O Brasil, o terrorismo e os espectros

Imagem: Ton Molina/AFP, disponível em O TEMPO.

Terrorismo

Em 2014, durante a Copa FIFA no Brasil, a minha empregadora deu camisas oficiais da seleção canarinho para todos os funcionários. Foi um belo gesto e um belo presente. Mas, se eu já fazia ressalvas à camisa da seleção desde os idos de 2018, o último 8 de janeiro de 2023 veio para sepultar qualquer chance de eu vestir essa camisa no futuro. Ela se tornou um símbolo de tudo o que mais desprezo: estupidez, covardia, golpismo, fascismo… Interrompo a lista, por contenção. Por isso, a camisa foi para a caixa de doações. Não que eu ache que os menos afortunados deveriam ser confundidos com quem veste essa camisa para praticar barbárie. É muita humilhação com gente já marginalizada. Mas entre a doação e o lixo, acho que ela ainda pode servir melhor no primeiro grupo.

No “mundo líquido” de Bauman, as palavras também têm perdido a substância e o sentido original, numa velocidade assustadora. Na política brasileira, então, esse esvaziamento de sentidos é notório e pré-data a era digital, ou seja: não foi ela que forçou o esvaziamento dos sentidos dentro da vida política.

Há muito, eu crítico a Esquerda brasileira pela falta de zelo com as palavras. Foram seus atores que esvaziaram o sentido de “fascismo” e “fascista”. Quando todos são, ninguém é. E os representantes desta Esquerda usaram e abusaram da “licença político-poética” de empregá-la. O resultado, tal qual a fabula de Pedrinho e o Lobo, foi que quando o termo realmente precisou ser empregado para alertar o povo do que estava por vir, ninguém mais se importava com o peso e o alarme nele contidos.

Outra palavra bem surrada é “terrorismo”. Desde 2001, pelo menos, o terrorismo está em todo lugar. Existia antes, mas virou vírgula depois das Torres Gêmeas novaiorquinas. Então, como eu já comentei sobre as 14 características do fascismo, passo a comentar sobre o sentido de “terrorismo”. É bom adiantar que as definições de “terrorismo” são bem diferentes no meio político e no meio jurídico. Começo pelo último.

A Constituição Federal de 1988, Lei maior no ordenamento jurídico brasileiro, e pacto social firmado entre todos os nacionais deste país no que tange à organização do Estado, utiliza “terrorismo” sem, no entanto, explicá-lo. Ele aparece no art. 4º, quando define como o Brasil se comportará nas relações internacionais (e, por lá, repudia o emprego do terrorismo, bem como do racismo) e, mais tarde, no art. 5º, famoso por ser rol maior dos direitos constitucionais fundamentais do cidadão brasileiro, que define o terrorismo como crime inafiançável, conforme inciso XLIII (43), onde se definem inafiançáveis, também, os crimes de tortura e tráfico de drogas. É a conhecida – por quem estudou Direito – trinca “TTT” de crimes. Isso tudo dito, nada explica a Constituição acerca do que é “terrorismo”. E não há crime sem lei anterior que o defina, como comanda a mesma CRFB, neste mesmo art. 5º, inciso XXXIX (39).

Se pesquisarmos o Código Penal, Decreto-Lei 2.848/1940, tampouco encontraremos definição do que vem a ser “terrorismo”. Isso porque a regulamentação do que é terrorismo ocorre em Lei esparsa (fora do Código Penal) e tivemos a edição da Lei Federal n° 13.260/2016.

É essa Lei, conhecida como “Lei antiterrorismo” (embora eu discorde do “anti”, já que ela não se dedica a criar meios de combate ao terrorismo), que define em seu artigo 2º o que é terrorismo para o Estado democrático de direito brasileiro, numa perspectiva legal (jurídica).

Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

§ 1º São atos de terrorismo:

I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II – (VETADO);

III – (VETADO);

IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.

§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.

O primeiro entendimento que alcanço, portanto, é de que a Lei antiterrorismo não se aplica aos golpistas do último dia 8. E aqui cabe alguma contextualização histórica: o diploma legal em comento foi promulgado pela ex-Presidente Dilma Rousseff. Seu passado pessoal em grupos paramilitares pró comunismo, bem como sua posterior filiação ao Partido dos Trabalhadores que é fortemente baseado em movimentos sociais históricos do Brasil (MST, CUT, APEOESP, etc.) levou a todo tipo de pressão no Congresso Nacional para que a Lei antiterrorismo alcançasse tão somente o conceito “internacional” de terrorismo (o terrorismo de grupos religiosos, de grupos supremacistas por etnia, etc.), excluindo qualquer alcance ao “terrorismo doméstico” (grupos de nacionais que decidem executar atos violentos contra o governo em exercício, por qualquer razão). Daí a redação do parágrafo segundo. É este mesmo § 2º que livrará os bolsonaristas envolvidos no 8 de janeiro de se verem acusados de terrorismo nos termos do art. 1º, inc. IV, da Lei supra.

Portanto, “terrorismo”, juridicamente falando, diante do arcabouço (conjunto) do ordenamento pátrio vigente, não é crime pelo qual os vândalos possam ser denunciados. E o Direito Penal é extremamente fóbico a qualquer inovação em entendimento que permita a elasticidade do alcance dos tipos penais. Em outras palavras: o Direito Penal não tolera entendimento que facilite o enquadramento de condutas do indivíduo em crimes legalmente previstos, mas que não citam claramente a conduta perpetrada. E com razão. Fosse o Direito Penal amigável a essa liberdade do Poder Acusatório, todos que incomodassem o Estado (ou o governante) acabariam facilmente atrás das grades. Pelo mesmo motivo, mesmo que o Congresso Nacional editasse nova Lei ainda hoje e o Presidente Lula a promulgasse, ainda assim os bolsonaristas não poderiam ser processados sob a figura da nova Lei. Porque a Lei penal só retroage em favor do réu, nunca contra (art. 5º, XL [40], CRFB).

E se você está esbravejando por concluir que os bandidos de domingo sairão livres, veja isto por outro ângulo: é uma excelente oportunidade para falar para seu parente/amigo bolsonarista sobre a importância dos Direitos Humanos, da legalidade, da obediência à Lei por parte das instituições e do Estado-Juiz, e porquê vale defender um Estado democrático de direito. Fosse uma ditadura, o(s) ditador(es) poderia(m) mudar todo esse entendimento sem maiores melindres e poderia(m) condenar todos os arruaceiros à pena de morte, mesmo que retroativamente.

Mas, e o “terrorismo” no sentido político? Este certamente é termo adequado para os bolsonaristas nas ruas.  Embora o mundo nunca tenha chegado a uma definição universal do que é “terrorismo” (porque é um crime de definição “cinzenta” – toda revolução é ilegal, exceto se der certo…), os Comitês das Nações Unidas que se debruçaram nesse tema, nos idos dos anos 2000, chegaram à seguinte definição do que é a conduta terrorista:

“quando o propósito da conduta, por sua natureza ou contexto, é intimidar uma população, ou obrigar um governo ou uma organização internacional a que faça ou se abstenha de fazer qualquer ato. Toda pessoa nessas circunstâncias comete um delito sob o alcance da referida Convenção, se essa pessoa, por qualquer meio, ilícita e intencionalmente, produz: (a) a morte ou lesões corporais graves a uma pessoa ou; (b) danos graves à propriedade pública ou privada, incluindo um lugar de uso público, uma instalação pública ou de governo, uma rede de transporte público, uma instalação de infraestrutura, ou ao meio ambiente ou; (c) danos aos bens, aos locais, às instalações ou às redes mencionadas no parágrafo 1 (b) desse artigo, quando resultarem ou possam resultar em perdas econômicas relevantes”.

Portanto, sim, não há dúvidas de que os movimentos bolsonaristas nas ruas são terroristas, dentro de uma definição política, bastante aceita e atual (ONU, anos 2000). Mas para que se possa falar em crime de terrorismo, este precisa existir na legislação nacional, anteriormente ao(s) ato(s), para que se possa processar, julgar e prender o(s) individuo(s) que praticou(am) tal ação. É óbvio: há diversos outros crimes para acusar a horda de tresloucados. Dano, lesão corporal (contra os agentes que foram espancados), ameaça, crimes contra o patrimônio cultural (Lei 9.605/1998), a própria figura do Golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal) que foi criada em 2021, enfim… Muitas possibilidades, mas não a figura do crime de terrorismo. E, com ela, se vai a característica do crime inafiançável. Ainda terão ao favor de suas defesas, atenuantes do art. 65 do Código Penal, como aquela concedida ao crime cometido sob influência de multidão.

Neste breve resumo, quero alertar para fato que me parece claro: o Brasil, o Estado brasileiro, as instituições, a Lei, nenhum deles está pronto para lidar com o terrorismo bolsonarista. A Lei, como está, não os alcança em magnitude e não protege o Estado brasileiro e os cidadãos que o respeitam em suficiente. Fora da Lei, não há diferença entre bandidos e um Estado de exceção. Como não havia diferença entre os terroristas de Esquerda, planejando sequestros para forçar sua ideologia, ou os terroristas fardados, usando a máquina do Estado para perseguir e aniquilar quem os incomodava. Fora da legalidade e do prévio conhecimento das regras do jogo, vale tudo. E o vale-tudo não pode ter lugar na civilização e na cidadania.

Espectros

Os espectros, os fantasmas, o passado da história brasileira voltaram a aparecer com força inédita, desde a redemocratização. O que se assistiu no domingo passado e o que se ensaia para hoje, no início da noite, foi (e será) nada aquém do que uma tentativa de golpe de Estado. O que queriam os criminosos era que, diante da desordem instalada por eles, as tropas das forças armadas fossem às ruas, e sendo elas recheadas de simpatizantes pelos desordeiros, virassem-se contra Constituição de 1988, tomando o poder político das mãos dos que foram eleitos. Se ainda somos uma democracia é somente porque o cenário internacional não favorece um golpe e as famílias dos militares não querem perder o direito de ir pra Disney. Se não houvesse uma pressão internacional (especialmente dos EUA – ah, a ironia) em sentido contrário ao golpismo, já teríamos a voz do Brasil passando até no Twitter, à essa altura.

O problema é que a história sociopolítica do Brasil é feita de golpes de Estado. O caminho “natural” nunca existiu para a sociedade brasileira. Não. Aqui, política nova se faz com ruptura e solavanco. É verdade que em quase todo país do Ocidente, a história se repetiu do mesmo modo no início, mas o caso brasileiro é especialmente alarmante porque essa lógica jamais foi superada:

A queda da monarquia e o início da República se dá com um golpe dos militares contra o Imperador, em 1889.

O fim da primeira República (iniciada em 1889) e o início do Estado Novo se dá com um golpe de Getúlio, apoiado pelos militares que lhe eram simpáticos, em 1937. Acabou em 1945, também sob ameaça de um novo golpe de Estado e novamente por ação dos militares, agora, opostos a Getúlio.

Chega 1964 e a Democracia cessa outra vez, com os militares dando um golpe de Estado para impedir que o vice de Jânio Quadros, João Goulart, erigido a presidente pela renúncia do primeiro, pudesse levar a cabo seus planos político-econômicos, sob a alegação de que Goulart instalaria um regime comunista no Brasil. Detalhe: Goulart era tão comunista quanto eu ou você. Seu nacional desenvolvimentismo era de matriz Getulista (aliás, ambos eram do PTB, fundado por Getúlio justamente para “roubar” votos da classe trabalhadora, contra partidos abertamente comunistas).

Chegam os anos 1980, os donos da ditadura brasileira, general Geisel (penúltimo presidente do regime militar) e general Couto e Silva (o melhor “político fardado” que dispunham), percebem que vão sofrer uma revolução popular e, antes disso, desarmam a bomba-relógio “se adiantando” e devolvendo a República ao controle popular pelo voto (numa análise reducionista: democracia). Esse adiantamento foi letal para o equilíbrio porque, iniciado no meio dos anos 1970, permitiu que os militares programassem como “perderiam o poder”. E ainda ocupando o poder, obrigaram o outro lado (o nosso) a aceitar os termos postos à mesa. Perderam e não perderam. Influenciaram toda a redação da Constituição e garantiram para si uma Lei de anistia extremamente bondosa e protetora de seus interesses. Não foram julgados, não tiveram sua vasta corrupção investigada. Saíram vitoriosos e ainda poderosos. Vide os moldes atuais da previdência militar.

Chegamos à redemocratização em 1988 e nos dias de hoje. E como já foi dito muitas vezes, nos últimos dias, porque um deputado pôde homenagear um torturador (ele não homenageou um presidente do regime, mas o torturador dos porões; é bom que se entenda a diferença) durante seu voto no impeachment de Dilma e não sair de lá algemado, aqui estamos: discutindo se a democracia brasileira aguenta muito mais tempo sob esse tipo de ataque. Imagine se o parlamento alemão aceitasse que alguém homenageasse Hitler nos dias de hoje. Seria escandaloso.

O Brasil

“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente.”

ou

“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.”…

Talvez, haja obras mais atuais a sumarizar os tempos vividos. Mas eu já estou velho e essas são as músicas da minha geração. Citar Vandré seria pretensioso, já que ele veio bem antes. Buscar o presente seria engodo, já que eu não tenho escutado muito os novos artistas brasileiros.

A pesquisa Atlas-Intel, publicada no último dia 10, entrevistou a população e concluiu que 75.8% não concorda com os atos de vandalismo, enquanto 18.4% concordam. 18% é muita gente de acordo com a barbárie, mesmo que pareça pouco. Quando movemos o recorte para eleitores do Messias, vemos que 38.1% apoiam, enquanto 48.6% repudiam, o que é surpreendente e até positivo. Mas, quando mudamos para religião e olhamos para os que se declaram evangélicos, o problema dispara de novo: 31.2% concordam, contra 14.3% de católicos e 6.4% de outras religiões. Clique no link acima para conferir o tamanho do estrago na sociedade, após ao menos 4 anos de barbárie verbal e prática.

Seja como for, temos que olhar para o material humano disponível no Brasil. Não é possível atribuir tudo à figura do grande mito messiânico que essa horda decidiu seguir. É impossível lhe eximir da responsabilidade, igualmente. Palavras têm força, e na boca ou nos textos de pessoas pelas quais temos apreço, devagar ou rápido, passam a ecoar no nosso imaginário e formar – em parte ou no todo – a nossa opinião.

Não, um presidente que grita “vamu metralhar a petralhada” (sic) não está apenas fazendo um discurso. Não é mero simbolismo, figura de linguagem… Ele está, no médio ou longo prazo, autorizando a violência contra quem não concorda com ele(s). Ademais, praticamente tudo na vida humana é simbólico. O seu contrato de trabalho é simbólico, o casamento dos seus pais é simbólico, a escritura pública da sua casa própria é simbólica, e o contrato de aluguel também é.

A Lei. Especialmente a Lei. Essa é muito simbólica. É um símbolo de que nós todos, unidos pela língua, cultura, território e época, decidimos renunciar a boa parte da (senão a toda) capacidade física e coercitiva de obrigar o outro a fazer o que queremos, e depositamos esse poder em um terceiro ente, idealmente capaz de usar a força na hora certa e mediar a nossa coexistência de forma menos brutal, bestial, animalesca.

Quando um bolsonarista quebra os vidros do STF, ele não está ofendendo o ministro Alexandre de Moraes.

Quando um camisa-amarela fura o painel de Di Cavalcanti, ele não está machucando o Presidente Lula, muito menos a Di Cavalcanti que já está morto há 46 anos. Tampouco machucam os ex-Presidentes cujos quadros foram estilhaçados e jogados ao chão.

Quando um milico da reserva ou policial de folga, raivoso, irrompe contra o mobiliário do Congresso Nacional, em parte trazido da antiga capital nacional (o Rio), quebrando mesas e móveis centenários, ele não está fazendo Pacheco ou Lira chorarem.

Não é aos Presidentes dos Três Poderes que o Governador do DF, agora afastado, Ibaneis Rocha, deve desculpas. As desculpas são devidas aos 215.5 milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram seu patrimônio depredado por capricho e loucura, de forma bestial e animalesca.

Ou defecar sobre a fotocopiadora virou sinal de patriotismo? Que as palavras andavam sem sentido, vá lá, mas isso já é demais.

Quando um bolsonarista joga o escudo da República para tomar chuva, não é o ministro do STF que ele está agredindo. É a mim. É a você. O ministro agora é um. Amanhã será outro. Aquele espaço onde o STF existe (e onde existem os demais Poderes), é sagrado no sentido de abrigar o nosso pacto, a nossa esperança de que possamos coexistir enquanto sociedade, no mesmo espaço e no mesmo tempo, dividindo alguns (jamais todos) valores comuns e tornando nosso país em um lugar melhor de se viver do que já foi ontem.

O ato foi, até aqui, em vão. Serviu, isto sim, para acelerar o desmonte dos acampamentos golpistas e reaglutinar instituições da República que andavam, há muito, separadas. Mas parar nesse entendimento é uma visão demasiadamente otimista, até pueril, eu diria. O bolsonarismo finalmente mostrou a que veio. Se não podem vencer nas ideias e no voto, vencerão de outro modo. Vale-tudo. Barbárie. Terrorismo. Esse é o bolsonarismo.

