Zanin, o Barbinha e a jambrolhada na República

(foto: Ricardo Stuckert/Divulgação PT)

Primeiro: Se você não faz ideia do que esse título significa, você anda menos nas redes do que eu…

Em outubro de 2022, meu último post por aqui dizia assim:

[…]Não tem nada a ver com concordar com Lula, para um enorme número de eleitores a votar 13, hoje. Eu me incluo nessa lista. Se Lula vencer, estou na oposição democrática a ele, já em 1 de janeiro[…].

Venho, pela primeira vez, de lá pra cá, cumprir a promessa. E não é que o atual presidente não tenha me dado outras chances nesses seis meses do novo governo. Teve a bobagem com o BC e seu presidente; teve o lance com Maduro, semana passada; teve a desnecessária fala sobre a Ucrânia ser tão culpada quanto a Rússia pela guerra… Enfim… Teve e tem bastante para criticar. Mas, é bom também dizer: exceção à fala sobre Maduro, que considero inadmissível para quem quase viu a democracia brasileira acabar num autogolpe (como aquele dado na Venezuela), o resto das falas são questões de política, visão de mundo, estratégia de governabilidade e, enfim… Todas elas – exceção à fala sobre Maduro, repito – têm uma boa carga de subjetividade no apoio ou na crítica. Não são preto ou branco, mas bem mais uma escala cinza de nuances e conjunturas. Eu conseguiria discutir todas. E isso deveria ser normal numa democracia.

Contudo, não percarmos tempo. Vamos ao tema que quero tratar hoje: Zanin, a indicação para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e a porrada de Lula em conceitos básicos ao redor do fato do Brasil ser uma República; o que isso significa ou deveria significar.

Como eu também disse em meu trabalho de conclusão de curso,

[…]Faz diferença saber o que separa ‘democracia’ de ‘república’ (questão que, deve-se reconhecer com pesar, muitos acadêmicos do Direito não sabem discernir)?[…].

Pois é… Como nem os acadêmicos de Direito, em sua larga maioria, sabem, de pronto, responder com clareza sobre a diferença entre “democracia” e “república”, acho que vale a pena pôr um tempo nisso, outra vez (deve ser a décima vez que falo o que faz uma democracia ser democracia e a terceira ou quarta sobre o que é uma república).

“Democracia” é o um sistema de regulação do poder estatal, dentre três possíveis na tipologia clássica (somado às monarquias absolutistas e oligarquias, conforme esquematizou Noberto Bobbio), em que o povo, composto daqueles aptos à cidadania (direito de votar e ser votado), escolhe seus representantes para regular e “dar vida” ao Estado (exemplos de “vida”: executar obrigações estatais, fazer cumprir as leis, criar mecanismos de controle e correição, atingir os objetivos e ideais constituintes etc.). Espera-se que esse sistema vise ao menos a três pilares básicos: “liberdade”, “igualdade” e “dignidade”, que se traduzem em garantias de liberdades individuais, garantias contra o mau uso dessas liberdades e garantias da efetiva participação popular na formação da vontade política estatal.

(excertos, com ajustes, do meu TCC).

Já, “República” é outra coisa, não podendo ser sinônimo de “Democracia”. Conforme esclareceu Gisele Leite, em artigo de sua autoria no Jornal Jurid de 2020:

[..]A República tem em sua alma uma disposição ao sacrifício proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular.

Prevalece na temática republicana a noção de dever. Numa autêntica república não pode haver distinções entre nobres e plebeus, entre poderosos e humildes.  A noção de república não é compatível com os privilégios de nascimento, foros ou situação e nem se aceita a diversidade de leis aplicáveis aos casos substancialmente iguais, as jurisdições especiais, as isenções de tributos comuns, que beneficiem grupos sociais ou indivíduos, sem aquela correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida e a desigualdade de tratamento em razão desta conferida.

