividae] possui ambas), pela polaridade da fita RNA, pela fita dupla ou simples de DNA, pela presença ou ausência de envelope proteico protegendo o capsídeo (que protege o ácido nucleico), e por aí vai.
  • Replicação viral
    • Escopo que estuda as funções enzimáticas empregadas pelo vírus para se replicar (o que, grosseiramente, seria equivalente à sua reprodução). Vírus não “fazem sexo”, nem podem se multiplicar por meiose ou mitose porque, não, eles não são uma célula, como todas as bactérias são [e todas são unicelulares]). Vírus sequer têm metabolismo próprio (grosso modo: “Capacidade de produzir energia vital”) precisando sequestrar a estrutura celular (complexo de Golgi, mitocôndrias, ribossomos…) do hospedeiro para este fim. Por este motivo, até hoje não há consenso científico se vírus são seres vivos. A palavra “vírus” aliás, vem do latim para “veneno” ou “toxina”.
  • Patogênese viral
    • Estuda a capacidade de um dado vírus de causar alterações clínicas no hospedeiro, como febre, tosse, vermelhidão em tecido da derme etc.. Algumas infecções virais são assintomáticas, pois, o agressor não consegue afetar significativamente a estrutura infectada, de um ponto de vista físico, químico e/ou fisiológico (aliás, é o que acontece com a maioria das crianças que se contaminam com SARS-CoV-2: Elas não apresentam sintomas e são, por este motivo, um perigo aos grupos de risco [idosos, diabéticos, obesos, pessoas com quadro cardiorrespiratório crônico…]).
  • Imunologia viral
    • A imunologia cuidará de entender como o sistema imunológico do hospedeiro reage ao invasor, como diagnosticar a presença do agressor em exames laboratoriais, quais medicamentos ajudam o sistema imunológico (em geral, pela imobilização enzimática do agente patológico, ou pelo fortalecimento de alguma estrutura que o agressor se aproveita para contaminar a célula hospedeira), e quais medicamentos não têm qualquer relevância (no caso da COVID-19 de cara, antibióticos; porque antibióticos visam atuar no metabolismo [alguma parte dele] das células do agressor e, como já citei, vírus não têm células!), ou se são mais perigosos que a doença em si (como, por exemplo, os baseados em Cloroquina, pois, esta aumenta consideravelmente o risco de complicações cardíacas; uma área-alvo na patogênese típica da COVID-19), e daí por diante.
  • Epidemiologia
    • A Epidemiologia é importante alicerce para a Vigilância Epidemiológica, parte das obrigações de qualquer Ministério da Saúde, visando garantir a segurança sanitária da sociedade. Esse escopo ajuda no entendimento do potencial de contaminação de um dado agente viral (necessidade de “vetores” [animais, em geral, artrópodes], período de incubação, mortalidade, patogenicidade etc.); igualmente, ajuda no planejamento de calendários de vacinação, identificação de medidas públicas para atacar o contágio, identificação de comportamentos de risco, profilaxia recomendada, e assim vai.

Vírus possuem uma capacidade de recombinação e mutação sem igual, podendo mudar apenas um cromossomo em seu ácido nucleico, “dando à luz” a um agente que pode ter características bem distintas e até “adotar” partes do DNA hospedeiro ou de outros vírus que estão atuando concomitantemente; e isso pode resultar em um nova cepa (linhagem) de vírus que pode ser mais ou menos eficiente em contaminar, resistir ao tratamento, além de poder aumentar a patogênese do agente (fonte – em “Evolução dos vírus”). Foi o que ocorreu no caso da gripe suína, onde o vírus influenza A se encontrou com o vírus da gripe aviária em células suínas, recombinando seu código com o outro patógeno, se tornando ainda mais agressivo para nossa espécie. Nota: Isso tudo não é “pensado”… É simples efeito da seleção natural, como bem explicado por Darwin.