Espero que o espelho não lhe mostre de camisa da CBF. Se mostrar, fica o recado de quem espera que você saia dessa: você está doente e imerso num mundo igualmente doente. Não dá para respeitar a Constituição, o nosso acordo de coexistência, ou acreditar no futuro da nação e ser bolsonarista. Simplesmente não dá. É uma questão de lógica. E de civilização.

A entropia do Brasil

Meia-noite. Primeiro minuto do dia 30 de outubro de 2022. O último domingo de outubro, conforme comanda a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, em seu artigo 77. Hoje, se faz História em meu país. Para o bem ou para o mal.

Falando em tempo, existia um mundo antes das 9h46 a.m. (horário de Brasília) do dia 11 de setembro de 2001 (uma terça-feira), e um outro mundo eclodiu, depois. Talvez, a depender do ano em que você nasceu, você sequer seja capaz de entender como aquele minuto mudou a história do Ocidente e, por consequência (poderíamos ficar apenas no aspecto político-econômico), a história do mundo.

Eu já falei “bem” sobre entropia. Quer dizer, eu já expliquei por aqui o conceito da termodinâmica, porcamente. Para quem não tem tanta disposição, segue a versão de uma frase: entropia é a medida pela qual se avalia a desorganização de um sistema. Qualquer sistema. O exemplo do jarro com bolinhas coloridas; vermelhas, do fundo até a metade; azuis, da metade até perto da tampa: você chacoalha o jarro, as bolinhas se movimentam e passam a se misturar. Quanto mais você chacoalha, mais elas se misturam. O tamanho dessa “desorganização” em face do sistema originário é a entropia. Um ponto central da entropia em sistemas reais é que, não importa o quanto você “balance a jarra” (interfira no sistema), o sistema não voltará ao estado original em que todas as bolinhas estavam separadas “organizadamente”.

Porém, a entropia não deve ser confundida com “bagunça”, sob o risco de se supor que tudo é melhor “na origem”. Ora, não fosse a “entropia” do óvulo fecundado no ventre da senhora sua mãe, tudo ficaria exatamente como estava no início daquele novo sistema (você, o “pra sempre girino” [zigoto]).

Seja como for, o Brasil – como quase tudo que existe – pode ser lido como um sistema. Na realidade, um sistema de sistemas; quase infinitos sistemas. Sistemas geológicos, sistemas biológicos, ecossistemas, sistemas de povos, de cultura, de economia, de política… Enfim… Sistemas… E todos eles passam por entropia.

É difícil fazer previsões, mas soa razoável supor que hoje, às 21h (também de Brasília), já saberemos o resultado das eleições gerais de 2022. Isso porque são menos votos (na maior parte, só para Presidente; apenas doze estados terão segundo turno para governador), e também porque é razoável esperar que a Justiça Eleitoral tenha aprendido com as lições e motivos que tornaram o primeiro turno mais lento (biometria, transferência de dados, processos…). Quer dizer que, em mais ou menos vinte e uma horas, nós poderemos medir a nova entropia do Brasil, enquanto sistema sociopolítico.

As decisões que os eleitores consagrarão nas urnas, hoje, percutirão efeitos importantes no jarro de bolinhas que é o Brasil. Por outro lado, como sistema real que é, o jarro do Brasil não está com a tampa fechada. Algumas bolinhas caem, outras entram. O sistema funciona, ora sob regime hermético, ora sob forte influência dos ecos de outros sistemas. Isso bagunça um bocado com as leis da termodinâmica e, consequentemente, com o conceito de entropia. Então, vamos mudar. Vamos pros comunistas 😈!

Foi Marx (calma, respira… não é sobre o seu temido comunismo, hoje, eu prometo) quem concluiu, após analisar a frase original de Hegel, que a história se repete duas vezes: uma como tragédia, outra como farsa. “Tragédia e Farsa”, no contexto em que Marx escreve, estão ligadas aos gêneros de teatro grego.

A tragédia grega é, bem, … trágica. A característica desse teatro é, basicamente, que o protagonista já inicia sua jornada em meio a tensões e incertezas e acaba infeliz e cercado por tragédias. A peça de “Édipo Rei”, que (spoiler alert) atravessa o mundo para não acabar casado com a própria mãe, graças a uma maldição por ter cometido parricídio, e ainda assim com ela se casa, é um exemplo clássico (em todos os sentidos) desse gênero teatral.
Já a farsa, no teatro grego, é o humor em sua forma mais escarnecida. A farsa não tem real compromisso com filosofias, discussões e críticas sociais (bem mais caras ao humor “moderno”), de valores morais ou (a)temporais. O objetivo real de uma peça de farsa é a gargalhada. Aristófanes é um autor famoso do estilo, e sua peça Lisístrata (ou “A greve do sexo”) é igualmente conhecida no gênero.

Portanto, quando Marx diz que a história se repete (como afirmou Hegel), adicionando que uma vez como tragédia e outra como farsa, o que ele queria explicar é que da primeira vez, os fatos históricos “inéditos” de uma nação são intensos, reais, vividos à flor da pele. Na segunda vez em que esses fatos ocorrem, são caricaturas, arremedos, uma cópia, uma emulação do que se deu no passado. O Brasil está diante de uma farsa. Ou melhor, estamos diante da farsa da farsa da […], pelo menos se recortarmos o arco histórico desde a Proclamação da República, em 1891.

Getúlio Vargas foi o primeiro, desde o fim do império, a realizar um golpe de Estado, concluso em 10 de novembro de 1937. Numa sociedade brasileira que via, com a mesma ojeriza típica que vemos hoje, o comunismo crescendo na Europa pós primeira-guerra e sendo Getúlio um admirador do Fascismo italiano que eclodia com força, desde 1919 naquele lugar, foi fácil falar em “nacionalismo, anticomunismo, valores nacionais”. Sim, você já viu esse filme, recentemente.

Depois (bem depois), em 2 de dezembro de 1959 (uma quarta-feira), um avião da Panair (vixe… faz tempo…), com políticos a bordo, foi sequestrado por brasileiros militares e terroristas que, admiradores cegos do populista Jânio Quadros (o “Vassourinha”), planejavam um golpe de Estado usando armas, explosivos, reféns de renome, aviões furtados da FAB […] para pavimentar o caminho para o grande líder. Em seu manifesto, os terroristas alertavam o povo brasileiro de que “o comunismo estava infiltrado em diversos segmentos da sociedade, incluindo o setor público. Havia corrupção das lideranças políticas, em especial no Executivo, além da omissão do Judiciário e do Legislativo” … Já viu essa ladainha? Pois é…

Jânio, eleito em 1960, renunciaria em 1961, com seu famoso discurso sobre as “forças ocultas”, e não esperava nada menos do que a recondução ao Poder (como confessou ao parente), após a renúncia, nos braços do Povo e dos Militares, para encontrar-se com um novo Poder, agora ilimitado. Tanto que renunciou, não sem querer, no Dia do Soldado, 25 de agosto… Deu errado. E deu TÃO errado, que a crise iniciada por Jânio, na renúncia, fundou as bases para o Golpe de 1964.

Aliás, lembra aqueles militares que sequestraram o avião da Panair com os políticos brasileiros dentro? Sim, eles foram anistiados por Juscelino Kubitscheck no mesmo ano do terrorismo perpetrado. E quer saber se eles ajudaram no Golpe de 1964? COM CERTEZA… Hehe… Ah, História… Você ainda me mata…

Tem ouvido falar em anistia para Bolsonaro e sua quadrilha trupe, especialmente da boca de um vampirão que aprontou altas confusões com uma turminha do barulho em 2017 e 2018? Pois é…

Teve, ainda, o nosso eterno caçador de marajás. Ah sim… O bonitão, herói-antissistema. Que confiscou a conta-poupança de toda a gente, e fez uma porção de brasileiros cometerem suicídio (sem brincadeira). Sim, o nosso primeiro presidente impedido, que andava demais pela casa da Dinda… “Pois é” outra vez…

Hoje, o Brasil, LAMENTAVELMENTE, não discutirá projetos, nem visões de política, governo ou sociedade. Hoje é sobre Civilização vs. Barbárie. Sim, não há qualquer exagero na afirmação. Viu Zambelli apontando uma quadrada na cara de um opositor político que não pediu perdão “por existir”? Como ele ousa afirmar que ela está errada? Viu o boletim de ocorrência onde ela narrou que “usaram um negro para agredi-la”? Isso é só uma pequena amostra de como se comportam os Camisas Negras tupiniquins de Bolsonaro. “ANAUÊ!” … Já ouviu ou leu essa palhaçada de “anauê” por aí? Pois é³…

Já se disse muito sobre o paradoxo da tolerância de Popper, e não vou esganiçar esse velho tecido que, a bem da verdade, nem foi muito desenvolvido por Karl. Ele propôs, mas não aprofundou.

O que você precisa saber para poder tomar a única decisão certa que restou, é que diante da barbárie, suspendem-se pontos de vista mais ou menos alinhados, e preferências por modelos e pensamentos econômicos vão para segundo plano. É exatamente por isso que gente que não tem nada a perder ou a ganhar com Bolsonaro, gente como FHC (um senhor, rico, velho, realizado), Pérsio Arida (economista responsável pelo plano Real e fortemente criticado pelo PT à época), Joaquim Barbosa (ex-Ministro do STF, ferrenho [mas justo] “juiz” da Ação Penal n°470 [o “Mensalão”]) estão todos apoiando o mesmo candidato. Eles e, claro, MUITOS outros… Pessoas como João Amoedo, como Simone Tebet, como Marina Silva… São tantas visões conflitantes no mundo da política, economia, sociedade… E, ainda assim, fechados em torno do nome de Luís Inácio Lula da Silva.

A razão desse apoio deles respeita a sabedoria da Navalha de Occam: Entre duas teorias que explicam igualmente os mesmos fatos, a mais simples tende a ser a correta. E quais são as teorias? Uma teoria é de que essa gente toda, com todo o currículo, vida pública, e história que tem, está do lado do “Ladrão de 9 dedos, comunista, da mamadeira de piroca e banheiro unissex, porque são satanistas, fechados com o islã [acrescente aqui a sua paranoia] e odiosos da família brasileira”. A outra teoria é “porque reconhecem que, com todos os defeitos, Lula é um ser humano e é um político bom, enquanto Bolsonaro não é nem um, nem outro”.

E esse é o ponto central: Eu divirjo de Lula no campo político-democrático. Falei sobre isso, ainda na quinta passada. Mas eu divirjo de Bolsonaro no campo do que é ser um ser humano. Eu divirjo com o “mito” (que apelido apropriado para alguém que mente o tempo todo) no andar de baixo da vida política, divirjo com ele no campo da civilização vs. barbárie. Não há doutrina política, no campo da democracia, que tolere “exterminar os adversários”, rir de gente sufocando na UTI, sentir um clima com menores que acabaram de entrar na puberdade… Eu vou parar por aqui, não porque faltam horrores para seguir, mas porque ele e seus fiéis seguidores têm pouca ou nenhuma vergonha de tais ocorridos.

No fim eu sempre soube, entristecido, de que “prego para convertidos”. Quer dizer, qual a chance de um bolsonarista alucinado ler este blog? Na real, eu atinjo um público tão, tão pequeno, que é difícil justificar racionalmente o porquê eu escrevo. A razão – que não é razão – acaba por ser sentimental. Esperança. Esperança de um cético. Esperança de que, sei lá… Aquele cara ou aquela mina, indecisos, morrendo de medo de Lula, seja por motivos fundados (corrupção, conchavos, ideologias), seja por motivos infundados (comunismo, mamadeira de piroca, banheiro unissex […]), acreditam que Bolsonaro é o mal menor… E podem cair aqui…

Eu estou aqui para garantir a você, como uma pessoa que nunca votou no PT antes de 2018, quando foi preciso ir contra Bolsonaro: Lula ainda é gente. Ainda é um político minimamente alinhado com o pensamento democrático (aquele sistema lá que garante que o seu vizinho mais forte não tenha paz, caso decida tirar sua vida pra ficar com sua propriedade e comer sua mulher, e zas e zas…). Lula ainda opera sob lógicas previsíveis de como um político atuará. Bolsonaro é o cachorro-louco. Comandou o Brasil como o moleque comanda a vendinha de limonada. Pode estar aberta, pode estar fechada, pode passar a vender cataventos com a mesma velocidade que pode sair do mercado. Isso NÃO É BOM para seu país. Essa governança desastrada, errática, imprevisível, personalista… Isso é PÉSSIMO para o Brasil. E eu nem falei do “efeito Bolsonaro” na sociedade. Estou falando só de razões e lógicas para não dar outros quatro anos para que ele termine de quebrar a banca. E ele vai. Prometo a você que ele vai.

No lado humano, existencial, Bolsonaro é o oposto do Cristianismo que a raça humana conheceu no século XX (e XXI). Talvez, no século XII, durante as Cruzadas, Bolsonaro fosse tratado apenas como “um homem de uma fé cristã um pouco aguerrida” … Estupra em nome de Deus, enfia a espada no bucho em nome de Deus, taca fogo na aldeia em nome de Deus… Mas, não chegaria a assombrar seus contemporâneos de idade média. Na releitura de um Deus de amor, que é feita na modernidade, no entanto, Bolsonaro não se encaixa como Cristão. Se ele é Cristão, o Satanismo é a salvação de todos nós (por ser o oposto da religião do grande líder, eu suponho).

Repito: talvez você esteja fora de órbita tempo o bastante para não saber que sua adida, Carla Zambelli, reeleita para deputada federal por SP (por que, SP? 😢), sacou uma arma na região central de São Paulo, capital, e perseguiu um homem de visão política oposta à dela. Alegou, em boletim de ocorrência, mais tarde, que teriam “usado um negro” para agredi-la. Está vendo? Não é sobre política com essa gente. É sobre humanidade. E é sobre barbárie. E eles querem dar continuidade ao governo onde está tudo bem que pessoas saiam por aí, apontando pistolas na cara de quem os irrita ou incomoda.

Ao votar 22, por medo de Lula, você, querendo ou não querendo, diz para eles, com o poder de anistia que seu voto carrega, que o terrorismo deles é bem-vindo na sociedade brasileira. Concordando comigo ou não, ao votar 22, você acredita que para chegar aonde você quer chegar, tudo bem empilhar alguns corpos no caminho, inclusive literalmente. “Se não tem outro jeito”, não é mesmo? Acontece que tem outro jeito. Eu estou afirmando que tem.

O mais triste é constatar, abestalhado, que eu conheço uma grande parte desses votos no 22 que não vêm do esgoto em forma de gente que Carla Zambelli é e ratificou ser, na tarde de hoje. Muitos, como eu disse, só tem medo e paúra do que Lula representa no imaginário de cada um deles. E estão achando que Bolsonaro é o mal menor. Análise equivocada, repito.

Quer dizer: como votar e reeleger “um ladrão condenado por corrupção”? Eu não vou contestar a tibieza desse ponto. Vou jogar com sua premissa. Lula é um ladrão. Ok. Do outro lado, temos um terrorista que (supostamente) planejou explodir batalhões do Exército, por não aceitar o salário. Também, um sádico (sem suposições) que riu de gente morrendo asfixiada. Também, um (suposto) “normalizador” de relações entre velhos de 70 anos e garotas de 14 (olha o tamanho da acrobacia que faço para não o chamar daquilo que ele [não eu] deu a entender que é). Também, um xenófobo que quer mandar em todos os brasileiros, mas tolera – eu não consigo imaginar que Bolsonaro goste de ninguém a não ser dele – só uma pequena parte deles. Ah, e também é o chefe de uma família muito unida e muito ouriçada que só comprou [ao longo do tempo] cinquenta e uma propriedades usando dinheiro vivo, no todo ou em parte… Ainda bem que ele não é corrupto, para além do monstro que é… Preciso continuar?

Vocês estão com medo de votar “no ladrão” e estão em paz de votar no proto-ditador fascista. Fascista, sim… Umberto Eco, pensador italiano contemporâneo, falecido em 2016 [portanto, não: ele não é um comunista contra Bolsonaro – mas seria contra, se vivo estivesse], listou catorze características comuns no fascismo em seu rápido e prático livro “Fascismo Eterno”. Compre aí, leitura curta e rápida. Bolsonaro atende à TODAS elas. Vamos ver se estou mentindo? Algumas dispensam explicação, mas vou dar, assim mesmo:

1 – Culto à tradição (Deus, pátria, família – ANAUÊ!).

2 – Rejeição ao modernismo (é um perigo DANADO que dois homens se casem [pra quem?]).

3 – Culto à ação pela ação (pensar antes de fazer é para os fracos).

4 – Discordância é traição (*cof* *cof*, Mandetta, *cof* *cof* , Bebbiano, *cof* Santos Cruz […] ).

5 – Medo das diferenças (“as minorias têm que ser curvar às maiorias! Taóquei?”).

6 – Apelo à frustração social (“eu vim pra mudar tudo isso aí” – mesmo fazendo parte “disso aí” há 26 anos…).

7 – Obsessão por um enredo (“estão querendo acabar com a sua família, táóquei?”).

8 – O inimigo é perigoso, mas, ao mesmo tempo, é fraco e desprezível (não temos medo do lixo do PT, mas se perdermos, foi roubado…).

9 – Pacifismo é o mesmo que abraçar o inimigo (“Vamos fuzilar a ptralhada!”).