Enfim, a República tem com bandeira inexorável a exclusão do arbítrio no exercício do poder.[…]

Gisele Leite (link acima)

Não é preciso melhor explicação no tema. A República é uma forma de organização do Poder estatal que se opõe, por exemplo, às Monarquias, onde o Estado existe sob a batuta de um monarca (nos casos absolutistas) ou, ao menos, existe devido à graça e permissão deste (narrativa que se faz nos casos de monarquias democráticas). Já a Democracia é o sistema pelo qual se constituem aqueles que darão voz e braços ao Estado (seja ele um Estado republicano [EUA] ou monárquico [Espanha]).

A Inglaterra é uma monarquia democrática (especificamente, parlamentarista). Brunei ou a Arábia Saudita são exemplos de monarquias absolutistas nos dias de hoje: o povo não escolhe nada por lá, no que diz respeito a quem comanda e coordena o Estado. Finalmente, o Brasil é uma república democrática, enquanto a Venezuela é uma república (pois o Estado não existe pela concessão de um monarca ou de sua linhagem real) totalitarista e, portanto, não-democrática (pois o Estado não é livremente formado pela vontade popular, posto que a oposição política ao ditador Nicolás Maduro é fortemente atacada por aquele Estado; Estado que este ditador controla por inteiro).

Pois bem, após esta longa introdução, o que a indicação do advogado Cristiano Zanin Martins ao cargo de ministro do STF, por vontade do presidente Luís Inácio Lula da Silva, 39º presidente da República Brasileira (inaugurada em 1889 com o golpe militar contra a Monarquia de Pedro II), tem a ver com jambrolhar a República do Brasil?

Tem tudo a ver.

Como acabamos de ler, “A República tem em sua alma uma disposição ao sacrifício proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular. […]”.

E aqui é onde, geralmente, quem não sabe interpretar os sistemas jurídicos contemporâneos coloca os pés pelas mãos. Acontece com os bolsonaristas gritando “liberdade acima de tudo!”, acontece com os lulistas gritando “é competência privativa do presidente indicar quem quiser para o STF!”.

Ambos os “times” estão repletos de idiotas, alucinados e histéricos (claro: um deles tem mais disposição a atirar em mim. Detalhes…). Gritam “lálálá” enquanto tampam os ouvidos da alma para qualquer fala apontado os ÓBVIOS erros (quando não, crimes) de seus deuses vivos.

Para que uma democracia funcione, nenhum direito, prerrogativa, ou o raio que o parta, podem ser absolutos.

Nem mesmo o direito à vida é absoluto no sistema legal vigente no Brasil (e no mundo ocidental, me arrisco). Se fosse, não haveria a hipótese em Direito penal da excludente de ilicitude chamada “legitima defesa”, só por exemplo. Se a vida é um direito absoluto, ninguém, em nenhum caso, pode tirá-la do indivíduo. Não haveria, igualmente, qualquer espaço para se discutir a legalidade do aborto ou da eutanásia. Então, não: não há direitos, prerrogativas, raios que o partam […] absolutos, em uma democracia saudável. Não pode haver nada absoluto. Tudo requer contexto e interpretação.

Igualmente, uma república exige a supremacia do bem comum por sobre QUALQUER desejo particular. A resposta de porquê a escolha de Lula ataca a República do Brasil já está aqui. Mas vamos mais um cadinho, porque este blog não é conhecido pela brevidade, e certas tradições precisam ser mantidas.

O que diz a bendita da Constituição de 1988?

A resposta *parcial* está no artigo 84, inciso XIV da CRFB/1988. Leiamos juntos:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[…]

XIV – nomear, após aprovação pelo Senado Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, os Governadores de Territórios, o Procurador-Geral da República, o presidente e os diretores do banco central e outros servidores, quando determinado em lei;

Pois bem, então, já sabemos que tal prerrogativa não é absoluta. Como propôs a clássica teoria de Montesquieu em “O espírito das leis”, acerca da organização do Estado democrático e seus Poderes, é preciso que haja freios e contrapesos entre as repartições que compõem o Poder do Estado (Poder que é sempre uno; o que se repartem são suas funções, não o Poder em si). Vemos, aqui, claramente, um dos freios à prerrogativa do presidente, por força do art. 84: para que possa nomear um ministro ao STF, seu indicado precisa ser aprovado pelo Senado Federal, uma repartição do Legislativo nacional (sendo a outra a Câmara dos deputados; as duas repartições, juntas, formam o Congresso Nacional. Tudo isso é o Legislativo brasileiro – mais órgãos auxiliares como, por exemplo, o TCU).