Com o SARS-CoV-2, em algum momento (entre dezembro e fevereiro) e lugar na Europa, uma mutação ocorreu e mudou uma simples base nucleica: Uma Guanina (G) por uma Adenina (A), na posição 23.403 (o SARS-CoV-2 possui 30 mil pares de cromossomos), tornando a “Spike” (sua proteína de acoplamento às células humanas, pelo receptor ACE2) muito mais eficiente. Em outras palavras, com a mutação, o Coronavírus se tornou mais contagioso e e pode ter dificultado a produção de uma vacina única (fonte).

Por fim, me parece que não custa dizer o óbvio: Vírus e bactérias não têm “intenção”. Eles não pensam, não tem estrutura nervosa (o vírus tem muito menos estrutura do que a bactéria), e não são “maus” ou “bons”. São como um fato: Eles apenas existem.

O que o vírus causa pode ser bom ou ruim e, aliás, inúmeros são os indícios da importância dos vírus para a espécie humana, inclusive em sua evolução, sendo que podemos ter evoluído para o ponto em que estamos, em parte, graças a eles.
Igualmente, é aceito pela comunidade científica que nossas mitocôndrias (a “usina de força” das nossas células) devem ter sido bactérias que viviam de maneira simbiótica dentro de nós e que, em algum momento, migraram para o citoplasma, se fixando permanentemente à citologia humana (fonte).
Em resumo, é o humano que tenta emprestar conceitos morais e éticos ao mundo biológico. Os vírus e bactérias não são bons ou maus. Eles existem e interagem. O resultado pode ser bom (e.g.: Nossas mitocôndrias, ou os vírus que infectam e matam bactérias no trato intestinal, garantindo o equilíbrio da flora), mau (e.g.: Ebola, Coronavírus), ou neutro (quando não causam nenhuma patogenia). (fonte)

As terapias gênicas são, em grande parte, estruturadas em cima da ideia de reescrever as partes do vírus que fazem mal, e utilizá-lo para “infectar” seu corpo com aquilo que ele precisa. Seriam, no limiar da técnica, capazes de curar Hemofilia ou Diabetes Mellitus, por exemplo, ao reescrever nas células do fígado e pâncreas (respectivamente), os genes que “dão problema” (de maneira bem grosseira, tudo bem?). (fonte)

Bem… Agora que temos o mínimo de contexto para seguir, vamos em frente.

Sobre a necessidade de sermos intolerantes

Karl Popper, filósofo nascido alemão, em 1902, e inglês por escolha, sintetizou o conceito mais aceito do que é Ciência, até hoje. Mais especificamente, ele sintetizou o que faz de uma teoria, ciência, assim dizendo:

Uma teoria científica é um modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos. Assim, uma boa teoria deverá descrever uma vasta série de fenômenos com base em alguns postulados simples como também deverá ser capaz de fazer previsões claras, as quais poderão ser testadas.

Assim, podemos entender o que faz de uma teoria, ciência, e o que não é ciência. Se não consegue descrever os fenômenos através de um modelo matemático (Força = Massa*Aceleração) ou postulado claro (“crime” é Ato Típico, Antijurídico, cometido por Agente Culpável); se a teoria não consegue prever claramente boa parte dos resultados destes mesmos fenômenos, no futuro; tal teoria pode ser teoria da conspiração, teoria de boteco, teoria de Whatsapp… Mas, não é teoria científica. Teoria também não é sinônimo de “opinião”!!! Pelo amor de todos os santos… Mas, isto fica para outro dia…

Também, é de Popper o Paradoxo da Tolerância (fonte):

A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas. Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, ao direito de não tolerar o intolerante.

As palavras atingem minha compreensão do mundo como bombas. É duro pensar que estou vivendo os dias da minha vida às portas de ver realizado o Mal do paradoxo de Popper (o fim da tolerância). Para que preservemos a Tolerância como valor e a Democracia como regime de Estado, precisaremos nos tornar intolerantes com os intolerantes.

Para quem me conhece “ao vivo”, suponho ser fácil perceber que sou totalmente contrário à ideia de censura e repressão da opinião alheia. Eu acredito – no caso geral – na ideia sintetizada da filosofia de Voltaire:

Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.