10 – Desprezo pelos considerados fracos (“Eu tenho 5 filhos. Foram 4 homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”).

11 – Todos têm que ser criados para serem heróis (e, se você é um herói e o seu líder supremo pede seu sacrifício… Tá esperando o que?)

12 – Machismo e armas. (Preciso explicar?)

13 – Populismo seletivo (um recorte do estrato social representa “o nacional de verdade” [o branco, macho top, que curte sertanejo, evangélico]; o resto é inimigo).

14 – O Fascista não tem vocabulário (uma coisa é se comunicar de forma simples e clara. O que Bolsonaro faz é um culto à pobreza intelectual. Já notou que ele não consegue não falar em relacionamentos ou órgãos genitais ao dar exemplos?).

Olha aí… Um homem italiano, com o currículo de Umberto Eco, morto em 2016, quando nós não sabíamos que éramos felizes no Brasil, escreve sobre o Fascismo que viu em primeira mão na Itália, lista catorze comportamentos dos grupos fascistas… E Bolsonaro “gabarita a prova” (deve ser o primeiro 10 da vida dele).

Então é isso, meu caro leitor e minha cara leitora: Hoje, votamos contra a barbárie. Não tem nada a ver com concordar com Lula, para um enorme número de eleitores a votar 13, hoje. Eu me incluo nessa lista. Se Lula vencer, estou na oposição democrática a ele, já em 1 de janeiro (também num domingo). Mas, hoje é contra a repetição da História brasileira como farsa. Hoje é contra o fascismo que, didaticamente explanado em catorze elementos por Eco, é gabaritado pelo candidato à reeleição presidencial.

Mas, como não poderia deixar de ser, eu tenho uma mensagem que pode ser triste de aceitar, mas precisa ser aceita: É impossível reverter a entropia do Brasil. Não há jeito de nossa sociedade voltar a ser o que era. Não há jeito de não sabermos mais que há, no meio de nós, muitos que riem e se comprazem na ideologia fascista de um homem que acredita que há fracos e inimigos dentro do povo que ele quis governar. E a esses fracos e inimigos ele reserva atitudes como as de Carla Zambelli ou Bob Jeff (que ganhou esse ar de nome gringo como apelido da tropa porque… Porque o fascismo brazuca é assim: se tiver que prestar continência para a bandeira americana, sendo presidente do Brasil, que mal tem? Eles são o exemplo de força, tá tudo certo…).

Não, não há como reverter a entropia. Nunca mais seremos os mesmos. A nação nunca mais será a mesma. Se o pesadelo acabar e Bolsonaro perder, serão mais dois meses até a passagem da faixa. Dois meses de guerra intensa do sequestrador do avião que chamamos de Brasil, e que vai forçar tudo que pode para conseguir anistia para si, seus comparsas e sua família. Fora os alucinados reconduzidos ao Poder por mais quatro ou oito anos, graças a um povo que se choca, mas não reage, como disse o Vassourinha.

Em nome do Paradoxo de Popper, espero que o governo brasileiro seja como os EUA – olha que paradoxo – e cace os terroristas que sequestraram o nosso avião, até o fim (deles). Porque se o Brasil for o mesmo Brasil que sempre teima em perdoar (para ajudar o presidente atual: como a mulher espancada e traída, que sempre acha que o marido vagabundo e violento vai melhorar), que sempre teima em se chocar sem reagir, nós vamos – sem sombra de dúvidas – repetir a história, de novo, como farsa; senão já, daqui a quatro anos.


Muitas foram as fontes que me inspiraram a escrever este artigo. Deixo duas das mais importantes:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2022/10/nos-cem-anos-da-marcha-sobre-roma-vale-lembrar-por-que-o-fascismo-triunfou.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

https://premium.canalmeio.com.br/edicao/192437/

PAULISTA: POR TUDO O QUE LHE É SAGRADO, SALVE SÃO PAULO…

Tarcisio de Freitas, então ministro da infraestrutura de Bolsonaro em 2021, havia dito ao seu chefe que queria ser senador por Goiás ou até mesmo Mato Grosso, quase ao fim daquele ano. Dois estados do centro-oeste brasileiro, com enormes diferenças entre si. Só para dar ideia, Mato Grosso é o terceiro maior estado da federação, três vezes maior que Goiás. As diferenças culturais, regionais, de produção agrícola primaria, tudo… Tudo é diferente. Mas o candidato do “Republicanos” escolhia, como quem compra um novo sapato, onde queria concorrer como senador, cargo que representa os interesses de um estado diante da União, no Senado Federal. Esse é o grau de compromisso de Tarcísio com os locais que ele pretende representar, dirigir, governar…

Meses depois, para desgraça do povo paulista – que não consegue ver o pote de veneno em cima do piano e não beber – a Barbárie em forma de presidente decidiu que seu ministro deveria, isto sim, concorrer para governador no estado de São Paulo. Tarcísio, bom subalterno que é, aceitou as ordens do “líder supremo”. Inventou um contrato de aluguel, colocou o sobrinho pra viver dentro e, como num passe de mágica, passou a saber exatamente do que São Paulo precisava… E o povo paulista concordou…, mas eu já volto aqui.

Eu tenho 36 anos. Portanto, posso dizer que faz 20 anos que me interesso por política, desde que meu professor de história, Edson, pediu que nós considerássemos nos alistar como eleitores facultativos. A primeira reação, como a de qualquer colega normal e da mesma idade, foi “por que eu quero essa bucha?”. Rimos. E a maior parte ignorou o pedido do velho mestre.

Eu não me alistei eleitoralmente naquele ano. Esperei os 18 e a obrigatoriedade. Mas, durante uns dois meses antes da eleição daquele ano de 2002, eu fiquei pensando em quem eu poderia querer ver eleito. Dali pra frente, eu passei a ler sobre política. Não com qualidade, tampouco com volume, mas iniciava-se em mim um interesse que não existia antes.

Desde aquele tempo, não votar no Partido dos Trabalhadores (PT) era uma convicção passada de pai para filho em minha família. Meu avô, funcionário fabril da região do ABC paulista, aposentado por invalidez, contava sempre sobre como Lula fazia piquetes nas fábricas de São Bernardo do Campo, já mancomunado com o patronato da região para justificar demissões em massa que ocorreriam a seguir. Assim, Lula era o lobo em pele de cordeiro. O sindicalista que brigava pela classe trabalhadora no palanque era, na verdade, um aliado dos patrões contra o coitado do assalariado. Essa história me foi repetida outras várias vezes, tanto pelo meu avô, quanto por meu pai ou pelos meus tios. E eu cresci com um ódio típico das torcidas de futebol, crente de que Lula e o PT eram “o Mal encarnado”.

No entanto, crescer em um ambiente como uma escola técnica da rede Paula Souza, que te faz passar por um vestibulinho, te expõe a gente mais inteligente que a média (não precisa ser muito mais inteligente; basta ser um pouco mais) e de todos os matizes: à direita, à esquerda, ao centro… Não demorou muito e fui cobrado a ler as diretrizes do PT, enquanto partido político. A famosa “carta de princípios”, de 1979. Dali para frente, eu comecei a contextualizar o PT dentro da dimensão política da discussão e não mais como um terrível vilão de história em quadrinhos. Os sentimentos clubistas, típicos da paixão juvenil, começaram a se esvaziar ao longo dos anos. Não, eu não me tornei simpático ao PT. Na verdade, depois de conhecer a carta de princípios, eu comecei a entender o que o Partido queria para o Brasil e no que eu não conseguia concordar com eles.

Por exemplo: a utopia “do fim da exploração do homem pelo homem”, um flerte a outras utopias mais antigas e que, a história mostra, não conseguem sobreviver ao contato com a realidade. Por outro lado, para todos aqueles que se desesperam em afirmar um “compromisso ditatorial” por parte do Partido de Lula, falta leitura da carta (ou caráter em quem afirma) onde se lê, com clareza: “O PT afirma seu compromisso com a democracia plena, exercida diretamente pelas massas, pois não há socialismo sem democracia nem democracia sem socialismo.”. E você pode dizer “é só uma carta”, ao que respondo “assim como a escritura da sua casa, ou a Constituição de 1988”. Sim… Tudo é só papel. Honrá-lo(s) depende de quem acredita nele(s).

Não, eu não passei a gostar do PT. Eu sempre critiquei o PT (inclusive, nos textos mais antigos, ainda no Facebook). Eu nunca votei no PT.

Até 2018.

Em 2018, o povo brasileiro me deu a opção de votar em um professor universitário, graduado em direito, pós-graduado em economia e, depois, pós-graduado em filosofia. Do outro lado, um retardado em ideias políticas, ex-militar preso pelo Exército após ter (supostamente) criado planos para explodir unidades da Força Armada como ameaça por melhores salários e que, descaradamente, não elogiava os presidentes da Ditadura (o que seria ofensa menor) mas, sim, o torturador dos porões. Ou seja: sua indecência já era uma certeza quando da eleição em 2018. Naquele ano, não existia nada mais racional na mesa além de votar “13” no pleito presidencial. E foi como eu fiz.

E Haddad perdeu. E cá estamos nós, quatro anos depois: um país destruído, rachado entre bolsonaristas e o resto (que acredita que a democracia vale algo maior que as convicções políticas de cada um), quebrado emocional e economicamente [o estrago econômico de uma eleição financeiramente manipulada começa na segunda que vem, pós eleição, anotem aí] …

E resta a escolha entre o desastre de mais quatro anos de delapidação, mais acelerada com um Congresso que favorece o piadista sobre gente sufocando ou um sofrido reinício das instituições democráticas, o que se decidirá no próximo domingo. Mas eu não vim aqui falar do Brasil. Não. Eu vim aqui implorar a você, paulista, que não destrua o estado de São Paulo no próximo dia 30 de outubro. Sim, eu vim implorar.

Se você não pode votar em Haddad, por qualquer motivação; emocional, racional, espiritual […], tudo que lhe peço – e só peço, porque não se pode exigir tal coisa e seguir falando em democracia – é que não vote no opositor-paraquedista. Anule, vote em branco, mas não fortaleça uma candidatura que COM CERTEZA destruíra o estado mais rico e mais desenvolvido da federação brasileira, ao longo de quatro anos, rifando instituições para grupos políticos que só tem uma missão: esvaziar os cofres a que tem acesso. E os cofres de SP, como eu disse, são os mais cheios.

Votar no candidato do “Republicanos” ao governo de SP, tentando atingir o PT, ou Haddad, equivale a você tomar veneno esperando que seus desafetos morram. Não vai funcionar e vai acabar pior para você.

Eu sustento, sem qualquer medo de estar equivocado, que Haddad é o político mais bem preparado de sua geração nos quadros do Partido dos Trabalhadores. Haddad tem inúmeras conquistas e, sim, algumas derrapadas na gestão que fez à frente da capital paulista, mas, veja: essas derrapadas foram do tipo que só sofre quem tenta mudar alguma coisa que não vai bem. Haddad, antes de prefeito de SP, foi um competente ministro da educação por dois mandatos, sendo autor de um programa que formou milhares de brasileiros na educação superior, que é o ProUni. Que se faça justiça, a ideia começou com sua esposa, como ele sempre gosta de destacar.

Haddad tem diversas premiações: MobiPrize 2014 (Universidade de Michigan), 10ª edição do Sustainable Transport Award, Prêmio Rainha Letizia (Espanha) de Acessibilidade, Prêmio a Hora do Planeta 2015 (WWF), Prêmio Mayors Challenge 2016 em Agricultura. Seu plano diretor ganhou um prêmio da ONU no concurso de Melhores Práticas Inovadoras da Nova Agenda Urbana… Enfim, Haddad conquistou prêmios de diversas organizações internacionais, e isso se deu com projetos que, sim, causaram transtornos, porque é impossível resolver a cidade de São Paulo e seu crescimento absolutamente caótico e impensado, sem incomodar alguma parte da população. E sim, ele cometeu erros. Ciclofaixas que ligavam nada a lugar nenhum, ou controles de velocidade que não faziam sentido com o tipo de malha viária construída. Sim, isso tudo está lá em sua história e não deve ser varrido para debaixo do tapete. Porque: a) não foi crime. b) ele tentou algo e não deu certo. Deveríamos punir quem tenta solucionar problemas históricos com algo novo? Eu penso que não. Basta que o candidato tenha a humildade de voltar atrás e desistir do que não deu certo, mas seguir tentando coisas novas.

E não são ideias estapafúrdias. Se fossem, teriam sido totalmente varridas do mapa. Os corredores de ônibus continuam aí. A maior parte das ciclofaixas, também. O bilhete único de Marta Suplicy (então, PT) também. Logo, não é possível que tudo isso seja terrível e tenha seguido em vigor. Caso contrário, só resta entender que o político seguinte foi tão ruim quanto o oponente derrotado. Ou, que o povo paulistano (no caso da prefeitura da capital) tem a péssima capacidade de escolher “oponentes iguais”.

Tarcísio não sabe onde vota. Tarcísio não conhece o estado, suas regiões, seus dramas. Tarcísio mal sabe que para ser senador do Mato Grosso ou de Goiás, teria que defender prioridades completamente distintas. E, mesmo assim, com apenas seis meses de aluguel em um imóvel ocupado por seu sobrinho, e não por ele, Tarcísio está “pronto” para ser governador de São Paulo. O estado mais rico e desenvolvido da nação, repito.

Não se trata de ser carioca (embora, sim, me dê calafrios ouvir ele dizendo que vai “trazer as ideias boas da segurança pública do Rio” para São Paulo – Meu Deus do céu…). Por mim, ele poderia ser argentino naturalizado brasileiro. CONTANTO… Que tivesse morado em São Paulo (no estado) tempo o suficiente para saber o que vai bem e o que vai mal nesse lugar. Ele não sabe. O plano de governo dele não é dele. Como poderia? Ele não sabe nada de São Paulo. Nada.

Sua visita a Paraisópolis é nada mais do que o puro suco do bolsonarismo e uma amostra do tipo de gente perigosa, mentirosa e disposta A TUDO que São Paulo cogita pôr no governo do estado, por longos quatro anos. O “atentado” que não foi atendado. Os agentes da ABIN que não protegem nenhum outro candidato, além de Tarcísio. O comitê de campanha do candidato do “Republicanos” que demanda da Jovem Klan – ato falho, perdão, mas se aquilo é jornalismo, eu sou lindo, alto e magro – que seu cinegrafista apague os vídeos que gravou. O que querem esconder?

Depois, passou a falar por aí que ia “mexer na maioridade” [penal]. Explica, nas linhas miúdas, que vai sugerir isso ao Congresso, mas na hora da campanha, grita isso aos quatro ventos como se coubesse ao governador decidir a maioridade (aviso: NÃO CABE).

E, por vingança, um esmagador número de paulistas está prestes a condenar o meu estado a quatro anos de destruição da coisa pública. Para se vingar do PT. Para se vingar do político mais competente e preparado – na minha opinião, bem mais [tecnicamente] preparado que o atual candidato à presidência – que aquele partido detém. Por vingança. O veneno que tomaremos todos juntos, no próximo dia 30, na torcida de que o outro morra. Ainda dá tempo de não tomar. Ainda dá tempo de ter quatro anos de uma tentativa de vencer problemas e desafios crônicos de um estado rico, mas desigual. Desenvolvido, mas sucateado ao longo de vários anos.

Eu, honesta e sinceramente, já não tenho muita esperança diante de tanto ódio cego em que esta eleição se converteu. Tudo o que posso fazer, no entanto, é vir aqui e expor as razões que tenho para que você não destrua o lugar em que mora. Recomendo ver os doadores da campanha de Tarcísio para descobrir que eles são parte das famílias mais ricas de SP e que, logo, não estão fadados a viver aqui se tudo der errado com seu experimento em forma de aventureiro. Eu e você, no entanto, temos poucas chances de jogar tudo pro alto e sair daqui caso a experiência com o candidato-paraquedista dê errado.

Começa, agora, o debate entre os candidatos à governador de São Paulo na Rede Globo de televisão.
Assista. Mas, assista com o cérebro ligado, por favor. Remova o clubismo do antiptismo de seus olhos, só por um par de horas; é tudo que lhe peço. Veja quem conhece o estado de São Paulo e seus problemas, e quem queria ser senador do centro-oeste até o fim de 2021, em dois estados totalmente diferentes entre si, mas “acabou” candidato a governador de São Paulo como quem sai para comprar pão e volta com uma bicicleta.

Por favor. Eu lhe imploro: Não tome veneno. Por mim. Por você. Por todos nós. Por São Paulo que eu e você amamos.


Atualização: VEJA esse vídeo. É o resumo de tudo: https://twitter.com/hereisgone/status/1585761731229327360?t=XhkkvLE2AQAYxCLsDFMtfQ&s=19

https://www.jornalopcao.com.br/bastidores/ministro-tarcisio-de-freitas-deve-ser-candidato-a-senador-por-goias-358193/

https://pt.org.br/carta-de-principios-do-partido-dos-trabalhadores/

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/suspeita-de-armacao-em-tiroteio-eleva-pressao-sobre-tarcisio-de-freitas/

Sobre a morte das pesquisas de intenção de votos (ao menos, como as conhecemos)

Créditos da imagem: Scientific American / NASA / Ian Allen

O serviço de funeral terá início às 15h. O sepultamento ocorre às 17h.