É claro que, fosse a sabatina do Senado Federal brasileiro algo sério, este post jamais precisaria ser escrito. Lula indicaria seu nomeado de coração, o Senado Federal sabatinaria o(a) candidato(a) ao STF “pra valer”, sem combinar perguntas, sem adiantar pautas, jogando pesado (mas lealmente), e teríamos somente indicados realmente capacitados – ao menos no que tange ao conhecimento jurídico – passando pelo crivo do Senado Federal. Candidatos fracos seriam barrados.

Acontece que esse é o mundo real da política brasileira. E nesse mundo real, os freios e contrapesos foram jogados fora, pouco a pouco, curva a curva, desde o início da viagem da nova República – viagem inaugurada com a Constituição de 88. Hoje, com a República na banguela, quase não há mais freios ou contrapesos para proteger o Estado (republicano) democrático de direito do Brasil, dos ataques de seus abusadores e usurpadores. Portanto, o jogo é de cartas marcadas. Zanin passará pela sabatina sem qualquer problema porque Lula já avisou Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, e esse já sinalizou que está de acordo. E tudo vai acontecer como se discutiu nos corredores e gabinetes, muito longe das luzes da imprensa e do ar puro da luz do Sol.

Discuti, ao longo dos 4 anos de Bolsonaro, que nada favorece mais a corrupção do que a escuridão, os conchavos, as conversas de pé de ouvido, os sigilos de 100 anos em documentos e atas. Bolsonaro abusou de tudo isso, mas ele não inventou nada disso. Isso é o modus operandi prevalente na política nacional brasileira desde… Sempre? Não sei. Acho que sim.

Mas, o que mais? O art. 84 da CRFB encerra a discussão? O presidente nomeia, o Senado sabatina, todo mundo se abraça, bora de camarão e champagne pagos pelo erário pra comemorar a nomeação e um “viva” à República?

Não.

A execução pode ser horrível, amadora, desprezível. Pode até nos dar ódio e nojo – emprestando Ulysses sobre a ditadura – mas, o texto constitucional não é frívolo, tampouco foi desenhado para ser essa piada. Pelo contrário: com todos os defeitos de sua verbosidade, de sua tentativa de prever, antever e regular tantas áreas da vida social dos brasileiros, o texto da CRFB de 1988 acerta mais do que erra.

A Constituição reserva somente aos brasileiros natos (aqueles previstos no rol do art. 12, inciso I) os cargos de ministro do STF (dentre outros), conforme se lê ao §3º deste art. 12, inciso IV. Mais uma vez, a prerrogativa do presidente em nomear ministros ao STF (e tantos outros cargos) não é absoluta ou ilimitada. Lula não poderia indicar – só por exemplo – seu grande amigo malcompreendido, vítima de narrativas, Nicolás Maduro, ao cargo vago na Suprema Corte brasileira, mesmo que este amigo se naturalizasse.

Adiante, no art. 101, caput (caput é a “cabeça” do artigo, o texto logo após a sua numeração), a Constituição assim determina:

O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.”.

Chamo atenção para a expressão “notável saber jurídico“.