A frase, erroneamente atribuída ao filósofo é, na verdade, de autoria de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall (1868 – 1939), sendo, contudo, um brilhante resumo da linha liberal (nada a ver com liberalismo econômico) de pensamento de Voltaire, contra o Estado Absolutista com o qual conviveu. (fonte)

Isso dito, não há qualquer conflito nessa ideia com o paradoxo postulado por Popper. Aliás, Popper é bem claro ao dizer:

não insinuo (…) que devamos sempre suprimir (…) filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública (…)

Logo, há um pressuposto: Se os argumentos baseados em racionalidade permitem fazer com que os integrantes da sociedade questionem filosofias intolerantes, mantê-las na discussão pública é vacina mais do que desejada contra o alastramento dessas mesmas ideias.

Contudo, Popper também prescreve a exceção:

Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; (…) (pois) eles (os que propagam as ideias intolerantes) podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas

Assim, é chegada a hora de todos nós (que acreditamos numa sociedade que tolera a diferença, que respeita a dissidência do pensamento, que se baliza pela Lei para compatibilizar a convivência e que busca incessantemente os princípios (positivamente) utópicos de igualdade e fraternidade na sociedade) nos tornamos intolerantes com os intolerantes. Sob o risco de permitimos que a tolerância seja exterminada.

Hoje, estou no dia de desmontar atribuições errôneas… Diferentemente do que muitos dizem, este – a seguir – não é um ditado alemão, mas uma frase, até onde obtive informação, de autoria do Chris Rock (o comediante estado-unidense) – (fonte):

Se 10 caras acham que é ok passar um tempo com um nazista, eles se tornam 11 nazistas.

Depois da frase de 2017, alguém, na Alemanha, deu uma roupagem mais formal e usou o exemplo dos 10 à mesa com 1 nazista… Enfim… Este não é, de verdade, meu ponto.

Meu ponto é que toda vez que nós rimos com simpatia para alguém falando atrocidades e defendendo tortura e massacre daqueles que pensam diferente, que são diferentes, ou que simplesmente não dizem “amém” para aquilo que o boçal vocifera, nós não apenas garantimos a perpetuação da barbárie, como nos tornamos mais bárbaros, também.

Por isso, é hora de ser intolerante com gente intolerante: Ou eles discutem seu ponto de vista dentro de um grau civilizatório mínimo, respeitando noções gerais de debate civilizado, e se abstendo de expedientes falaciosos (como atacar o autor do argumento, e não o argumento em si) ou calam a boca e morrem gritando somente para os loucos e bárbaros como eles mesmos, até o ponto de ficarem isolados da sociedade civilizada, como merecem aqueles que querem destroçar o próximo e tornar o mundo um lugar de supremacistas e egocêntricos.

Como bem disse o filosofo Heidegger, mais tarde, inspirando fala similar do Doutor Martin Luther King:

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

A História, no entanto, não perde o dom da ironia: Heidegger, alemão, foi filiado ao partido Nazista desde 1933, embora tenha se tornado um crítico do regime já durante a 2ª Grande Guerra.

Como podemos ver, a necessidade da intolerância com os intolerantes parte do risco de que a discussão não mais seja racional, e que os intolerantes se imponham por força bruta, e massacre dos seus opositores, à revelia da validade de suas ideias.

E clamo que todos nós, seres civilizados, deixemos de emitir “notas de repúdio veemente”… Não tem nada mais inócuo e patético, do que uma sociedade e órgãos de um Estado Democrático de Direito que, depois de levar seguidas cusparadas na cara, emitem “notas de repúdio”… Tais notas são motivo de riso entre os animais irracionais do outro lado dessa guerra. Precisamos, como Popper disse, ser intolerantes, se preciso, com o uso da força Estatal (porque nós, sim e, de fato, estamos ao lado do Estado Democrático de Direito), processando, legalmente, e encarcerando os elementos que atentam contra a vida civilizada e balizada pela Lei. Mas, eu não sou bobo, e também sei que o “braço forte” do Estado está sendo corrompido, dia após dia… Bom… Outro tema, outro post.