A mecânica dos fluídos, ramo da física que estuda o comportamento das forças aplicadas em fluídos [e.g.: água, ar], tenta, há muito tempo, explicar como o perfil aerodinâmico da asa de um avião gera sustentação. Em palavras bem simples: a ciência humana ainda não sabe – exatamente – porquê a asa do avião permite ele voar. Veja: a ciência sabe COMO fazer a asa do avião para que ele voe. O que a ciência não sabe é PORQUÊ isso dá certo.

Se você pesquisar por uma equação clássica de sustentação aerodinâmica, ela é um monstrinho. Cheia de letras (incógnitas ou variáveis) e valores pré-definidos (constantes):

L = (1/2) d v² s CL

Se cairmos na bobagem de verificar equações de arrasto, ou de velocidade mínima de sustentação do perfil aerodinâmico, a coisa só piora…

Agora, comparemos essa equação com a equação de Einstein, feita para descrever sua famosa teoria especial da relatividade:

E = mc²

Como algo pode ser mais (matematicamente) elegante do que isso? A equação de Einstein descreve como massa e energia são a mesma entidade física e como é possível arguir que uma pode se transformar na outra (afinal, é isso que toda equação faz: propõe a equivalência de dois lados [expressões] separados por um sinal de igual).

Há uma citação que frequentemente se atribui a Einstein (se não é dele, só pode ser da Clarice): “Se sua equação tem muitas variáveis, é provável que você não tenha entendido o fenômeno que quer explicar”. Se a frase é mesmo dele, só posso dizer: mala dos caral$#@%… Mas, como rebater o cara que segue tendo suas teorias (praticamente) demonstradas, décadas após sua morte?
¯\_(ツ)_/¯

Se não é dele a citação, ela não deixa de ser menos interessante e, até certo ponto, verdadeira. Quanto mais entendemos um fenômeno, menos ele nos é suscetível a interferências e imprevisibilidades. Em outras palavras, quando entendemos o que realmente influencia um fenômeno, não precisamos trabalhar com n variáveis de controle adicionais só para endereçar o risco de não termos considerado tudo.

É claro – mas é melhor dizer: para chegar em E = mc², Einstein escreveu mais linhas de equações do que existem dogs caramelos no mundo (ok, talvez nem tanto). Foi o domínio e a compreensão do fenômeno que ele queria descrever que permitiu o refino de tantas equações e extrapolações matemáticas em uma elegante equação de apenas 3 variáveis. Não quer dizer que uma equação com mais “entradas” é malfeita. Apenas quer dizer que ela precisa de mais informação para reproduzir matematicamente um fenômeno e permitir predições daquele fenômeno no futuro, através dela.

George Box, com sua prancha importada, assombrou a meninada da ciência. O estatístico calhorda advertia, em algum lugar distante da última década de 70, que “todos os modelos estão errados, mas alguns são úteis”. Coitado de Georjão. Não tenho razões para dizer que ele era calhorda. Talvez fosse. Mas eu só quis brincar com “surfista calhorda” dos Replicantes, que eu ouvia enquanto escrevia o começo deste post.

Eu já falei do Georginho por aqui, no passado. A minha insistência (quase-obsessão) com Lord Box (eu também não sei se ele era um Lord) é que a mensagem dele é, ao mesmo tempo, óbvia e perspicaz para quem tem amor à ciência. Ironicamente, a mensagem parece estar perdida nos tempos atuais, especialmente aos olhos dos que promovem as ciências sociais aplicadas.

George Box, químico na origem, estava com uma bucha gigante em suas mãos quando teve que dominar sozinho a área de estatística teórica para demonstrar aos seus chefes que eles estavam indo pelo caminho errado. O pior é que o caminho errado era pavimentado de boas intenções e “boa ciência” (contas e mais contas e mais contas). George teve que evangelizar que a compreensão do mundo pelas lentes de modelos (matemáticos, sociológicos, químicos […]) é sempre incompleta, sempre imprecisa, sempre falha. E, então, o que fazemos? Jogamos todos os modelos/equações/teoremas fora? Claro que não. Só não podemos perder de vista, em nenhum momento, de que todos eles – mesmo os que nos são úteis – estão errados.

Qual é o crime que o(a) cientista (matemático, físico, biológico, político […]) comete quando se esquece que todos os modelos estão errados? Ele(a) passa a culpar a realidade pelo desvio em comparação com suas previsões/modelo. É o triste caso do rabo que abana o cachorro, versão ciência.

Ontem, na capital paulista, amanheceu com sol, 2 de outubro, tudo funcionando, limpeza, jumbo… De madrugada, eu senti um calafrio. Não era do vento, não era do frio (se não notou, note: Racionais™)… O calafrio era o medo de estar sendo enganado da mesmíssima forma que boa parte dos estado-unidenses foram enganados em 2016.

Em 2016, as pesquisas de intenção de votos (vamos chamar só de “pesquisas eleitorais”), nos EUA, apontavam que Hillary Clinton venceria o pleito presidencial daquele ano. O que ocorreu, todos sabemos: Trump ganhou e, com ele, ganharam os republicanos, boa parte das cadeiras do Congresso daquele país. O mundo ficou estupefato. As pesquisas eleitorais até ali, eram um sólido instrumento de interpretação dos pleitos democráticos estado-unidenses e de predição dos resultados. Mas, se elas conseguiam estar tão equivocadas em suas predições (superando grandemente as margens de erro consideradas operacionais), qual era a chance de toda a percepção sociopolítica dos EUA estar equivocada?

Veio 2020, Trump perdeu a eleição para Biden, mas por margem bem menos avantajada do que se supunha, novamente, por meio de pesquisas eleitorais. Dessa vez, é humanamente possível argumentar que as pesquisas não estavam tão descoladas da realidade. Eu discordo dessa defesa. Em 8 estados dos EUA, a distância entre os candidatos foi de apenas 3.5% e metade desses eram estados em que as pesquisas tinham outra expectativa, uma bem mais favorável a Biden. Uma pequena mudança nessa realidade e Trump estaria em seu segundo (e, quem sabe, permanente?) mandato.

Com duas eleições equivocadas na – por muitos considerada – maior democracia do mundo, e tendo a experiência brasileira em 2018 se equivocado igualmente, a minha expectativa – e a de muita gente – era de que os institutos de pesquisa eleitoral haveriam feito a lição de casa, reaprendido a fazer pesquisa de intenção de votos, criado técnicas e métodos de “detecção de descolamento da realidade” (deve haver nome mais científico como “desvio da mediana” ou coisa que o valha) e… E… Nada disso aconteceu.

Verdade seja dita, a maior parte dos institutos de pesquisa de grande porte, no Brasil, não vinha prometendo a vitória em primeiro turno para Lula, em 2022 (embora as projeções permitissem essa conclusão, com só um pouco de otimismo na leitura). Não, o problema não eram os números de Lula. Na verdade, quase todas as pesquisas chegaram bem perto da realidade para o Ptista. Onde elas falharam miseravelmente foi na predição do teto de Bolsonaro. O teto, como se confirmou ontem, é assustadoramente mais alto. Muito mais alto. Mesmo a Paraná Pesquisas, envolvida com algumas polêmicas e acusações de enviesamento, ainda errou o teto de Bolsonaro por 4 pontos percentuais. Não é pouco.

O Bolsonarismo não está desgastado, a pandemia não machucou essa marcha da extrema direita brasileira, a fome não assusta o eleitor das classes C e D o suficiente para fazê-lo voltar na opção. Pelo contrário: Essa marcha da extrema direita está muito perto de emplacar a façanha de colocar um carioca que – como dita o meme – não sabe a diferença entre São José dos Campos, no Sudeste paulista, e São José do Rio Preto, no extremo Noroeste, para governar o estado de São Paulo – o estado mais orgulhoso e afeito ao “nós vs. o resto” da nação… O estado que mais encrenca com o Rio, vai ter um governador carioca que não sabe onde vota em São Paulo, o estado mais rico do país. Esse é o tamanho do poder Bolsonarista, em 2022.

Diferente das pesquisas e sua natureza amostral (onde você extrapola os números do todo a partir de uma parte), o 1º turno é um censo. Mais que um censo, ele é a verdade; ali não existe “voto envergonhado”. O cidadão põe na urna aquilo que ele absolutamente quer que aconteça. Culpar os resultados do 1º turno é como culpar a realidade pois ela não respeitou suas equações que tentaram explicá-la. E esse é um pecado imperdoável para qualquer um que se diz “do lado da ciência”.

O modelo de pesquisa eleitoral que praticamos nas Américas está errado. E, do jeito que ele é, sequer é útil, pois erra e erra em margens inaceitáveis de tão abertas que são. Pode ser A ou pode ser B, e a chance de A e B é de 50%… Não dá para decidir com base nesse tipo de predição. Ou melhor, tanto faz se você considerou as pesquisas para se informar ou não.

Veja: não há qualquer dúvida por aqui de que estatística é uma ciência. A estatística não se resume, de forma alguma, à piada da cabeça no forno, o pé no freezer e a temperatura agradável do paciente. Estatística tem um alto poder de predição de eventos futuros e isso é um resumo – porco – do que é a ciência: a capacidade de compreender fenômenos passados e seus mecanismos e, dessa profunda compreensão, extrair modelos (equações, teorias, leis, lógicas […]) que permitem predizer, com grande margem de certeza, como se dará aquele fenômeno no futuro. Estatística é, sim, ciência.

Mas a forma como usamos a estatística para prever o comportamento do eleitorado em democracias – especialmente as americanas [EUA, Brasil, Chile …] – do século XXI, está morta. Se não está morta, falta só desligar os aparelhos. Eu cheguei ao absurdo de ler um cientista político sério dizendo que a pesquisa para Senador “sempre foi um chute”. Esse é o grau de avacalhação de algumas pessoas da área. Oras! Se é um chute, por que me dar ao trabalho de consultar as pesquisas, então? Por que os institutos se dão o direito de vender isso? Vender como estatística o que é mero chute não seria estelionato ou charlatanismo? Mais que pseudociência (no caso da pesquisa para o Senado), estaríamos diante de crime contra o consumidor?

Para o desagravo do autor do tiro no pé, eu sei que ele é BEM mais sério do que isso. Mas essa resposta para tentar defender a validade das pesquisas foi um senhor desserviço. Ele claramente se esqueceu de que todos os modelos estão errados e que só devemos salvar os que são úteis.

Para mim, é fato consumado de que não dá mais para sair às ruas com um bloquinho embaixo do braço, um sorriso no rosto e perguntar “em quem o senhor (ou a senhora) vai votar para presidente?”. Isso simplesmente não é mais capaz de explicar a realidade política do nosso tempo. E é um grave problema para a democracia porque a lógica dos partidos que ainda querem jogar o jogo democrático é utilizar as pesquisas para saber se a campanha está focando nos pontos certos, falando dos problemas que importam à maior parte do povo, e endereçando medos e receios em relação ao próprio programa político. Sem nenhum tipo de pesquisa política, as campanhas serão basicamente construídas às cegas. Como isso é ruim para todo o sistema democrático? Simples: O candidato que mais falar em superstições e crendices que o povo crê, leva o pleito. E o sistema se retroalimenta a cada 4 anos. Mais superstição, mais voto. Mais ressonância de medos, mais membros na seita. E esse é só um aspecto dentre tantos outros.

Não é possível governar (bem) um país, sem censo. O censo é o GPS de um avião no meio de um céu nublado. Do mesmo modo, não é possível fazer uma campanha política, de qualidade, e refleti-la em seu projeto de governo, sem as pesquisas. MAS… Mas… Nesse exato momento, as pesquisas são um GPS que aponta São José dos Campos e do Rio Preto como cidades quase vizinhas. Um pequeno desvio é uma coisa. Um grande desvio não é aceitável. Nem no GPS, nem na pesquisa.

O problemasso é que seres humanos se apaixonam pelas ferramentas que têm. Quando você ama martelos, tudo vira prego. Quando você ama pesquisas e elas estão erradas, não são elas que estão erradas, é o(a) eleitor(a). “Ah, os evangélicos”, “ah, o Bolsonarista mente”, “ah, a periferia não entende sua classe social”… A estupidez da Esquerda pode ser bem parecida (senão idêntica) à da Direita.

Todas as respostas acima estão sendo dadas, aqui e ali, para explicar como o “desgastado Bolsonarismo” deu um cruzado de direita na boca da “Frente Ampla”. O combate não acabou. O segundo assalto vem aí e tudo indica que Lula deve, sim, vencer, se ao menos trouxer para casa o grosso (~70%) dos votos de Tebet e metade dos votos de Ciro, sem perder o que já conseguiu. Mas o susto foi grande.

Enquanto política não é futebol, o clima é mesmo o daquele time de estrelas que vai pra final contra um time azarão, toma um empate aos 90 minutos + acréscimos e acaba tendo que jogar o golden goal com os cavalinhos paraguaios. O time grande entra na prorrogação se sentido pequeno. O time pequeno entra gigante.

Se Lula, o PT, e todos nós – que não votaríamos em Bolsonaro nem que a disputa fosse entre ele e o próprio Satã – não organizarmos as ideias e ESQUECERMOS as pesquisas como ferramenta de aferição da realidade, o risco que todos nós corremos é o de achar que os ~5% a mais de Lula são suficientes e que não há risco de votos virando ao longo dessas 4 semanas até o dia 30. E aí, novamente, vamos culpar a realidade, o eleitorado, as fake news […] por seu “imenso desrespeito” às nossas previsões e modelos.

Esquecer que o eleitor – ao menos o brasileiro – gosta de votar em quem vai ganhar é um erro crasso. O sentimento moral – mesmo que não se comprove tanto nos números – é de que Bolsonaro e quem ele apoiou venceram o primeiro turno. A realidade é menos festiva. Mas a realidade pode não importar para eleitores buscando ficar do lado do time que venceu o primeiro jogo da final.

Voltado a cutucar uma ferida já comentada, a ideia de que as pesquisas não estão acertando porque o Bolsonarista não responde pesquisa, ou responde e mente (por vergonha ou sacanagem) é de todo idiota. Idiota, canalha, imbecíl… Escolha o termo que quiser. É obrigação do pesquisador da área social preparar seu modelo para lidar com a diferença entre o que o ser humano diz e faz – porque isso é basicamente o objeto de estudo das ciências sociais aplicadas. E, para isso, o modelo precisa, por vezes, ser deselegante – como as equações de aerodinâmica – e coletar muitas variáveis, medir o mesmo objeto pelos mais variados ângulos, questionar a mesma coisa de diversas formas diferentes, acarear uma amostra com outra e, no pior cenário, ter a coragem de abraçar o ceticismo e descartar a amostra por inteiro (porque ela não é confiável/está contaminada). A única razão para que isso não ocorra é o ego de quem (CPF ou CNPJ) pesquisa. Se você se apaixona pelo modelo e o modelo está errado e, ainda por cima é inútil, vai ser difícil reconhecer isso; especialmente a segunda parte.

Vai ser preciso reinventar os sistemas de pesquisa eleitoral para o futuro. Não é possível confiar no Zap do Bozo. Não é – mais – possível confiar nas pesquisas tradicionais, igualmente. Mas não dá para fazer política de qualidade só com fé em Deus e sorriso no rosto. Notem o que eu disse: política de qualidade. Política populista, retrógrada, necrófila, claro: esta se faz pelas formas mais abjetas possíveis.

Enquanto os grandes institutos não reformularem seus métodos, não aumentarem as variáveis na equação e não forem absolutamente céticos no descarte de amostras contaminadas, as pesquisas eleitorais serão equiparáveis a astrologia. Pode dar certo, pode dar errado, mas efeito e causa não tem qualquer correlação. Vão acertar aqui e ali, quando o eleitorado quiser que acertem. Vão errar sempre que o eleitorado quiser que errem. E com 44% de Bolsonaristas no grupo dos 79% de eleitores (do universo de 156 milhões de eleitores habilitados) que compareceram às urnas, eu fico muito à vontade para dizer que as pesquisas tradicionais ainda vão errar muito e para sempre.

Por este motivo, daqui por diante – e enquanto não houver publicidade de reformulação do modelo – eu trato pesquisas eleitorais como trato a previsão do meu signo: pode ser divertido de ler e acompanhar, mas é essencialmente falso e ninguém – que preza a ciência – deveria se guiar por aquilo para saber o que fazer da própria vida (ou com o próprio voto).

Material consultado:

All models are wrong – Wikipedia

George E. P. Box – Wikipedia

Why Polls Were Mostly Wrong – Scientific American

Did Biden win by a little or a lot? The answer is … yes. (nbcnews.com)

Fluid mechanics – Wikipedia

No One Can Explain Why Planes Stay in the Air – Scientific American

E = mc² | Equation, Explanation, & Proof | Britannica

Lift Formula (nasa.gov)

aerodynamics-and-aircraft-limits.pdf (aerostudents.com)

Institutos de pesquisa precisarão rever metodologias, diz professor da USP – BBC News Brasil

Sobre o 7 de Setembro e o voto útil

Créditos da imagem: Sérgio Lima / poder360.com.br

AVISO: Este é um artigo de opinião. Portanto, não há extensa pesquisa ou fontes a serem citadas, como eu geralmente faço. Tudo o que digo a seguir é minha, e só minha, opinião e nada além.