Coração aberto, aqui e agora: vamos parar com a palhaçada de defender uma certa superioridade de valores e até de virtudes na falsa modéstia? Já deu, não acham? O Brasil vai de mal a pior, toda vez que a sociedade (ou sua parcela mais estridente) classifica de “arrogância” elencar a capacidade das pessoas (aos cargos ou funções) com base no que elas fizeram antes e o quanto estudaram. EU SEI… Eu sei… É um país extremamente desigual. Geografia é destino (no sentido de sina). Cor de pele é privilégio. Gênero é oportunidade. Eu concordo com tudo isso e poderia ir além. Mas vamos parar com a hipocrisia de dizer que se o dinheiro fosse nosso, e a empresa fosse nossa, nós contrataríamos o marreteiro para presidente dela, só porque seu coração é bom e puro, e ele tem humildade em seus atos e palavras, pode ser? E advinha: A PORRA DO DINHEIRO É NOSSO. A empresa chamada “Estado (pepublicano) democrático de direito do Brasil” é nossa. É nosso país. O Estado é nosso (porque isto é uma República, não uma Monarquia).

Então, se você consegue, sem hipocrisia, contratar alguém sem qualquer competência demonstrada para o cargo de presidente da sua empresa, onde você pôs todo seu dinheiro e seus sonhos, ok, você é doido(a), mas eu respeito seu direito de dizer que é arrogante classificar as pessoas pelas suas competências acadêmicas e/ou profissionais, diante de uma vaga aberta. Todos os demais e que não fariam isso com suas propriedades e recursos, são hipócritas ao sustentar esse tipo de argumentação.

E COMO DIABOS isso se conecta com o tema em discussão?

Ah, sim! O caput do art. 101: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.”

Qual o notável saber jurídico de Zanin?

Vamos consultar o lattes do Zanin: http://lattes.cnpq.br/0086757459598076

Não tem mestrado em Direito. Não tem doutorado em Direito (logo, doutor ele não é [sou o tipo de zagueiro que não perde a viagem]). Tem uma produção minúscula de artigos científicos, participação tímida em literatura da área. E advinha? Quase tudo que produziu, produziu APÓS se tornar advogado de Lula (em 2013).

No entanto, se formou em Direito em 1999. Ou seja: o conteúdo que produziu, não produziu porque era um estudioso do Direito brasileiro. Produziu porque ficou famoso. E famoso, ganhou convites que não teriam vindo antes da fama. Claro: esta análise não é uma sentença sobre a qualidade do trabalho acadêmico-científico produzido por Zanin. Pode ser bom ou ruim; só lendo para saber. Mas se “qualidade” não se confunde com “quantidade”, “constância” é medida do quanto o indivíduo se dedica ao estudo técnico, acadêmico, científico da área em que se formou. E Zanin passou 13 anos entre sua formatura e alguma produção acadêmica para área. E só produziu – tudo indica – porque se tornou “o advogado de Lula”. E isso ajuda a vender livros.

Pergunta: isso, de algum modo – qualquer que seja – se assemelha com a expressão “notável saber jurídico” para você? Para mim, de nenhuma maneira.

“Ele venceu a Lava Jato” … É? Como diz o Medo e Delírio em Brasília: “grandes merdas ser adevogado” … O que se traduz aqui como “não fez mais que seu trabalho”. Eu sou um profissional de TI. Eu não sou um cientista da computação. Eu não crio conteúdo que leva a área para o próximo degrau do conhecimento humano. É desse tipo de gente, no Direito, que o art. 101 da CRFB estava falando.

Mas, Lula é reincidente nesse pecado. Sua outra indicação em 2009, Dias Toffoli, até reprovado na faculdade foi, como comentou seu professor à época de sua passagem pelo Largo São Francisco. Igualmente, Toffoli tinha um currículo acadêmico pífio quando da sua indicação, a não ser por ter ingressado na prestigiosa Universidade de São Paulo. Até hoje, Toffoli não se deu ao trabalho de criar um currículo Lattes, passo zero para quem deseja pesquisar e produzir conteúdo científico “à vera” no Brasil. Pior do que Zanin, todas suas contribuições vêm DEPOIS de ter sido indicado ao STF. O verdadeiro mérito de Toffoli era ser, à época, “advogado do PT” – é o que fica parecendo, pelo menos. Toffoli, dono de trapalhadas terríveis como ministro. Toffoli, que prefere chamar 1964 de “movimento”.