O verdadeiro (e mais perigoso) vírus

O verdadeiro e mais perigoso vírus, atuando no Brasil, é o vírus bolsonarista. Como agora sabemos o básico de Virologia, faremos a análise desse vírus dentro das lentes científicas da Microbiologia – num óbvio, mas, eficaz, penso eu – exercício de analogia e sarcasmo, é claro.

Taxonomia & Estrutural Viral

O vírus bolsonarista ou vírus do bolsonarismo vem da família bolsonariae, e sua origem remonta à boçalidade, à estupidez e ignorância do espécime medíocre; daí, tamanha similaridade na fonética dos termos, sendo a nova grafia mero acidente de transcrição histórico (aviso: isto não é um fato; mas teria tudo para ser).
É um vírus oportunista (como advertido anteriormente), que se aproveita da vulnerabilidade do hospedeiro – a sociedade brasileira – e essa vulnerabilidade vem da nossa completa descrença e desrespeito pelo sistema político criado pelas elites nacionais e, por uma questão de recorte histórico, sedimentado nos últimos ~100 anos de história nacional. Mais especificamente, com início da Era Vargas em 1930, passando pela promulgação da segunda Constituição, de 1934 (que fundou várias bases do que chamamos de “democracia” atualmente, como o voto secreto e obrigatório aos 18 anos, o voto feminino, nacionalização das riquezas naturais, bancos e surgimento de outras estatais, e por aí vai…) e, mais tarde, já na Ditadura do Estado Novo (1937 a 1946), autoritário e anticomunista, também moldado por Vargas, que tinha afeição declarada ao Fascismo do ditador italiano, Benito Mussolini.
Vargas é chamado de “pai dos pobres” por seu “departamento de imprensa” (DIP) – na realidade, um gabinete de Propaganda – e o nome até que “pega”, por ser considerado o Patrono dos Trabalhadores Brasileiros (por exemplo: Foi ao fim de sua ditadura que surgiu a nossa CLT). Não é de se espantar, destarte, que admirado por tantos, e com medidas tão populares (mas, também, populistas), seu autoritarismo e repúdio à democracia, enquanto forma de dirimir os conflitos na gestão da coisa pública, não seja lá de grande proeminência em sua biografia de domínio popular. Modo geral, lembramos tão somente do lado frondoso do homem “que cuidou de quem luta dia e noite pelo pão”, e tendemos a minimizar que, antes de 64, a Ditadura já ocorrera por suas mãos…

Este sistema político hodierno, posto à nossa face, emula uma democracia, mas, não chega a ser uma, de fato, porque diante dos anseios e problemas da população comum e sem status ou fama, tal sistema político se nega a realizar qualquer mudança sincera e profunda nas “regras básicas do jogo”. Quando muito, orquestra um espalhafatoso espetáculo de luzes e som, com a intenção de mesmerizar a todos e causar grande estardalhaço; mas, como num truque de mágica, onde o segredo é distrair a plateia para que ela não note o que você faz com as mãos, nossos mágicos políticos terminam sempre por retornar todos os atores e mecanismos para os lugares onde sempre estiveram. Sim Salabim!

O grande segredo é não haver mistério algum…

…diria conhecido compositor

Diante da desesperança e da descrença completa, vários organismos da sociedade – ou seja, seus cidadãos; nós… – ficaram vulneráveis aos mecanismos de sequestro – especialmente, o sequestro intelectual – impostos pelo vírus bolsonarista.

Replicação Viral

A replicação viral do bolsonarismo é centralmente baseada em mecanismos de desinformação (as famosas fake news). O mecanismo é conhecido de longa data pelos Cientistas (políticos), e como propagou Ésquilo – e não um senador estado-unidense (estou num dia de checagem de autorias…) (fonte) – dramaturgo grego:

Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.