E a vida já não é mais vida

No caos ninguém é cidadão

As promessas foram esquecidas

Não há Estado, não há mais nação

– Hebert Vianna

Hoje, 7 de setembro de 2022, os brasileiros deveriam comemorar os 200 anos do “7 de Setembro”; a data histórica que marca a independência da então colônia para com a Coroa Portuguesa, colônia que viria a se tornar a nação brasileira.

“Deveriam”, sim, porque os brasileiros não puderam comemorar a data. O presidente atual lhes negou o direito. Pelo menos, negou para os ~68% que não estão apoiando a reeleição dele (a porcentagem obviamente reflete apenas o universo de eleitores habilitados, mas, projetemos que ~100 milhões podem representar a opinião 210 milhões [e, de fato, representarão, já que eles decidirão o que está por vir na política, para todos que moram aqui]).

Bolsonaro, como fez e faz a todo momento, sequestrou uma data nacional instituída há 200 anos. Já havia sequestrado a bandeira nacional, a camisa da seleção brasileira de futebol (que não mais pode ser a “canarinho”, se quiser ser de todos nós), bem como sequestrou as Forças Armadas, instituição que deveria ser do Estado democrático de direito brasileiro, e não do Jair. Agora, sequestra um feriado nacional, uma data histórica da maior importância (já viu filmes estado-unidenses sobre o 4 de julho? Imagina se alguém sequestrasse a data em prol apenas de uma parcela da população daquele país), e o direito dos brasileiros de reconhecer o valor cívico e histórico da Soberania nacional.

O que Bolsonaro (e seu comitê de campanha) fez hoje, claro, são apenas novos episódios de possíveis crimes (no plural) para a longa lista de suspeitas que recaem sobre o candidato à reeleição. Se não há tipificação para “sequestro de data nacional”, há tipificação para o abuso de poder econômico e desvio das funções (ou uso indevido) da máquina pública. Tipificações presentes tanto na Lei das Eleições (Lei 9.504/97) em seu art. 73 e incisos, combinado com o art. 74 do mesmo diploma, quanto na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) em seu art. 22 e incisos.

Bolsonaro não foi Presidente do Brasil, nem Chefe de Estado, no 7 de Setembro. Foi, isso sim, candidato em comícios em Brasília e Rio de Janeiro (em São Paulo ele não participou dos atos, e o ato na Paulista não tinha o envolvimento direto de militares, até onde me consta). Comícios bancados pelo Estado brasileiro, pelo erário, pelo imposto de todos nós. Ainda usou as Forças Armadas para realizar o mais caro comício que se tem notícia (tem ideia de quanto custa ativar a Esquadrilha da Fumaça em prol de um candidato? E mobilizar navios de guerra? E lançar paraquedistas? E montar palanques? E patrulhar milhares de pessoas com forças policiais e de inteligência?).

No palanque do Distrito Federal, recebendo o Chefe de Estado de Portugal, nação (hoje) amiga e historicamente relevante para nós, o escanteou enquanto ficava lado a lado com Luciano Hang, o autointitulado “véio da Havan”, recentemente mais conhecido pelo grupo de WhatsApp “Poderosos pelo fim da Democracia” (não… Esse não era o nome do grupo. Sou eu lhe fazendo o favor da tecla SAP).

No mesmo palanque, Bolsonaro lembrou seus sectários de que é preciso convencer os outros (que não querem votar nele) de que ele é o futuro mais brilhante para o Brasil. Para dar mostras das vantagens que tem a oferecer, sugeriu comparar quem tinha a melhor primeira-dama, rebaixando Michelle a item de exposição para seus eleitores-avalistas. Ele, que trata tão bem as mulheres, beijou Michelle de forma inesperada e – urgh – de língua, por vários segundos, em cerimônia solene… Depois, usando o microfone, puxou o corinho: “imbrochável! Imbrochável!” (sic). O Presidente Marcelo Rebelo assistia a tudo, calado… o véio da Havan ria… A primeira-dama fazia a habitual cara de “eu não estou aqui” enquanto sorria protocolarmente… Naquela manhã, câmeras captaram desentendimento próximo ao carro oficial, entre aquele projeto de ditador e a mulher que ele trata como mercadoria em exposição.

De tudo que foi dito, NADA remeteu ao 7 de Setembro. Nenhuma frase sobre a História, sobre os valores de um Estado livre e autodeterminado. Não houve sequer uma menção às tropas que desfilavam (talvez porque ele acredite que isso possa protegê-lo das denúncias de crimes eleitorais? Se foi só por isso, perdeu a chance de bajular parte relevante de sua base política e de força, já que afastar a incidência dos crimes mencionados não é possível diante do bom-senso e de honestidade mínimos. Só um(a) degenerado(a) poderá achar lisura e justificativa nos atos de hoje.

No Rio de Janeiro, os discursos e a confusão entre Chefe de Estado e candidato seguiram iguais ao Distrito Federal. Mais militares bancando o comício com shows, estruturas, segurança, armas, e tudo custeado pelo Estado brasileiro (nós).

Os outros candidatos à Presidência demoraram a reagir. Ciro Gomes, do PDT, foi um dos primeiros a denunciar a possibilidade de crimes de Bolsonaro, em vídeo transmitido pela sua “Ciro TV”. Lula emitiu nota de repúdio em redes sociais, mas sem imagens. Simone Tebet, idem.

O que ocorreria em um país sério seria a inelegibilidade de Bolsonaro para o pleito de 2022, diante das diversas agressões, televisionadas ao vivo, às leis que antecedem (em algumas décadas) os atos de hoje.

Não há legalidade, não há relativização, não há forma de que as leis brasileiras sobrevivam e a candidatura de Jair, também.

Uma delas sairá destroçada pela outra. Conhecendo o Brasil de Bolsonaro, alvo – atualmente – de 147 pedidos de impeachment, não tenho muitas dúvidas – com imenso pesar – de qual será o lado perdedor. Porque o Estado brasileiro está cooptado pelo bolsonarismo. Ele invadiu os Poderes, seja em Pacheco que não se impõe, seja em Lira que o blinda e o protege do alcance da legislação. O Judiciário, em sua esfera máxima, o STF, ainda resiste, muito embora a infiltração já tenha começado por lá também, na figura do Ministro Kássio Nunes Marques que, abertamente, atua no sentido de garantir a proteção das metas do presidente no Judiciário.

Por tudo isso, não creio que haja espaço para que a lei seja cumprida. Bolsonaro não pagará por seus crimes, pelo menos, não antes de sua derrota nas urnas. E não obstante eu entenda claramente que é melhor que sua punição ocorra após a derrota nas eleições de outubro (para que não se crie um falso mártir), a dolorosa verdade é que Bolsonaro criou sua Escola nesses 4 anos. Se o presidente da República, com todos os holofotes que o seguem, pode sapatear na Lei brasileira, o que fará o prefeito da cidadezinha que ninguém sequer conhece? O que farão os deputados dos rincões do Brasil? É o problema do guarda da esquina, outra vez. O dano já está aqui. Com ou sem Bolsonaro. Revertê-lo será muito difícil e levará muito tempo, ainda que tudo dê certo.

O voto útil

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis… ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas!

– Mario Quintana

É forte, como nunca, a discussão na Esquerda brasileira sobre a defesa e a “evangelização” do voto útil em prol de Lula.

Para resumir, caso você desconheça, “voto útil” é o conceito prático de que diante de uma ameaça tão grande à democracia, como Bolsonaro, os brasileiros sensatos não podem se dar ao luxo de não construir uma resposta firme e terminativa ao reinado tresloucado do falso Messias, já no primeiro turno, em 2 de outubro.

Ou seja: diante do que se tem em todas as pesquisas de intenções de voto para o cargo de Presidente da República, fica cada vez mais cristalina a impressão de que um segundo turno será, mesmo, entre Lula e Bolsonaro. E se Bolsonaro é o mal maior, o que os eleitores não-bolsonaristas têm de fazer nesse momento é adiantar o voto que será feito no segundo turno, já para o primeiro. Se isso ocorrer, Lula vence em primeiro turno, e a soberania popular se fará ouvir alto e claro, logo na primeira oportunidade.

À luz da razão, realmente é difícil contra-argumentar: se nós sabemos o que vai acontecer (Lula vs. Bolsonaro no segundo turno), porquê nós – que não votaremos em Bolsonaro nem que a opção a ele seja o próprio Satan em toda sua malignidade – deixaremos que Jair ganhe sobrevida ao combate de 2 de outubro? Certamente este é um forte argumento. Mas, eu ouso dizer que é cedo para decidir isso.

Eu já sofro com a realidade à frente. Se tudo der certo e Bolsonaro cair, tudo indica que 2023 começa com Lula presidente. E, sendo isso verdade, o dia seguinte à vitória de Lula me colocará na oposição a ele. Não concordo, em nada, com as visões de política em Lula. Concordo, sim, com Ciro no sentido de que o populismo de Lula gerou algumas Escolas por onde o populismo de Bolsonaro aprendeu e cresceu. Não vou tão longe quanto meu candidato preferido, em dizer que Lula e Bolsonaro se equivalem. Esse é um erro interpretativo grave de Ciro, a meu ver.

Não, Lula, com todos seus defeitos e biografia política criticável, ainda acredita na democracia brasileira. Foi ele que iniciou a observação à lista tríplice para indicação de um(a) PGR, fortalecendo e muito a função dessa instituição. Ele aumentou muito a autonomia da Polícia Federal. Idem para o MPF. Não há exagero em dizer que o governo Lula é diretamente responsável pelas condições para que a Lava-Jato acontecesse, em primeiro lugar. Não necessariamente sabendo como tudo acabaria, mas ele e seu governo certamente poderiam ter interferido para solapar as investigações. Mas não o fizeram.

Bolsonaro é oposto de tudo isso. Usou, sempre que pôde, de seu cargo e de seu poder para interferir e paralisar investigações contra seus parentes, seus aliados e contra si. Sabotou, tanto quanto possível, os mecanismos “de polícia” do Estado brasileiro (COAF, IBAMA, FUNAI, PF, ABIN, PGR… a lista poderia ser maior se eu quisesse). Bolsonaro é o presidente que riu de quem morria sufocado pela COVID, sem leito em hospital. Bolsonaro é dono do “e daí? Não sou coveiro” e da volta de JetSki usurpado da Marinha de Guerra do Brasil, enquanto o povo morria nas enchentes. É amigo e defensor do ministro do MEC que foi negociar favores com outros amigos do presidente e pastores evangélicos. Bolsonaro é pai daqueles que compram mansões de R$ 6 milhões, com salário de algumas poucas dezenas de milhares de reais. Bolsonaro é o patriarca de uma família que comprou mais de 5 dezenas de imóveis em dinheiro vivo (no todo ou em parte). Isso é um pequeno abstract do que é Bolsonaro que, em revista, é extensamente mais perverso e mais canalha do que tal resumo. Mas para que me estender? Sei que, lamentavelmente, falo para convertidos.

Bolsonaro não é fã dos presidentes militares. Ele é fã do torturador, Ustra. Ele acha que o regime militar matou foi é pouco. Ele não é exatamente fã da disciplina e respeito às leis, teses aventadas por quem proclama a superioridade daqueles tempos. Ele só é fã da perversidade dos porões da ditadura. Até porque, se gostasse de lei e ordem, não teria sido expulso do Exército por planejar um atentado terrorista contra a instituição, como “forma de barganhar salário”. Ocorre que a punição para oficial militar é a mesma punição para magistrados: promoção e aposentadoria. Brasil, 200 anos de independência.

Não, Lula não é *meu* candidato à Presidência. Como eu disse, sendo ele eleito em outubro, no dia seguinte, eu estarei na oposição a ele. Porque, para mim, ele não tem o projeto político a altura do Brasil. Não importa o que ele fez pelos pobres (e seu governo fez MUITO), em 8 anos. A bússola política que o norteia não levará pelo caminho que eu entendo ser o melhor para meu povo. É possível cuidar das mazelas sociais e buscar outros caminhos mais longevos para o Brasil em outros candidatos e propostas. É o que creio, sincera e honestamente.

Mas, nada disso importará se a democracia acabar. E eu vejo os “céticos”, quanto a um golpe de Jair, sustentando raciocínios como “ah, até parece que o Jair vai acabar com a democracia”. Não é preciso acabar com ela, nos moldes de 1964. Aquilo é escandaloso demais para nossos tempos. Os safados que o apoiam ainda querem viajar para Miami e um golpe tradicional seria um belo dum impeditivo. É mais fácil emular uma democracia, como Polônia ou Hungria vêm fazendo. É possível ter a “casca” da democracia sem que ela exista, de fato. E este, senhoras e senhores, é o projeto de Jair Messias Bolsonaro. Não tenho qualquer dúvida quanto a isso.

Entristece-me imaginar que terei que ajudar a reeleger Lula. Os ~100 milhões de eleitores do Brasil não me deixarão outra opção, ao que tudo indica. Se fosse verdadeira a declaração “nem Bolsonaro, nem Lula”, é claro que Ciro, Tebet, D’Avila, Soraya[…] ou qualquer outro, estariam bem colocados nas pesquisas. Não estão. Quer dizer que os que dizem isso provavelmente seguirão votando no Mito. Só não têm a coragem de defender a posição indefensável para gente verdadeiramente de bem e que não se compraz com a morte e o sofrimento alheio.

Contra o voto útil, ressoa forte a mensagem de que o seu candidato ideal só não vai para o segundo turno porque todos os que acreditam nas ideias dele estão pensando como você. Eleições, afinal, não podem ser como uma corrida de cavalos: nunca deveríamos ir às urnas para tentar adivinhar e votar “em quem vai ganhar”. O voto de primeiro turno deveria, sempre, ser movido pela afinidade entre eleitor(a) e candidato(a). Em eventual segundo turno, sim: vale praticar o pragmatismo de escolher aquele(a) que menos lhe desagrada, caso seu(a) candidato(a) de primeiro turno não esteja por lá.

Mas, é impossível dizer que 2022 é só mais um ano eleitoral no Brasil. Não é. A democracia está, de verdade, em risco. Como eu afirmei, é possível criar uma mentira com cara de democracia e destruir a verdadeira por completo, e não tenho qualquer dúvida de que Bolsonaro a destruirá se a chance lhe for dada.

Eu, pessoalmente, não considero equivocada a pregação em prol do voto útil, ainda mais diante da ameaça de que Bolsonaro representa e da falta de respostas da Justiça aos seus ataques permanentes e seguidos. Uma derrota na urna, em primeiro turno, seria uma dolorosa punição – ainda muito aquém da punição que ele e seus aliados fazem jus.

Igualmente, considero totalmente justificada a ideia de defender projetos e candidatos no primeiro turno, porque o preço de não fazê-lo é muito alto: 4 anos em nossas vidas não são pouco tempo. Se seu(a) candidato(a) é muito melhor do que as opções, ninguém pode – justificadamente – reclamar de sua opção por apoiá-lo(a) no primeiro turno de 2022, mesmo que isso prolongue a agonia brasileira de ver Bolsonaro em campanha e no vale-tudo por mais 4 semanas. A agonia, afinal, foi contratada pelo nosso povo, em 2018. De algum modo, o gosto amargo é merecido. O triste é que nós, que não votamos nessa aberração, também estamos mascando o fel.

O voto é secreto, por força de mandamento constitucional. Todos têm o direito de divulgar, pré ou pós eleição, em quem votarão/am. Mas ninguém tem a obrigação de informar em quem vai votar ou em quem votou. E isso é fundamental para a liberdade de escolha dos nossos representantes nos ramos dos poderes Executivo e Legislativo. Municipal, estadual e federal. Voto útil, ou não, só você precisa saber da sua decisão.

Se você pretende votar no menos pior, logo no primeiro turno, ou firmar sua filiação a aquele(a) que você considera o melhor para o futuro do seu país, ninguém tem o direito de lhe dizer que você não está exercendo a consciência política e cidadã.

A ameaça de um segundo mandato bolsonarista não pode ser arma apontada contra a cabeça de ninguém. A ameaça de um segundo mandato bolsonarista não pode ser ignorada, igualmente.

Cabe a você, cidadão/ã (portanto, eleitor(a)), escolher qual o custo de lutar pelo futuro do Brasil: amargar 4 anos com a responsabilidade de ter escolhido o menos pior, de cara, ou o sofrimento do calvário prolongado de um segundo turno com, provavelmente, o mesmo resultado.

Seja como for, o pesadelo não acaba ao fim de outubro. Pelo contrário: se absolutamente tudo der certo e a Bolsonaro for negado o acesso a mais 4 anos para a destruição do Estado brasileiro, ele ainda terá 3 meses como presidente para despejar sua raiva e ódio contra tudo e contra todos. Os abusos ficarão ainda piores, não porque seu segundo mandato não viesse a ser um evento terrível. Mas, porque ele vai concentrar seus atos em 3 meses e tentará de tudo para sobreviver ileso aos 4 anos de crimes cometidos. A chance de um golpe de Estado certamente crescerá.

Não tenho criatividade para imaginar o que ele fará ao saber que perdeu a Presidência do Brasil. Mas, ele me ensinou que o ataque às instituições é seu modus operandi. E me ensinou que ele não tem qualquer pudor em transgredir as leis que ele jurou cumprir, não importa o tamanho (do risco) da punição.