E a Zanin parece bastar ter o mérito de ter livrado Lula de sua condenação, toda eivada de abusos por parte de seus algozes, o então Juiz Federal, Sérgio Moro e, o então Procurador, Deltan Dallagnol.

Para Lula, o requisito constitucional de “notável saber jurídico” é desprezível. Ele não disse isso. Suas ações dizem por ele.

E eu poderia construir um argumento de que isso é espelho de Lula, que se orgulha de seu próprio passado acadêmico praticamente inexiste e, não obstante, seu estrondoso sucesso político – algo que já nos lembrou, contente, tantas vezes em sua retórica.

Mas, eu também acho essa construção um tanto quanto idiota, porque não existe faculdade de política brasileira. Existe faculdade de Ciências Políticas. Ou seja: ser político(a) não é uma atividade absolutamente científica. É preciso dominar argumentação, ter carisma, é preciso saber fazer alianças, saber a hora de falar grosso e de afinar. Esses conhecimentos não são científicos.

Lula é um “animal político”, no sentido de que instintivamente, e por suas vivências na época dos sindicatos, ele sabe – como poucos – jogar esse jogo.

CLARO: Na empresa chamada “Brasil”, em que sou acionista, ele não seria o presidente, se dependesse só de mim. Como, no entanto, os demais acionistas desta empresa me emparedaram entre Lula e Bolsonaro, ficou fácil demais votar 13. Nem tive que pensar. Um bloco de concreto e Bolsonaro me fariam votar no amistoso objeto inanimado, sem dúvidas e igualmente.

E acabou?

Não. Lula reincide no “crime” de jambrolhar a República, mas não foi sempre assim.

Lula foi responsável por indicar Joaquim Barbosa ao Supremo. Um dos melhores ministros que eu conheci, até aqui. O Lattes do – este sim – doutor Joaquim Barbosa não deixa dúvidas de que este homem construiu para si “notável saber jurídico”. Veja aí: http://lattes.cnpq.br/4175519745828769 . As teses jurídicas de Joaquim sempre tiveram começo, meio e fim. Sua condução como ministro do Supremo, em especial à frente da Ação Penal n. 470, foi irretocável.

Você não é obrigado a gostar do ex-ministro Barbosa. Não estamos falando de Big Brother aqui. Estamos falando da Suprema Corte do país. O órgão de cúpula da justiça nacional. O GUARDIÃO da Constituição de 1988. Não cabe a nenhuma outra repartição do Poder do Estado brasileiro a interpretação final e máxima do texto constitucional forjado em 88.

Então, senhoras e senhores, na hora de escolher os 11 guardiões do sagrado texto constitucional que encerrou a desgraça da ditadura militar, exijo, como acionista do Brasil, o máximo respeito com aquele manto sagrado. O respeito não é devido à pessoa que veste a toga. O respeito é devido ao cargo que ela ocupa, passageiramente, e somente pela graça do povo brasileiro, que assim permitiu (pois é assim numa república, como seria pela graça do rei ou rainha numa monarquia).

Agora acabou, né?

Ainda não. Vamos visitar mais um artigo fundamental na CRFB/1988 para entender porque Lula merece todas as vaias ao indicar Zanin para o STF.

E o artigo derradeiro é o art. 37. Vejamos apenas o caput dele (porque esse bicho é extenso):

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […].

Pois bem. A administração pública de QUALQUER dos Poderes da União OBEDECERÁ aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Isso aqui é pergunta clássica de OAB e Direito administrativo, só pra constar.

Não vou comentar cada um dos princípios, mas você meu caro (e cara) leitor (e leitora) precisa saber do básico: Princípios, no mundo do Direito, são LENTES. Lentes pelas quais enxergarmos e interpretamos o mundo jurídico e as leis que nele habitam. Princípios são valores tão fortes que podem determinar a inconstitucionalidade de leis aprovadas pelo Poder Legislativo. Princípios podem dobrar a legalidade formal e material de um texto legal (ou seja: mudar o valor semântico da redação legal, sua aplicação e seus efeitos). E é por isso que eu disse que os alucinados e histéricos são incapazes de corretamente interpretar a Lei. Embora elas devessem – idealmente – ser escritas de modo que qualquer um pudesse entendê-las, não é assim que o Direito funciona. Nem aqui, nem em lugar nenhum. Você acha que passamos cinco anos na faculdade lendo o que está na Lei, memorizando as palavras e é isso? Se fosse, não seria preciso advogados, juízes, promotores e, em última análise, não seria preciso repartir o Poder do Estado na sua função Judiciária. Era ler e aplicar.