A desinformação favorece a família bolsonariae, pois, em uma Era de “pós-verdade” (termo cunhado, em 1992, pelo dramaturgo Steve Tesich), a informação – enquanto compreensão ordenada de fatos – não tem mais credibilidade por si só. Nessa nova Era, é possível “informar” sem aduzir qualquer fato. Mas, para qualquer um com imunidade ao sistema de ataque da família bolsonariae (família de vírus, claro), é óbvio que os fatos importam e que “verdadenão é algo quedepende da visão de quem julga”.
Existe certo e errado, existe fato e ficção, e “fato” não se confunde com “opinião”. E é claro que veículos de informação tradicionais não são isentos de distorção, mas, para isso temos mais de uma fonte de informação, e elas atuam verificando umas às outras, num eterno exercício de vigilância recíproca.

Como bem disse o sagaz Millôr Fernandes:

Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados

Ou seja: O melhor indício de que um(a) jornalista está cumprindo com seu papel Constitucional de vigiar “os poderes” (na verdade, as funções do Poder [que é sempre Uno]) da República, é quando o(a) jornalista é odiado(a) por todos os lados e ideologias. Se um lado sempre bate palma para uma fonte de notícias, sendo este lado situação ou oposição, melhor desconsiderar a opinião dessa fonte, daqui por diante.

Depois da desinformação, e da relativização da verdade, outro mecanismo de replicação utilizado pelo vírus bolsonarista é ligado à ignorância e truculência dos organismos que ele contamina. Quanto mais radical e mais alienado da realidade nacional de desafios, desigualdades, racismos, preconceitos históricos e jamais solucionados pelo Estado-de-faz-de-conta que é a República das Bananas – bioma do hospedeiro-alvo do bolsonarismo: A sociedade brasileira – e quanto mais ignorante do fato de viver em uma sociedade fundada, não na igualdade – com supostamente ordena a Lei Maior – mas, sim, nos privilégios de certos grupos sobre outros, mais eficiente é a acoplagem do vírus bolsonarista às células do organismo agredido, facilitando a replicação do vírus.

Tão logo acoplado, o patógeno sequestra a capacidade de raciocínio, e altera a ordem entre fatos e versões, incapacitando o organismo (o cidadão) de ver com clareza a ordem dos eventos, as relações de causalidade e efeito, e afetando a habilidade de pôr os acontecimentos em uma perspectiva clara e óbvia para qualquer organismo ainda não infectado. Deste ponto em diante, o organismo, tomado pelo agressor viral, passa a ser contaminante para todos ao seu redor, difundindo as mesmas mentiras e ilusões delirantes, fundadas em absurdos completamente esvaziados de lógica e de bom senso; todos esses elementos, fundamentais para a continuidade da infecção e replicação viral bolsonarista.

Portanto, o nosso conhecimento da replicação viral da família bolsonariae, aponta para o fato de que o agressor biológico se beneficia da ignorância de longa data, sempre incentivada pelas condições do bioma (crônico investimento irracional e errático na estrutura da educação pública, alienação proposital e incentivada [“nessa casa não se discute futebol, religião, nem política!”], Coronelismo [o eleitor tal qual gado em um curral, esperando as ordens de seu senhor], Sebastianismo [a crença de que precisamos de uma figura mítica e salvadora para nos livrar de todo o mal], Clientelismo [o eleitor como um cliente do político, a ser atendido e satisfeito, nunca tratado como parte capaz e responsabilizável na construção das políticas e espaços públicos]; todas estas, características históricas em nossa relação com a política nacional).

Patogênese viral

Os sintomas clínicos do organismo contaminado são evidentes, se manifestando com intensidade moderada, a priori, mas ficando extremamente fortes quando na presença de outros organismos infectados. Isto sugere que a carga viral do bolsonarismo cresce em progressão geométrica na presença de 2 ou mais infectados no mesmo espaço, físico ou virtual. Estudos mais detalhados precisarão ser realizados para que se determine se o vírus bolsonarista é “airborne”, ou seja, transmissível pelo ar. Até que estudos conclusivos sejam realizados, sugere-se o afastamento de pelo menos 10 metros, (ou 2 conexões de distância em redes sociais) de qualquer infectado.