Duzentos anos de independência e o povo brasileiro segue dependente e carente de salvadores. Melhor seria se valorizássemos instituições, políticas de Estado, e mecanismos que não dependem de partidos ou candidatos, ou ainda, do capricho dos tempos.

Não sendo possível pensar nisso tudo, diante do caos instalado, é dever, e pesará sobre o pescoço de cada um, a escolha entre os caminhos atualmente disponíveis para nossa jovem e frágil democracia sobreviver.

Qual sua escolha: o pragmatismo ou a utopia?

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Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito!

Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o estado democrático de direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.

Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.

Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.

A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.

Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.

Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.

Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.

Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o estado democrático de direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.

Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.

Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.

Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.

No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.

Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:

Estado Democrático de Direito Sempre!!!!

Sobre a dignidade de uma vida

Advinha quem é meu avô na foto acima! Dica: Ele é o mais estiloso de todos…

Ontem, vi a feição de meu avô Alcides pela última vez.

Não posso dizer, sob pena de incorrer em falsidade, que isso me pegou desprevenido. Nascido em 1935, contando oitenta e sete anos completos no último domingo, ele já lidava com a decadência de sua saúde há muito tempo. Na última quinta, ele nos deixou.

Um fato ocorreu em seu velório, fato que gerou o gatilho para esse texto. Quem acompanha o blog sabe que não sou afeito à exposição da vida privada (nem a minha, nem a dos demais). Em tempos em que tudo se publica – da foto do prato ao que se faz no vaso sanitário – eu realmente acho que a separação entre vida privada e pública não é mero preciosismo ou cafonice. Pelo contrário: é um dos últimos redutos de defesa de liberdades e direitos – que deveriam ser – indisponíveis; liberdades e direitos que, perdidos, são muito, muito, muito difíceis de se recuperar.

Mas eu falava de um fato: O fato foi que minha tia Rute, a filha mais velha de oito que descendem de seu Alcides, me chamou de surpresa para sustentar algumas palavras ao lado da urna mortuária. Embora eu estivesse emocionalmente bem – tanto quanto se pode estar numa situação dessas – eu recebi a convocação com certa incredulidade e caminhei assustado e com as pernas me traindo até ali, com tantos olhos depressivos vigiando a minha passagem. E como passava na minha cabeça, imagino que na deles também passava a emblemática frase “que p@#$ é essa?”… O que um “pirralho” de trinta e cinco anos – neto, sequer filho – teria a dizer sobre um homem de oitenta e sete anos e alguns dias, e que partira? Se você estava lá e se sentiu assim, saiba que não foi o único. Senti-me um usurpador. Como poderia, eu, falar algo significativo de meu avô para sua mulher, seus filhos, seus outros netos, e tanta gente ali presente e que sentia a dor da despedida de forma muito mais visível e profunda do que eu?

Aqueles trinta segundos, do lado externo até o centro da sala de velório, fizeram minha mente correr em tantas direções; os instintos de “fuga ou luta” disparando, passava pela mente os clássicos cenários de “what if” para um falso desmaio ou uma crise de choro forçada (saídas honrosas, talvez?)…

Pausa por um minuto. Quero promover “desagravo preventivo” à imagem de minha tia Rute (risos). Embora tenha sido ato um tanto quanto impensado, no sentido de não saber se eu era orador adequado, se eu era aceito a representar por toda a assembleia ali em luto, preparado para a missão, com dados, com repertório, com desenvoltura para aquilo… Eu acho que entendo porquê ela fez isso: coisa de vinte minutos antes, ela ouviu eu conversando com outra tia, mais abalada, e eu disse algo como “tia, ele teve uma vida digna, 87 anos de luta… 87 anos e 8 filhos criados de forma honrosa… Se isso não tem valor, se essa vida não pode ser comemorada, o que é que pode?”… E tia Rute me disse “filho, você devia falar isso para todos”. E eu pensei “ah, claro… rsrs…”. E aquilo, para mim, tinha acabado ali. Para ela, não

Sinceramente, quando comecei a falar, eu não sabia bem o que tinha que ser dito. Eu não sabia o que importava, eu não sabia quanto tempo era adequado (nota mental: pesquisar no Google Bing: “Etiqueta na feitura de elogio póstumo”), qual o espaço para uma piada de alívio? É uma comunidade preparada para se alegrar com histórias divertidas que sei de meu avô?… Optei pela sobriedade, optei por uma fala forte, de tom quase marcial. Abri com um forte “bom dia!” e emendei algo como “falo forte, porque meu avô sempre se fez ouvir com clareza, nunca falou ‘para dentro’ e eu não posso fazer menos por ele”. Digo que “emendei algo como” porque, sincera e honestamente eu não faço ideia do que, exatamente, eu falei. Era um misto de “não posso falhar!” com “acaba logo, porra!”.

Para minha IMENSA sorte, eu conhecia dados relevantes do meu avô, como local em que nasceu, destino de sua cidade natal (que não mais existe), sua trajetória até o Sul do país, local e data em que se casou com minha avó, e alguns causos rápidos. “Sorte”, digo, porque essas informações me deram algum estofo para encher um texto que se construía enquanto eu falava. O famoso avião que alça voo enquanto a asa é rebitada… Longe da premeditação de um texto preparado (como este), de uma construção preocupada com a semântica, com a escolha dos sinônimos e de sua carga significativa ao público escolhido; de uma produção textual arvorada em ponderação e recursos de linguística… Ali, naquele momento, o tempo que eu tinha para pensar na próxima frase era o tempo de falar a frase anterior.

Esse foi meu gatilho para este texto; está tudo esclarecido, penso eu.

O motivo para este texto é seguinte: Reparo. Aquele “texto” de ontem foi um improviso mequetrefe, indigno de uma biografia de OITENTA E SETE ANOS. Honesto e sincero, sim, como talvez eu jamais consiga repetir no texto que segue; entretanto, incapaz de dar a dimensão humana que eu realmente credito à memória do homem cujo receptáculo sepultamos no Carmo, ontem.

Um parente me disse “cara, não consigo entrar lá… Não consigo ver o vô assim”. E eu lhe disse “mano, não viemos enterrar o vô. O vô se foi faz um dia. Aquilo ali que vamos enterrar era só o palco onde o show se passou”. E eu realmente acredito nisso; talvez como defesa? Talvez. Mas, para mim, a dor da perda não reside em ver o corpo de alguém. A dor reside no dia a dia, no prato que não se põe mais a mesa, na briga pela programação da TV que não mais existe… Aquilo ali no “caixão” é só o fim biológico. A vida de um ser humano, quando bem vivida, é muito mais do que adeninas, citosinas, guaninas e timinas, respiração celular, meiose e mitose, e reações bioquímicas do gênero que mantêm a máquina pulsando e se movendo.

Meu avô, Alcides Martins de Andrade, nasceu em Corredeira, então munícipio do centro-oeste paulista, na madrugada do dia 13 de março de 1935. Corredeira perderia sua autonomia mais tarde, sendo integrada como distrito de Pirajuí, atual munícipio daquela região. O local é próximo de Bauru, Garça, Marilia[…] cujos nomes servem à memória geográfica de forma mais útil.

Filho de uma espanhola e de um brasileiro, viveu com seus outros irmãos (desconheço o número exato, porém, até onde a memória vai, outras cinco crianças) em uma casa de dura disciplina, típica daquela geração dos meus bisavôs. Conheceu a escassez alimentar, e foi um fruto da baixa instrução escolar pública, tão comum, inclusive hoje, a quem não veio a esse mundo com um sobrenome que signifique, ao trocar em miúdos, “patrimônio prévio”. Começou na vida adulta muito cedo. A ideia de “infância” que temos, hoje, é quase incabível e cem por cento anacrônica para a história de esmagadora parte dos brasileiros que datam dos tempos de meu avô. Por volta dos quinze anos já tinha a profissão de comerciário, trabalhando para diversos armazéns da região; a carreira relativamente precoce, me contou certa feita, também foi uma forma de “se proteger” do duro trabalho braçal que tinha que realizar ao lado de seu pai.

No começo dos anos 1950 migrou para a cidade de Alvorada do Sul. “Alvorada do Sul” que, apesar do nome, está no norte do Paraná, coladinha ao rio Paranapanema, rio que ajuda a dividir fisicamente os estados de São Paulo e Paraná. Foi lá que, em 30 de outubro de 1954, casou-se com a senhora minha avó (e que ainda está conosco), dona Lourdes Maria Madruga (também natural de São Paulo, mas de Pontal, no norte paulista, acima de Ribeirão Preto), e que viria a adotar seu sobrenome após o casamento.

Foi também por lá que minha tia Rute e minha mãe vieram à luz. Depois delas, ainda viriam outros seis filhos, em diferentes lugares do Sul do Brasil: Débora, Rubens, Itamar, Marcos, Davi e Paulo Sérgio (PS: já deixo sinceras escusas aos citados por qualquer imprecisão, contudo, essa é uma história sobre o vô e não sobre os senhores, e ela vem da minha memória que, por questões óbvias, não faz compasso em tudo que é pregresso à minha existência… 😊).

Meu avô foi um homem que trabalhou em ramos muito diferentes ao longo da vida. De homem do campo a comerciário, passando por taxista, zelador, vendedor, corretor imobiliário, até chegar à profissão que lhe possibilitou estabilizar na vida: Carpinteiro. Nessa profissão, fez a vida que todos seus descendentes vieram a conhecer. Tudo que construiu quanto a patrimônio material em São Paulo foi fruto dessa atividade.

Até onde a memória me permite acessar o passado, se instalou provisoriamente com a grande família na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, em algum ponto na virada dos anos 1970 para os 80. Ali cresceram meus tios, de fato, sendo que a maior parte das memórias que contam vem daquele período. Morariam, ainda de aluguel, por um tempo, no Jardim Santa Terezinha, hoje próximo ao Shopping Aricanduva, até finalmente adquirir a propriedade no Jardim Maringá (Vila Matilde), onde eu já começo a ter memórias claras, embora eu me lembre muito genericamente do tempo no Jardim.

A carpintaria rendeu bons frutos a meu avô e, nesse intento, ele também levou meu tio Rubens que, sem grandes opções de escolha (tal qual a história do próprio pai), sendo o homem mais velho dos filhos de seu Alcides, trilhou (e trilha) os passos profissionais do pai. Meu avô, em algum ponto dos anos 1990, tinha fama suficiente para ser contratado por grandes empreiteiras para colocação de batentes, portas, esquadrias e todo o tipo de trabalho em madeira para grandes projetos prediais. Também fez enormes telhados na recém-inaugurada (enquanto zona residencial) Alphaville – bairro de alto padrão na cidade de Barueri, e nas cercanias da Capital. Foi uma época de muita vitalidade para ele, com ganhos que se não o fizeram independente, financeiramente falando, certamente lhe permitiram ter alguns luxos incomuns ao profissional da atividade braçal, como carros do ano (exemplificado num imponente Opala Diplomata), uma casa assobradada, mobília boa e, enfim, o sonho de MUITA gente – o que, a despeito de julgamentos tolos [à essa altura] quanto à validade previdenciária e inteligência patrimonial, não eram sonhos realizáveis pelo grosso da gente que partilhava do mesmo ponto de largada – que fique bem claro: muito perto do zero absoluto – de meu avô.

Com relação à sua família de origem, meu avô não se dava bem com praticamente nenhum de seus familiares. Traído por um de seus irmãos em atabalhoada operação financeira, com uma relação extremamente difícil com seus pais, em especial com a mãe; de minha memória, só me lembro dos raros encontros entre vô Alcides e “tio” (-avô) Alfredo (ao lado esquerdo da posição de meu avô, na foto acima), seu irmão caçula, àquela altura, integrante já aposentado da Força Pública de São Paulo. O capítulo em que meu avô tentou ingressar na PM paulista não cabe de ser contado por estas bandas, porém, é hilário…

Em algum ponto dos anos 90, o primeiro baque em sua saúde: Teve que lidar com um quadro gastroenterológico complexo. Sofreu com a úlcera péptica, vesícula e mais algo; foi à cirurgia algumas vezes. Em certo ponto, por complicações nas intervenções, chegou a ser desenganado pelos médicos, conforme se relata nos causos que a família conta aqui e acolá (lembre-se: eu posso até ter testemunhado isso tudo, mas não tinha mais do que seis ou oito anos de idade).

Já nos anos 2000, tomado por algumas idealizações de como fazer riqueza material, enveredou em projetos comerciais alheios ao seu ramo e desastrosos em resultado, com parceiros desqualificados, amargando o prejuízo. Como costuma se dizer, maldosamente (é claro), no mundo dos negócios: “quando um lado entra com dinheiro e o outro lado entra com a experiência em um negócio, o primeiro sai com experiência, e o segundo sai com o dinheiro”.

Uma coisa que me chamava a atenção nos últimos tempos é que a imagem residual deixada por meu avô nos outros era a imagem de um homem duro, de palavras afiadas, de pavio curto e humor explosivo. Sinceramente, ele era tudo isso. Não se frustrava em “avisar” as mulheres da família de sua eventual decadência de um padrão estético que sabe-se lá qual era; não se esquivava de chamar esse filho de preguiçoso e aquele outro de abobado. Era um idoso que, nos últimos tempos, não fazia questão de evitar o confronto. Reconheço que o trato com o vô não era dos mais simples. Todavia, também peço vênia a quem tenha sido ofendido(a) para lembrar que é difícil ser feliz e “pra cima” sentido dor o tempo todo. Ele, nos últimos tempos, lutava com uma progressiva falência cardiovascular e passou os últimos anos com bem menos do que cinquenta por cento do coração em funcionamento. Disso decorriam tonturas, enjoos e outros desdobramentos como a falência renal e de demais sistemas que, em última instância, levaram a vida dele ao fim.

Contudo, quero falar do vô Alcides que muita gente não teve a chance de conhecer (ou simplesmente não se recorda; talvez, por ter suplantado as memórias boas com as imagens dos últimos tempos): meu avô era um farrista. Sim, isso mesmo: um farrista. Na juventude, soube tocar Sanfona (no Sul, preferem “Acordeon”) e se produzia inteiro, com direito a brilhantina no cabelo e todo o aparato para bailes que varavam as noites. Quando vejo o humor de boa parte dos meus tios e de meu irmão ou de meu primo, Felipe, vejo muito a irreverência e até a insolência de meu avô nos tempos áureos de minha infância. Meu vô era, acima de tudo, um contador de causos. De naves alienígenas a fantasmas no telhado e tudo no meio disso; e não estou exagerando na temática: eu ouvi isso tudo e um pouco mais. Gostava de umas conversas longas e dava risadas espalhafatosas enquanto assistia “A Praça é Nossa”. Gostava de vinho naquelas embalagens pequeninas de CINCO LITROS. Gostava de goiabada com queijo. Gostava da Sociedade Esportiva Palmeiras, gosto que muitos dos filhos e netos herdaram (mesmo que não saibam disso) – mas, não eu! 😛

Por motivos que não me cabe fazer análise – por respeito à sua memória e por falta de conhecimento dos fatos e situações – optou por professar sua fé através da tradicional denominação protestante do Adventismo do Sétimo Dia. Nela, ficou conhecido pela comunidade do Jardim Maringá. Atuou com muito empenho ali, foi diácono e, acredito sem ter a certeza, se tornou até ancião. Essa vertente do Cristianismo, como o próprio seu Andrade, é de maior dureza que o comum, fato que se repete com outras denominações do protestantismo clássico. Com ela, vieram certas proibições (a mais clássica, a guarda [= sem atividades] do Sábado, em reprise ao que se tem no Judaísmo e o Sabbath) e mudanças de comportamento que são esperadas de quem adentra às congregações de mesma espécie. Abandonou o gosto pelo futebol, abandonou o vinho, abandonou a carne de porco, se tornou mais crítico às frivolidades da vida.

Veja, sou obrigado a realizar uma pausa no raciocínio e partir para um esclarecimento. Não teço crítica subjetiva à escolha religiosa de meu avô. Tenho certeza de que a fé o moveu por momentos difíceis e de provação e que, não fosse ela, ele não teria chegado tão longe. Também sei que algumas mudanças em sua vida vieram para melhor; por exemplo, se abster do álcool e da carne de porco (especialmente em embutidos) e diminuir o consumo de carne vermelha, para um homem que quase morreu de problemas gastrointestinais, é extremamente bem-vindo. A igreja também o fez aumentar a temperança, controlar seu gênio iracundo, medir as palavras, praticar mais atos de amor ao próximo, enfim… Não tento, com o trecho anterior, desqualificar a função e o impacto positivo da religião e da denominação por ele escolhida, em seu estilo de vida. Todavia, não posso deixar de entender que também houve impacto em sua capacidade de ser o Alcides farrista, gozador, brincalhão e farofeiro que eu pude conhecer no início de minha vida; e isso precisa ser ponderado.