Não, não se lê uma lei, muito menos um artigo, de forma isolada. Não se lê um dispositivo legal sem considerar o que comanda a Constituição daquele país. A nossa ainda é concentrada em um único diploma. Há países em que não há Constituição escrita e ainda assim ela existe, esparsa e dispersa em vários lugares: alguns de tradição escrita, outros, de tradição falada (oral). Enfim. Acho que dei a carga de entendimento necessária ao que é um princípio jurídico. Vou explorar dois do art. 37, caput:

Começando pelo mais fácil de explicar e elucidar: o princípio da Impessoalidade. A impessoalidade é um princípio óbvio – ainda assim, tão vilipendiado – à proteção da República. “República” vem de “res pública”, ou “coisa pública”. Tudo que o Estado brasileiro compra, faz e tem é de todos nós. Todos nós somos donos do Estado e, ao mesmo tempo, nenhum de nós, individualmente, pode ser dono dele.

Para que o cuidado com a coisa pública seja sempre o maior, todos precisam sentir e agir como se os bens do Estado fossem de sua propriedade privada. Você não permitiria que alguém pichasse o muro de sua casa, por que permitiria que pichem o muro do posto de saúde? Ao mesmo tempo, todos que estão diretamente administrando a coisa pública (comprando cadeiras, pagando profissionais, executando serviços etc.) têm que se pautar pela impessoalidade. Não é, *nunca*, uma questão de “o que é melhor para mim, o diretor da escola”. É sempre uma questão de “o que é melhor para aquela escola e sua comunidade lindeira, no hoje e no amanhã, especialmente quando eu não mais for o diretor deste estabelecimento?”. Isto é a impessoalidade.

Não faço o que me parece melhor. Não faço o que me favorece privativamente. Não faço o que é “mais do meu gosto”. Faço aquilo que, dentro das minhas capacidades cognitivas, parece ser o melhor para o Estado e para a sociedade que autoriza sua existência. Não preciso ir além disso para dizer que indicar o próprio advogado é TUDO, menos impessoal, certo? “Ah, mas os outros antes de mim também o fizeram!”. Já pensou se todo assassino pudesse sair impune ao dizer para o juiz que só matou porque outros mataram alguém, antes d’ele “aderir à moda”?

O segundo e último princípio que quero abordar é o da Legalidade. Não falarei da Moralidade por motivos de que é um princípio autoexplicativo.  MAS, deixo um pensamento que não é meu, mas que ilustra esse princípio automaticamente:  E se fosse Bolsonaro indicando o Wassef? Pronto, você já sabe o que tem que saber sobre Moralidade.

Legalidade, então:

A administração pública deve se pautar pelo princípio da Legalidade. Legalidade, aqui, não é a legalidade do “posso tudo que a lei não limita ou proíbe”, que é a leitura que todo cidadão tem o direito de fazer. Ou seja, se a lei não te proíbe de fumar na rua, você pode fumar. Mas se ela te proíbe de fumar num espaço fechado ou coberto, então, seu direito de fumar está temporariamente suspenso. Não é assim para o princípio da Legalidade no Direito administrativo (que é o ramo que se aplica ao Estado e seus servidores).

A Legalidade, aqui, é a Estrita Legalidade. Porque o Estado é naturalmente dotado de poderes infinitos e porque pode esmagar a todos nós (como bem retrata Hobbes em “Leviatã”), criou-se o conceito do Estado de direito, em contraposição ao Estado de exceção. O Estado de direito é aquele que se limita – especialmente no que tange ao uso de seus poderes – pelo que a Lei expressamente prevê e delega ao Estado e seus órgãos.