Os sintomas típicos são:

  • Clamor por intervenção militar, com alguma variação sugerindo que isso seria “Constitucional” (possivelmente, devido aos delírios induzidos pela forte febre que acompanha o quadro);
  • O uso da camisa da seleção brasileira de Futebol, com o brasão da CBF; entidade que os infectados imaginam ser um símbolo de honestidade e que representa os valores da causa;
  • A embaraçosa relativização dos danos graves e atos criminosos cometidos pelo Pai da família bolsonariae (família de vírus, claro) e todas as demais cepas do bolsonarismo; família esta que está espalhada em outros cargos da política nacional, já em grau de pandemia, contaminando outras partes da fauna que coexiste com nosso hospedeiro (a sociedade), como Polícias e Forças Armadas – mecanismo importantíssimo utilizado pelo vírus na supressão da imunidade inata do hospedeiro, sendo vetor de transmissão perigosíssimo, e que merecerá estudo em separado;
  • O rapto da bandeira nacional Brasileira, como se fosse um símbolo só disponível aos infectados, sendo que a mesma é estranhamente apresentada ao lado de outras bandeiras, com mesmo destaque (quando não, menor do que as demais, ou até mesmo ausente), de nações como Estados Unidos da América e/ou Israel (fica evidente o sintoma de confusão mental causado pelo bolsonarismo: O organismo contaminado se julga mais patriota que os demais, mas se manifesta ostentando bandeiras estrangeiras, num raríssimo caso de esquizofrenia patriótica viral);
  • O uso de falácias como “E o Lula? E o PT?”, “Os cientistas/ONU/NASA/IBGE são de esquerda!”, ou “Morra, comunista!”, quando enfrentados com dados e fatos que não podem ser vencidos pela via da inteligência e racionalidade, mas, tão somente pela força;
  • Agudo desarranjo intestinal reverso, invertendo violentamente os movimentos peristálticos, e fazendo com que o organismo infectado regurgite as próprias fezes enquanto fala; um dos sintomas mais assustadores e chocantes que já se presenciou na história moderna da Virologia.

Enquanto temos conhecimentos de outros sintomas, estes podem ser confundidos com os sintomas causados por outro patógeno (bem mais moderado e infinitamente menos danoso, devemos acrescentar), já que o bolsonarismo não é o único vírus de matriz populista a se aproveitar dos mecanismos de infecção e características de vulnerabilidade da nossa sociedade.

Os sintomas apresentados, acima, de todo modo, são extremamente comuns no organismo infectado com o vírus da família bolsonariae, servindo de baliza para o diagnóstico diferencial clínico e descarte de outras doenças possíveis (anencefalia em idade avançada, possessão demoníaca patriótica, entre outras).

Imunologia Viral

Os organismos que resistem ao bolsonarismo e todas as suas variantes, – sejam elas a estupidez, a ignorância, a ideia alucinógena de superioridade baseada em fato algum, a produção e propagação de desinformação(…) – apresentam algumas características relativamente comuns ao grupo de organismo com imunidade congênita presente:

  • Educação e respeito pelo próximo, ainda que diante de discordância de grande porte;
  • Capacidade, acima da média, de separar “fato” e “opinião”;
  • Consciência inequívoca de que ditaduras sempre dão certo porque mentem o tempo todo, e nunca permitem que seus opositores sobrevivam;
  • Educação moral e formal para entender a realidade por um prisma não-fantasioso e não-mágico (e.g.: não, armar o brasileiro em seu atual grau de civilidade e respeito ao próximo, não é uma prioridade de um governo de gente normal);
  • Profunda descrença em “salvadores da pátria” e “figuras míticas”, por terem consciência de que pessoas não salvam um país, mas instituições fortes e que não podem ser facilmente raptadas por golpistas e estelionatários são a verdadeira chave do sucesso das grandes nações;
  • Consciência plena de que o bem mais importante que alguém possui é a própria vida e que, subtraído tal bem, este é insubstituível e, daí em diante, nada mais importa; nem sociedade, nem lei, nem economia, nem igualdade, nem merda nenhuma.