De volta à linha do tempo, seu Alcides ainda viria a arriscar, já na década de 2010, nova tentativa de alavancagem financeira, agora tentando se embrenhar na complicada rotina das empreiteiras de construção civil. Juntou patrimônio líquido e foi-se embora para Campinas, onde adquiriu terrenos e tentou edificar casas para revenda. No meio do projeto – que já não andava bem – sofreu grave acidente, despencando do telhado da obra (ele era carpinteiro, se lembra?), infortúnio que causou lesão crítica em seu crânio, conduzindo-o a breve período de coma e um novo encontro com a dona Morte. Mais internação, mais médicos, mais avisos para a família de que “dessa vez, ele vai”… Acontece que meu avô era ruim, mano véio… O bicho não tava a fim de facilitar o trampo de ninguém, muito menos o dela. E superou mais essa. No entanto, não sem um preço alto. Daquele momento, em meados de 2010, para frente, sua saúde declinou bastante e ele já passava dos setenta anos há bom tempo.

A pergunta que pode ocorrer ao ler o parágrafo anterior é “por que um homem de mais de setenta anos ainda subia em canteiro de obras? Por que o deixavam fazer isso?”. Se você veio de uma família organizada, com boa educação formal já na geração dos seus avós, eu entendo a surpresa. Se seus pais e avós tinham profissões triviais em balcões e escritórios, também entendo. Mas, essa não é a biografia de meu avô. A biografia dele é tão acidentada quanto ele próprio. Quase sempre, o “planejamento” equivalia tão somente ao desejo de fazer algo. Como alguém que criou sozinho, do ponto de vista financeiro, oito filhos – sendo minha avó, em boa parte da vida, dona de casa e mãe – “planejamento financeiro” não era mais do que um nome complicado e inexequível.

Não estou a “passar pano” para o véio… Ele deveria ter pensado melhor, planejado melhor, executado melhor… E eu deveria ser mais magro, praticar mais esportes, viver menos estressado… A história de uma vida, em retrospecto, é inegavelmente e sempre mais fácil à crítica, do que vivê-la e decidi-la ao vivo e em cores. Ele deveria ter se preparado melhor para a velhice? Certamente. Todos devemos. E mesmo hoje, com internet, Youtube, livros a dar com pau nessa temática, eu *sei* que mais de 70% do meu povo vai amargar nos anos finais da vida, exceto se tiver a “sorte” (que sorte, hein?!) de receber uma morte rápida, ainda em idade economicamente produtiva – que, a depender da previdência pública, que cada vez mais caminha para a congruência entre idade mínima para gozo e a expectativa de vida, vai ser cada vez mais fácil de ocorrer…Vai ver que o “plano” da previdência pública para seus contribuintes é esse, mesmo… Estou tergiversando…

Eu sei, também, das ossadas que vão por debaixo, pelos lados e por cima dessas histórias que aqui narro. Eu sei que, a depender do familiar que se consultar, haverá culpados para situação A, B, C, e todo o caminho até o Z… Ocorre que esse relato não é sobre essas pessoas, eu já disse. É sobre o meu avô. O que essas pessoas fizeram e deixaram de fazer com ele é um problema – se for – para a consciência delas, não para a minha. E agora que ele morreu, nem para a dele. De tal modo que eu acredito sinceramente que empodero mais meu avô, como homem, como adulto, como ser humano capaz que foi, ao lhe dar total crédito pelas decisões acertadas e total responsabilidade pelas decisões erradas. Ao não tratá-lo como se fosse criança a ser enganada e manipulada por terceiros malvados, eu elevo meu avô ao patamar de homem pensante e decisivo para com a própria vida e biografia. Acho que assim, de algum modo, honro sua memória e suas lições (as doces e as amargas) de forma melhor do que passar a apontar dedos para quem fez e deixou de fazer; lugar tão comum em qualquer família enlutada.

E é por isso que você deve conhecer, em detalhes, as histórias de seus antepassados. Nem tanto para contá-las de novo, e ainda menos para tentar revivê-las – um erro que a vida costuma punir severamente: tentar repisar os passos que seus antepassados pisaram. Mas, sim, porque nelas reside sabedoria. Não necessariamente inteligência, nem esperteza. Mas, sabedoria. A sabedoria de que o dinheiro não aceita o desaforo (exemplificando, se você é bom em fazer algo, porém é mau administrador, ou você estuda pra saber administrar, ou você contrata alguém que saiba [com a ajuda de um confiável advogado para redigir o contrato]). A sabedoria de que não importa o quão jovem e forte e esperto e isso e aquilo você possa se sentir; se tiver sorte, você vai chegar à velhice e vai descobrir como ela fragiliza e desautoriza sua potestade.

E é por isso que cabe a você, no hoje, enquanto ainda faz e acontece, se preparar (“previdência” = previsão do futuro) para quando essas qualidades não mais lhe atenderem. E, tendo tido essa conversa com os mais jovens que me procuraram no tema, eu sei que bate forte o desespero. Você olha o mundo, olha seu padrão de vida, olha suas perspectivas e não sabe sequer por onde começar. “Quanto eu junto?”. “Como eu junto?”. “Onde eu junto?”. “Vai dar tempo?”. Alguns resumos da angústia dos nossos dias. De novo, caio na digressão…

Ao me esforçar para escrever esse texto, repenso todos os passos do meu avô para os quais tenho consciência. Vejo quantas lições ele deixou e vejo, com algum pesar, quantos erros, por ele vividos, seus descendentes seguem a reprisar. Figurativamente, isso é como atear fogo a uma herança de ensinamentos e sabedoria que a vida dele trilhou e nos contou; herança que permitiria aos vindouros a benção de não ter que cometer os mesmos erros, de novo. O aprendizado, o laboratório, já estavam lá na história de vida dele.

Sacrifício geracional”. Esse termo pode ser novo para você, entretanto, não é para a Sociologia ou para a Psicologia Social. O sacrifício geracional é o conceito de que não é possível, para o grosso da população humana, dar verdadeiros saltos de qualidade de vida dentro de uma mesma geração. Ou seja: se seu pai é pobre, o provável é que ele viva e morra pobre. Dificilmente – não importando tanto o quanto vocês todos se esforcem – ele viverá para desfrutar de um grande império. O que ele faz com o tempo que tem é, pelo contrário, pavimentar o caminho para seu sucesso. E seu sucesso te levará um pouco mais distante da pobreza e da ignorância (lato e stricto sensu) que havia na largada. E você fará o mesmo com seu filho. E assim por diante. É um processo iterativo (sem “n”, mesmo).

Meu avô viveu o sacrifício geracional na pele. Mesmo que não saiba. Partindo de uma condição de quase abandono – que, repito, não era exclusividade da família de origem dele – conseguiu o feito de criar oito filhos que têm suas profissões claras e suas vidas feitas. Alguns já até atingiram a graduação superior, o que é incrível em comparação com a educação/instrução formal que meu avô teve disponível para si. E todos esses oito filhos tiveram suas famílias criadas; e os filhos dos filhos de seu Alcides, em larga maioria, têm estudo sólido, graduação superior, com boa parte dominando uma segunda língua; têm empregos bons… E isso ocorre não mais como exceção à regra.

Algumas pessoas amarguradas, cínicas ou só maldosas – seja lá o que as move – lerão esse texto pensando “que sarro… O netinho narra a história como se o tal do Alcides fosse um santo.”… Não, eu tenho plena consciência de que meu avô foi bem mortal, no sentido mais amplo que essa palavra possa adquirir. Errou e, talvez tenha errado feio com esse(a) ou aquele(a). Deve ter machucado muita gente pelo caminho de sua vida – contudo, ele partiu e quem não se resolveu com ele, perdeu de vez.

Alcides era homem de não deixar nada engasgado, mesmo que errado estivesse. Pagou o preço por isso, tantas e tantas vezes. Humano, demasiado humano, diria Nietzche… Porém, uma das bençãos de eu ter feito terapia por longo período foi a desconstrução do sagrado, inclusive sobre meu pai e minha mãe. Ao encará-los como seres humanos totalmente passíveis de erros e acertos, como qualquer outro ser humano que anda por essa terra, eu ganhei muita qualidade na relação com eles; relação que segue imperfeita e assim será até o último dia de vida deles (ou da minha vida; o que vier primeiro). Porque a relação humana nasce de seres humanos e, sendo todos eles imperfeitos, a relação humana só pode ser imperfeita, também.

Não, meu avô foi qualquer coisa menos santo, perfeito, sagrado, irretocável… Mas, aqui mora a beleza de uma vida digna: se ele machucou você que lê esse texto, eu não posso pedir desculpas por ele (desculpas são personalíssimas e ele não me deixou procuração com esse tipo de poder). Ainda assim, fico bastante confortável de lhe dizer: na cabeça dele, e diante de toda a inteligência e limitação que a existência dele representava, ele realmente achou que aquela era a coisa certa a se fazer. Meu avô pode ter uma lista, maior do que esse texto, de defeitos e de capítulos pouco aprazíveis. Porém, seu senso de “certo” e “errado” nunca denotou ser do tipo “flexível”. Às vezes, a dureza desse senso beirava ao fundamentalismo. Contudo, fica para outro texto.

Nos últimos tempos, nas conversas que tive com meu avô, ele muito se queixava de seu “fracasso nessa vida”. Era uma constante nos nossos breves e infrequentes colóquios – infrequentes, sim, porque eu não era, nem de longe, o neto mais próximo, mais afinado, mais isso ou mais aquilo. Com oito filhos e todos com dois ou três filhos na média, dá para saber que tinha muito candidato(a) na minha frente…

Amargurado pelos projetos profissionais que não vingaram, ele se dizia até mesmo “envergonhado” por não deixar nada para seus filhos. “Eu devia ter conseguido deixar uma casa para cada um deles, pelo menos, putcha vida”… Compreendendo minha incapacidade de ter lugar de fala nesse – para mim – estranho sentimento de dívida com a prole (já que não a tenho), ainda assim, eu o repreendia: “Vô, mas que puta bobagem de se dizer, hein? ‘Não deixou nada’? Sério mesmo? E seus filhos chegaram aqui, como? Geração espontânea? Sorte? Acaso? Então, ter criado oito filhos, sabe Deus como, é nada além de acidente? Ter oito filhos que não roubam e não matam, que sabem a diferença de ‘certo’ e ‘errado’ – o que não equivale à garantia de que não vacilem na práxis – que têm suas próprias famílias e que estão indo além do ponto de partida… Tudo isso, então, é ‘nada’???”, indagava eu a ele, com certa braveza no tom – não porque eu pudesse intimidá-lo, e sim porque eu desejava que isso o chacoalhasse e que ele sentisse a faísca do embate e se engajasse. Eu desejava a tal da “recalibração cognitiva” que, no caso dele, estava obviamente afetada. Eu não consegui. Creio que ele partiu convencido de que falhou na missão.

A afetação do “sentido da vida” que se abateu no meu avô nada tem a ver com a pretérita condição de saúde dele. A doença que afetava sua percepção era de cunho social. No nosso mundo, onde um ser humano só vale o que tem e pode ostentar (mais e mais e sempre mais), terminar como ele terminou é sinônimo de fracasso para muita, muita gente. Não para mim. Porque entendo o sacrifício geracional. E porque todo dia que saio da cama, tento lembrar dos erros dos meus antepassados e tento não repeti-los; também para respeitar sua herança histórica, deixada a mim a custo de sangue, suor e lágrimas.

Friso o “tento” porque essa é a vida real. Eu jogo todas as vezes para ganhar. Isso não me impede, contudo, de perder. E quando perco, levanto-me, tento analisar qual foi o deslize, onde foi que o bolo desandou, o trem descarrilou, o barco emborcou; saio da lama, lavo a cara, ponho o band-aid… E volto para o jogo. É só isso o que tenho. É só isso o que todos nós temos, enquanto o coração bater: a chance de se levantar do rodo cotidiano e tentar de novo.

Essa não é uma história da minha família. Essa é a história de muitas famílias; da maior parte das famílias brasileiras. Pelo menos, daquelas que não tiveram vantagens significativas na largada. Em larga medida, o que conto sobre meu avô Alcides caberá, com ajustes ali e aqui, para todos meus avós e boa parte de quem veio antes de mim.

Não vô, sua vida não foi um fracasso. Lamento, porém, nessa, vamos concordar em discordar. E eu tenho um argumento ao qual o senhor não teria como replicar, mesmo que vivo estivesse:

Por onde seus oito filhos andarem, e seus dezenove netos passarem, e seus N* bisnetos (* = números ainda em andamento) caminharem, lá estará o senhor. De um jeito ou de outro. E se hoje eu como pão com manteiga, foi – também – porque minha mãe (sua filha) comeu margarina, e o senhor nem isso teve. O sacrifício está aí e o sucesso, também. Eu sou resultado, em boa medida, de todos os privilégios que tive. E se não são grandiosos ou portentosos como os de quem nasceu em berço de ouro, neste trágico país de desigualdades, ainda assim são as conquistas de cada geração dessa família (e de toda a minha família [que tem dois lados]) que me permitem sonhar com aquilo que, para o senhor, foi impensável. E se, por acaso, eu vier a ter filhos, também me sacrificarei, dentro do que estiver ao alcance do real, para que eles voem ainda mais alto do que eu.

Não vô, essa biografia não é um fracasso. OITENTA E SETE ANOS de vida honesta – e que arque com o ônus da prova quem eventualmente o acusar do contrário – e de batalha dura, jamais poderão estar no mesmo parágrafo da palavra “fracasso”. Eu não admito. Ninguém de bom-senso admitirá. Jamais. Se o senhor discordar de mim, dá seu jeito e volta para a gente debater essa questão (o senhor teria gostado desse humor… Sei que sim…).

E aqui vem a última herança que sua morte trouxe: O reforço de uma lição que todos nós teimamos em esquecer. A morte é uma certeza, como os impostos também são. Ninguém, ninguém mesmo, vai sair daqui vivo. E a morte remove de nós algo muito importante: A agência. Enquanto estamos respirando, sempre podemos agir. Se algo está mal resolvido, dá tempo de resolver. Se um capítulo com alguém está mal escrito, dá para tentar reescrever (claro: esse tango depende de dois [ou mais]. Todavia, pode caber a você o primeiro movimento).

Mas quando morremos, deixamos o “ser/estar” e adentramos ao “era/foi”. Nesse tempo verbal, nada mais podemos realizar. Nossa agência, como eu disse, nos é removida.

Na quinta-feira passada, meu avô virou história. Uma boa história. Capítulos bons, capítulos ruins. Momentos de suspense, de drama, de derrota, e várias vitórias. Teve de tudo. Oitenta e sete anos AUTORAIS. Vida boa, vida ruim, foda-se: meu avô viveu conforme seus valores, fossem eles bons ou ruins, justos ou injustos. Ele esteve no timão em cada rio e mar pelo qual navegou com a vida dele. E isso é o meu significado para “vida digna”. Uma vida da qual ninguém possa lhe tirar a autoria, ninguém possa lhe acusar de passageiro ao invés de condutor. Ele conduziu. Ele foi o Alfa e Ômega de sua passagem nessa terra. E agora acabou. Mas, não acabou.

Por onde um(a) Andrade andar – desde que descenda da Grande Casa de Corredeira e da Grande Casa de Pontal – lá estará seu Alcides Martins de Andrade, em toda sua história, em todo seu sacrifício geracional, em toda a sua herança e toda sua dignidade.

Este é o relatório, tia… (risos).

Sobre a urna eletrônica

Não está fácil… Faculdade chegando ao fim, projeto do Trabalho de Conclusão (TC) em andamento, várias bibliografias para consultar, preocupações e ocupações com as matérias que, neste semestre, são em sete (isso mesmo: sete) …

E, por incrível que pareça, ainda trabalho pra viver. Significa que “tempo” é o commodity mais caro e mais escasso na minha vida. Já era, antes. Está pior, agora.

Todavia… Todavia… Há certos temas que não podem passar sem um comentário e este, então, não pode ficar sem comentário por tripla obrigação:

Primeiro, porque Direito Constitucional e Eleitoral são temas caros a mim, ao motivo de eu ter feito faculdade em primeiro lugar, e totalmente correlatos ao meu tema de TC.

Segundo, porque “urna eletrônica” tem forte ligação com minha formação superior original (qual seja: informática).

Terceiro, porque estão forçando a amizade para demonizar e minar essa ferramenta, de modo a desacreditar todo o processo eleitoral e (por consequência) democrático, num golpismo típico e do jeito que o atual presidente gosta. Os ataques não são gratuitos, tampouco espontâneos. Visam pôr dúvida se o resultado de 2022 será legitimo para que o aloprado fascista possa causar pânico e caos ao fim de outubro do ano que vem.

Permitir que absurdos e descalabros sigam sendo manifestados, porcamente, seja por ignorância ou má intenção de quem fala é incorrer no “Silêncio dos bons” do Doutor Martin Luther King…

Portanto, mesmo sem tempo (mais do que sempre), por uma questão moral, cidadã, de consciência… Aqui estou (mais um dia, sobre o olhar[…]) …

Espero que este texto esclareça algo pra você. Mesmo que seja do tipo “ainda não confio, mas, agora, pelas razões técnicas e certas”.

As benditas urnas

As urnas eletrônicas debutaram no Brasil em 1996 (eleições municipais). Tornaram-se o meio oficial de votação para todo o território em 2000 e, desde então, são o meio mais frequente de registro do voto, embora ainda haja a urna de papel quando uma urna eletrônica falha e não há correção viável. As definições sobre como a urna eletrônica será utilizada podem, em parte, ser encontradas na Lei 9.504/1997 (Lei das eleições), especialmente, do artigo 59 em diante.