Porque exemplos sempre ajudam: Talvez, seja de extremo mal gosto pintar a fachada de uma casa com o uso de cores berrantes ou que piorem a iluminação da área ao redor. Mas porque não há lei que proíba o uso de tais cores na pintura da casa, o Estado não pode ordenar que a polícia (um de seus braços que garante a execução da Lei) vá até sua residência e confisque as tintas ou te force, sob porrada, a pintar de branco ou outra cor.

Outro exemplo: o Estado constitui as forças armadas para garantir sua soberania, mas o presidente, seu comandante-em-chefe (art.84, inc. XIII), não pode enviá-las para atacar os países vizinhos só porque hoje parece um bom dia para isso. Para empregá-las, ele precisa passar pelo crivo do Congresso Nacional (mesmo art., inc. XIX). Então, mesmo que ele seja “o comandante supremo” (como diz o texto constitucional), não é assim tão “supremo”. Nem poderia ser, sob o risco de entrarmos em guerra por meros caprichos insanos de um dado mandatário, a qualquer altura da história nacional. Assim, o princípio da Legalidade diz que o Estado, suas repartições de Poder e todos aqueles operando a maquina estatal, só podem fazer aquilo que a Lei os permite, e tem o dever de fazer aquilo que a Lei comanda. Nem mais, nem menos.

A Lei Magna ordena que o ocupante do cargo de ministro do Supremo tenha “notório saber jurídico”. Lula, flagrantemente, está cuspindo – de novo – nesse comando constitucional. É bom que se diga: não foi, nem de longe, o único a fazer isso, não será o último a fazer isso; mas nem por esses motivos deixa de ser menos errado ou menos agressivo à instituição “República do Brasil”.

Por tudo isso, este é mais um erro grosseiro de Lula. E me apoderando de uma vírgula do Medo e Delírio em Brasília: Não vou esquecer disso, jamais! Continuando nessa toada, só me resta esperar que em 2026, os outros acionistas me deem uma opção melhor do que me deram em 2022. Repetindo o páreo, eu já disse: até o bloco de concreto levaria.

O fim de um ciclo acadêmico, o início de outros…

Ontem, dia 28 de março de 2023, houve a cerimônia de colação de grau para os bacharéis formados em direito pelas FMU (SP). Eu optei por não participar da festa, mas, de todo modo, essa data oficializou o fim de um ciclo importante e também tenso: quando iniciei esta jornada, em janeiro de 2018, eu não fazia ideia do que estava por vir, nem sabia se eu aguentaria até o fim. Talvez, eu não desse conta de performar em uma empresa como a minha e estudar uma faculdade temida por muitos, especialmente pelo volume de leitura. No fim, eu sinceramente não tive grandes dificuldades, nem com um, nem com outro, nem tanto porque eu seja extraclasse, mas bem mais porque os comentários das pessoas a respeito da dificuldade do curso são relativamente exagerados. Idem quanto ao exame da Ordem – mas isso fica pra outro dia.

Na verdade, diante da cerimônia de colação, que confere o grau de bacharel ou bacharela, me resta pensar no caminho até aqui, concluir que só sei que nada sei, e seguir estudando. Queria, contudo, após um longo hiato sem publicar nada por estas bandas, compartilhar meu trabalho de conclusão apresentado no nono semestre (sim, as FMU reservam o décimo para… sei lá) e que, apesar dos pesares, foi um trabalho que fiquei muito contente em pesquisar e redigir.

Originalmente, minha expectativa era poder produzir uma monografia de 60 a 80 páginas sobre a relação entre o contemporâneo Estado brasileiro e “igreja cristã”, juntando todas as denominações não tradicionais/históricas e que seguem os preceitos de Jesus Cristo (por ser esta a maior religião em número de adeptos brasileiros).