Epidemiologia

Depois de um relatório tão perturbador, nossa pesquisa nos leva à boas e más notícias.
A boa notícia é que o R-zero do bolsonarismo apresenta forte descenso. O número de novos contaminados vem em franca queda, e o vírus começa a demonstrar característica de nicho, atacando somente regiões e populações naturalmente propensas à ignorância e truculência, sendo que já vemos um certo platô de contaminados em cerca de 30% da população. Considerando os números anteriores, essa parece uma reação animadora e que nos dá alguma esperança de convalescença do hospedeiro – a sociedade brasileira. O prognóstico, se mantidas as atuais variáveis, é muito positivo, com recuperação mais tardia a ocorrer em janeiro de 2023. Convém, porém, observar os sintomas até outubro de 2022.

Pois,

O preço da liberdade é a eterna vigilância…

…como disse Thomas Jefferson.
Outra boa notícia é que os organismos sobreviventes e curados passaram a recobrar a capacidade cognitiva depois da fase rara de “coma de olhos abertos” que enfrentaram. São comuns os relatos de volta da percepção da realidade, o fim dos delírios, e surpreendentemente, muitos admitem que passaram a reconhecer que militares não são melhores, nem piores do que o resto da sociedade. Afirmaram, ainda, que militares são pessoas comuns, que usam farda, tem um preparo específico, mas, não tem nenhuma qualidade adicional por causa disso. Prognóstico animador, dado o retorno da habilidade de constatar o óbvio!
As más notícias ficam com a piora aguda do quadro de saúde da democracia. Este sistema é dependente direto do hospedeiro – a sociedade – e se o hospedeiro adoece, a democracia também. É confusão comum nos recém-iniciados em biologia política (só para constar, isso não existe…) pensar que a democracia faz a sociedade, mas é o exato oposto. Da mesma forma que um pedaço de papel não obriga ninguém a ficar em casa, um país não pode ser democrático se seu povo não quiser que seja, e é tolice pensar diferente.

A profilaxia recomendada diante desta epidemia é lavar sempre as mãos e não acreditar em nada que você receba por Whatsapp, Instagram, Facebook, Twitter… Procure se manter próximo a mais de um (idealmente, pelo menos 3 [três]) veículo de informação tradicional, como forma de validar a informação recebida em mais de uma fonte. Nunca confie em canais de comunicação oficiais do governo, porque eles não fazem notícia, fazem Propaganda; e a diferença entre os dois tipos de comunicação é brutal.

Também, é política de prevenção recomendada, ser intolerante com os infectados exibindo sintomas de intolerância. Não é preciso descer ao nível de baixeza e desumanidade deles, mas basta não continuar a conviver com esse tipo de infectado, dado que as chances de cura deles são baixíssimas, enquanto as chances de que você acabe contaminado são enormes.

O esquema de vacinação para se prevenir contra o vírus é até simples: Doses cavalares de realidade obtida por fontes confiáveis e jamais por redes sociais; procurar os fatos antes das opiniões; não se permitir guiar por pessoas que despejam ódio e retratam compatriotas como seres inferiores, seja porque são mulheres, gays, negros, ou “comunistas”; exercício da capacidade de análise crítica, sem jamais aceitar soluções simples ou milagrosas para problemas complexos e de longa data; a solução virá pela decantação das instituições, e não pela força estúpida de projetos mentecaptos de ditaduras e supressão de direitos.

Eu, pessoalmente, fui além da sugestão e adotei a intolerância para com os intolerantes, como me pediu Karl Popper, e estou em lockdown contra bolsonaristas trogloditas e ignorantes, mantendo o contato somente com aqueles que ainda apresentam alguma racionalidade – na esperança de ajudá-los a vencer a doença com a qual se deixaram contaminar.

Todo cuidado é pouco, pois, se eu vacilar, posso acabar sentado à mesa com outros dez incautos e que não querem se posicionar com clareza em favor da democracia, e contra o fascismo crescente, por medo de “perder a amizade”; e aí, vem um bolsonarista estúpido, senta-se conosco e, pronto: Agora somos onze bolsonaristas estúpidos, defecando pela boca, num piscar de olhos.

Um dos mais tristes fins que alguém pode ter…