Desde meu ingresso na faculdade, o interesse sempre foi no direito público, na teoria do Estado, e nas matérias de (direito) Constitucional e Eleitoral. Parece oportuno lembrar que o curso de direito é uma área aplicada da sociologia (como a informática está para a matemática, ou a medicina para biologia). Por esses motivos, e vendo os movimentos iniciados ainda ao fim da constituinte de 1988 – como narra maravilhosamente bem o Ricardo Mariano em “Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil” – e acelerados nos mandatos de Dilma (sumarizados nas figuras de parlamentares como Marco Feliciano e Eduardo Cunha, para citar dois), eu sempre acreditei que a reorganização da política brasileira seria turbulenta e com perigos de radicalismo no horizonte por conta da própria hermenêutica (interpretação) que os agentes religiosos fazem da sua fé, do mundo, da sociedade e de tudo o que mantém esses outros aspectos interligados.

Mas, diz o ditado que “o homem planeja e Deus ri” (esse ditado, eu uso muito por aqui)… A minha alma mater mudou as regras para a elaboração do TC durante o meu tempo de curso, e de uma monografia (um tipo de trabalho mais robusto e mais longo), fomos para a produção de um artigo científico (normalmente limitado a duas dezenas de páginas de conteúdo). Isso inviabilizou dar o tipo de profundidade na discussão que eu tencionava.

Houve, então, um redesenho de tema: durante a elaboração do projeto de pesquisa, eu optei por apresentar razões – de maneira concisa – para o desencanto e o estremecimento das democracias liberais do ocidente e comentar, em breve passagem, os mecanismos que a CRFB/88 apresenta para tentar combater essa cisão entre cidadão e Constituição.

Não foi nada fácil. Eu mal pude adentrar nas várias obras de sociologia e ciência política que tive a satisfação de ler e, como eu argumento na introdução do TC, mesmo quando finalizado, o trabalho se mostrará incompleto, insuficiente diante do desafio abordado. Ainda assim, sua validade – arrogantemente alego – parece estar no fato de servir como um guia bibliográfico, com alguma revisão e crítica de obras que apresentam os desafios, os diagnósticos e – nas mais ousadas – algumas soluções.

A crise nas democracias liberais não é um assunto exatamente novo. Desde o início dos anos 2000, com especial recorte na crise financeira de 2008, as sociedades que adotaram democracias liberais parecem convulsionar com seu próprio sistema de governo de suas Repúblicas. E nunca parou: quando conclui o TC era impensável, para autores vigiando democracias ocidentais, que Israel estivesse a beira da transformação em uma teocracia (um governo de orientação religiosa), e que a aliança a governar o país fosse basicamente de extremistas da Direita fortemente ligada a radicais da religião. A ironia da história não cansa de se repetir – agora, na versão de fascistas israelenses (se tem dúvidas do fascismo, sugiro ler o que Itamar Ben-Gvir tem sugerido fazer com os árabes na região); logo eles que tanto sofreram com isso, não faz tanto tempo…

Bem, certamente, quando chegar a hora de pensar em um mestrado a teoria de Estado e os estudos voltados as problemáticas da Religião e Estado, bem como as teses da suposta e inexorável secularização deste último (que, agora vemos, não é tão inexorável assim), voltarão a ocupar minha atenção acadêmica. Por ora, só o que tenho a oferecer como forma de comemorar esse ciclo é compartilhar o PDF do meu trabalho de conclusão (que foi bem além das 20 páginas [com autorização do orientador, claro], mas bem aquém das 80 sonhadas) e torcer que ele possa ser interessante para você, no caso do assunto “A DEMOCRACIA BRASILEIRA, A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE E OS MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO DIRETA E SEMIDIRETA” te interessar.

Grande abraço! (ah! porque eu sei que você pode vir a ter a curiosidade: não sou advogado. Advogado(a) é só quem está inscrito na OAB, e embora eu tenha passado no Exame XXXIV, no começo de 2022, eu ainda não decidi se quero pagar a Ordem todos os anos, sem uma real intenção de exercer a profissão. Quem sabe? 🙂 ).