Por mais que algumas pessoas ainda considerem “apressado” utilizarmos um sistema de contabilização de votos diferente daquele baseado em papel (seja porque o país tal não usa, seja porque o Brasil não é seguro para aplicar tal tecnologia e daí por diante), o Código Eleitoral (Lei 4.737 de 1965) já previa, em seu artigo 152, o uso de “máquinas de votar”. Obviamente, é razoável supor que se pensava em máquinas de perfuração de cartões, preenchimento da cédula automatizado e por aí vai, e não exatamente em um computador eletrônico destinado a isso – até porque não era uma realidade. Mas, o que me faz comentar isso é que nossa sociedade não pareceu particularmente incomodada com a ideia de máquinas mecânicas preenchendo a cédula. Ao que parece, o problema maior é o fato de não “vermos a cédula” no modelo atual… Mas, vamos devagar…

Sendo mais técnico (eu sei que você contava com isso), “urna eletrônica” é um termo popularizado, mas impreciso.

No mundo “urnesco”, a maquininha utilizada no Brasil é chamada de “máquina de votos DRE” (Ou “CVE” – coletor de votos eletrônico – em português). DRE significando “Direct Recording Eletronic”. Ou seja, o nome técnico da urna eletrônica é “máquina de voto com gravação eletrônica direta” (em tradução livre).

As “máquinas DRE puras”, dentro dos sistemas eletrônicos de voto (porque há máquinas de votação mecânicas, por exemplo), são classificadas como máquinas de votação de primeira geração.

Depois, há máquinas que usam o VVPAT (“Voter Verifiable Paper Audit Trail”) ou “Papel verificável do eleitor com trilha auditável” (em tradução livre). Essas são classificadas como máquinas de segunda geração. Outra sigla que pode surgir é a IVVR (que significa “independent voter-verifiable record”, ou “registro independente verificável pelo eleitor” [tradução livre]).

Quando falamos nessa segunda geração, na prática, ou a máquina VVPAT computa o voto eletronicamente (igualzinho ao nosso sistema atual), mas antes de computar, imprime as escolhas do voto por um sistema independente do principal para que o eleitor possa confirmar o que a urna eletrônica irá computar (o eleitor não toca na cédula, só vê) e então, o eleitor confirma o voto, o sistema deposita em uma urna tradicional (que servirá como forma adicional de auditoria) e o eleitor vai ser feliz. No segundo modelo, o IVVR – o eleitor registra seu voto na urna eletrônica, esta computa (na hora) e já imprime uma via física (sem prévia conferência) para depósito em urna tradicional, e que será usada em auditoria aos resultados encontrados no sistema eletrônico IVVR. A diferença entre VVPAT e IVVR, então, reside em se o sistema imprime, confirma e computa, ou computa e imprime (não é tão simples assim, se você ler as referências, mas vamos em frente porque a ideia é ser claro e não complicar o que já é turvo para muita gente).

Há outra penca de tecnologias (scanners ópticos [como os da Mega Sena], joysticks para a seleção do candidato e a confirmação da foto [como num videogame], perfuração de cartão, cédula eletrônica [você “escreve” nela, como numa tela de tablet], e híbridos de tudo isso), variando de sistemas totalmente mecânicos a protocolos online (transmissão em tempo real). Não poderia passar por todos eles. Mas DRE, com e sem IVVR ou VVPAT são os típicos sistemas na discussão mundial.

Talvez, a primeira bobagem a se combater e que os celulares (smartphones), carros e outras tecnologias devem ter incutido em nós é automaticamente significar que “de primeira geração” é necessariamente pior que “de segunda” ou “terceira geração”.

Deixe-me compartilhar um exemplo de como isso não é sempre uma verdade incontestável: Os roteadores Wi-Fi banda AC (frequência de 5GHz – até 1.2Gbps de velocidade) têm performance superior aos modelos N (2.4GHz – 150~450Mbps) e são mais novos, mais caros e mais complexos. Ocorre, porém, que em estruturas prediais com muito concreto, muitos vidros com blindagem para raios UV etc., roteadores AC não alcançam o que roteadores N alcançam em termos de cobertura e estabilidade. Agora, você pode ficar tentado a dizer “eu sempre prefiro velocidade ao alcance”, mas, para consumir sua internet fibra de 50Mbps, você prefere uma sólida conexão N de, no mínimo, 150Mbps, ou uma conexão capenga de 1.2Gbps que falha o tempo todo? Eu sei a resposta que me agrada mais.

É claro que antibióticos de 5ª geração são mais eficientes e causam menos colaterais que antibióticos de 1ª geração. Também é claro que processadores de 7ª geração fazem mais e são mais rápidos do que aqueles de 3ª geração. Não quero maquilar a realidade. O que quero é que você, como “arquiteto(a) de sistemas” entenda o sentido de “adequação da tecnologia ao propósito”. No mundo da tecnologia, as coisas sempre podem ser mais caras e mais complexas. Sempre. Cabe ao sujeito (ou sujeita – hehehe…) informado(a) escolher aquilo que, dentro de seu orçamento e requisito, melhor atende ao propósito de aplicação a que se destina.

Falamos disso, aqui… Se perguntarem ao cidadão com medo da violência sobre o que ele quer, ele dirá que quer um tanque de guerra na rua da casa dele, 24h por dia. A pergunta que pessoas racionais devem fazer é “vale o investimento?”. Por que pagar R$15.000,00 (quinze mil reais) em um notebook gamer, de presente, se sua mãe só quer mesmo acessar o Facebook (e ler fake news)?

Enfim, não quero me estender demais. O que quero deixar claro é: máquinas de votação (as populares urnas eletrônicas) DRE são uma realidade antiga (portanto, razoavelmente consolidada), com uso inicial na Índia, em 1990, e na Holanda, em 1991, chegando ao Brasil em 1996, e sendo o padrão a partir dos anos 2000 por aqui. Há outras tecnologias, mais complexas, mais caras, mais isso e mais aquilo. Resta saber se precisamos disso e qual é o objetivo. Não vale dizer “porque é mais seguro”. É preciso apontar onde está a insegurança no caso concreto, sem recorrer a hipóteses sem fundamento, mas com provas reais, hoje.

Como fontes desta seção, eu poderia lhe apontar o (bem-intencionado, mas cheio de links quebrados [me ajuda aí, TSE!]) site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sobre as nossas urnas, ou o artigo em português da Wikipedia, mas eu sei que se você é um(a) paranoico(a), você só vai confiar em fontes externas ao Brasil. De preferência, em inglês, não é mesmo? Claro… Então, aqui (Verified Voting – Equipment database) está uma fonte de consulta para tudo o que eu disse nesta seção, feita toda em inglês para você levar a sério. Se uma fonte em inglês não basta, tome este glossário (Carnegie Mellon University), também em inglês. Boa leitura.

Portanto, nossas máquinas de votação DRE (as “urnas eletrônicas” ou “CVE”) não são uma realidade inventada pelos maliciosos brasileiros, sempre cheios de artimanhas e ardis, sendo tais máquinas odiadas e inaceitáveis no resto do mundo civilizado. O que nos leva à próxima seção.

Só o Brasil usa urnas eletrônicas. Se os Estados Unidos não usam é porque não é seguro…

Quando as pessoas decidem falar bobagens, raramente elas conseguem parar na primeira… É uma compulsão. Você tem que falar algo completamente desprovido de sustentação e, aí, num ímpeto de não controlar a própria língua, é preciso – por razões que jamais compreenderei – que você dobre a aposta. É assim com 99.9% dos “especialistas” comentando na Internet. Não é diferente com os detratores da urna eletrônica.

Não há bobagem MAIOR do que dizer que só o Brasil “caiu na mentira de urnas eletrônicas”. Por aí, andam dizendo que só o Brasil, Cuba e Venezuela confiam no sistema. Mais bobagem. Mais cota no “tempo de palanque para lunático” consumida.

Atualmente, pelo menos 40 (quarenta) países utilizam algum tipo de tecnologia eletrônica em votações para cargos eletivos (às vezes nacionais, às vezes regionais).

“Mas e o DRE?! Quem usa?”… Bem, 17 (dezessete) países utilizam sistemas eletrônicos de votação, com ou sem IVVR/VVPAT (com ou sem leitura óptica). Entram na lista: Canadá, Japão, França e Suíça…. Sim… Que coisa né… Devem ser países de democracia muito frágil, dado o uso dessa tecnologia…

A outra parte dessa questão é “se as máquinas produzidas no Brasil são tão seguras, por que ninguém compra de nós?”. Aqui, o problema é diverso em possibilidades. Via de regra, qualquer país capaz de produzir tecnologia preferirá produzir “em casa” um sistema que decide quem será o presidente do país por 4 ou 5 anos, do que comprar esse sistema de outra nação. Esse conceito se chama “não fique na mão de outra nação”. As possibilidades vão além: Pode ser que com a carga de tributos, as máquinas brasileiras sejam muito caras, pode ser que não tenhamos sido muito bons em vender nosso produto lá fora (tivemos dificuldade de emplacar a máquina no Mercosul, em um punhado de oportunidades), e pode ser que a população de lá seja tão teimosa quanto a daqui; ao ler que os brasileiros não confiam na máquina DRE feita no Brasil, por que eles confiariam?

Aí, vem a bobagem suprema: “Os EUA não usam! Logo, é inseguro!”. Amiguinho(a)… Os EUA podem ter muitos motivos pra se orgulhar na recente história da tecnologia e da democracia. Mas se tem uma coisa que os EUA precisam colocar o rabo entre as pernas e voltar pra casinha fazendo “caim! caim!”, essa coisa se chama “sistema eleitoral estado-unidense”. É uma vergonha, do início ao fim. Para uma democracia sólida e madura, fonte de inspiração para o mundo, poucos países democráticos apresentam os graves defeitos do modelo estado-unidense que, de largada, não é federal, mas estadual (e eles têm 50 legislações eleitorais, cada uma com suas extravagâncias [Porto Rico não vota para o Congresso Nacional, nem para presidente dos EUA]). Aliás, a recente luta de Republicanos, nos EUA, é para que menos eleitores votem (uma eleição que já ocorre em dias úteis, em vez de um feriado nacional, o que maximizaria a participação popular); país onde certos grupos têm mais dificuldade de se habilitar como eleitores do que outros.

Então, da próxima vez que alguém te disser “os EUA não usam urna eletrônica”, manda a pessoa ir carpir um lote. Podem ser exemplo para outros pontos, mas em matéria de legislação eleitoral e eleição democrática (o que, nesse contexto, significa “direito de todo mundo votar”), o tio Sam deve sentar de face com a parede e vestir o chapéu de burro (SE… supormos que isso não é mal-feito de propósito, claro…).

E de onde vem essa informação sobre os países que usam sistemas eletrônicos? Vem do IDEA – (International) Institute for democracy and electoral assistance. Um observador oficial da ONU. Instituição de baixa reputação, sabe? Só que não.

E sobre os EUA e seu terrível sistema eleitoral, qual a fonte? Aqui, aqui e aqui. Só para aguçar seus sentidos vou deixar a primeira manchete estática: “American elections ranked worst among Western democracies. Here’s why.”. Em bom português: “Eleições estado-unidenses ranqueadas como as piores entre as democracias do ocidente”. E, não obstante o meu horror a quem confia cegamente em manchetes, acho que essa é segura (nunca pare em manchetes. Leia as fontes. Não confie em jornalistas, nem em mim, nem no YouTube ou Google. Leia e procure o mesmo assunto em outros locais, com reputação verificável). O sistema norte-americano de eleições é o pior do mundo democrático ocidental. Quem entende alguma coisa de “democracia & voto” não cai nessa conversa sobre a eterna superioridade do tio Sam em qualquer tema.

Portanto, não: de todas as jabuticabas que o Brasil já criou, a urna eletrônica não é uma delas, tampouco restrita a países antidemocráticos como Cuba e/ou Venezuela. Não se vende urnas made in Brazil por várias razões; compartilhei algumas hipóteses. E quando alguém argumentar que “os EUA não usam”, manda pastar, por mim.

You Always fear what you don’t understand…

Se você não fala inglês, o título não poderia ser mais adequado.

Ele foi tirado do magnifico filme “Batman Begins”, de 2005, dirigido pelo grande Cristopher Nolan, com Christian Bale como o Cavaleiro das Trevas e Tom Wilkison como Carmine Falcone, um chefe da máfia que assola Gotham City. A frase, em inglês, é dita pelo último.

Em português, ela fica mais ou menos assim: “Você sempre teme o que você não entende”.

Falcone tem total razão. O principal motivo pelo qual as pessoas deste país, em boa medida, desconfiam da urna eletrônica é porque elas não entendem patavina sobre Tecnologia da Informação. E você sempre teme o que você não entende. Essa é a história da raça humana, infelizmente.  “Infelizmente”, porque pessoas assustadas podem apenas chorar. Mas, elas também podem cometer loucuras em função do medo que as domina. Grandes atrocidades foram cometidas em nossa breve História, basicamente, em função do medo do desconhecido.

E, por que as pessoas temem a urna eletrônica? Porque elas não entendem como aquilo funciona. Estão (na larga maioria dos argumentos) equivocadas em cada afirmação que visa atacar o equipamento e o sistema de um modo geral.

Por exemplo:

A afirmação de que um hacker, na Rússia, pode invadir a urna (ela não fica ligada à internet);

De que um eleitor pode votar em duas sessões (o código do eleitor é gravado no cartão eletrônico da urna que ficará na seção do eleitor, e em mais nenhum outro cartão. Não há como ele votar em mais de uma seção ou colégio eleitoral);

De que as urnas já saem do TSE/TRE com os votos preenchidos (ilógico, já que ao começar a votação a zerésima é gerada e distribuída aos fiscais dos partidos políticos, e outro relatório [o BU] é emitido ao final… Se o número de pessoas que frequentou a seção for adicionado “ao número que vem de fábrica”, a conta será maior do que o número de assinaturas nos livros de controle).

E por aí vai.

Mas, vamos ainda mais devagar: se você quer mesmo entender, em detalhes, como o sistema de urna eletrônica no Brasil funciona, recomendo a leitura do relatório que a Unicamp (Universidade estadual de Campinas) produziu, lá em 2002, com cinquenta e uma páginas ao todo. Nele, especialistas em ciências da computação e áreas correlatas (engenharia elétrica e eletrônica) se juntaram e se debruçaram, não só sobre o hardware (parte física) da urna, mas sobre seu software (o programa que ela executa), seu firmware (um “pré-programa” que não está lá para fazer a função principal, mas intermedia a conversa do software com o hardware), as instruções passadas para o mesário, as normativas emitidas pelo TSE para organizar a seção eleitoral, o sistema de transmissão e contabilização dos votos em cada seção(…), tudo… São nada menos do que trinta e sete itens vistoriados pelo corpo de análise montado pela Unicamp (e vale dizer: não há universidade brasileira mais respeitada em Ciências da Computação do que esta. Cinco dos mais respeitados cientistas da área, no Brasil, dão aula no IC/Unicamp). Vale destacar que o foco do trabalho não era de auditoria, mas, de avaliação e sugestão de melhorias (sugestões que foram, em parte, incorporadas aos modelos subsequentes) para o sistema de eleição eletrônico.

AVISO: Daqui em diante, eu vou tentar explicar a arquitetura do SIE (que é o Sistema Informatizado de Eleições, no Brasil) … É EVIDENTE que algumas simplificações serão feitas. Eu quero que o texto fique num tamanho aceitável (lembrando que esse blog já é conhecido pelos textos ultralongos); também quero que pessoas alheias à área da computação consigam sobreviver ao texto e chegar ao fim dele com algum entendimento do que foi dito.

Se você quer discutir detalhes, minúcias, aspectos muito técnicos, manda um comentário, chama no privado, ou simplesmente leia a p%@^! do documento da Unicamp, integralmente. Obrigado. 😊

Entendendo o SIE (Sistema Informatizado de Eleições)

Aqui vamos nós. O SIE é o sistema nacional de eleições apoiado em máquinas DRE (nossas urnas eletrônicas).

Ele compreende a urna eletrônica em si, mas também os sistemas de preparo do software para instalação na urna, de impressão de relatórios, de transmissão dos resultados para computação centralizada no TSE; toda a arquitetura (criptografia [que é o embaralhamento dos dados a partir de um “arquivo-segredo” {certificado}], validações, auditorias) e infraestrutura (firewalls, rede, processos) desse sistema.

Sobre a urna

A urna eletrônica, tal qual um processador ARM (que seu celular utiliza), é uma receita de bolo. Ou seja: não existe uma empresa ou um produto chamado “ARM”. Existe uma especificação e quem quiser licencia o uso e fabrica um chip de acordo com essa especificação. Com a urna brasileira é quase a mesma coisa. O TSE específica o que espera do equipamento em edital público e empresas concorrem para montar os equipamentos, conforme a especificação do TSE. A urna não é um produto de prateleira, portanto.

Tivemos a Unisys em dois editais, mas a parceria Diebold-Procomp é disparada a campeã na fabricação das urnas brasileiras.

Anatomia de uma urna eletrônica

Ela tem, basicamente, dois componentes: o terminal do eleitor (a telinha que todos nós conhecemos) e o terminal dos mesários (onde eles colocam os dados do eleitor para validar que ele pode mesmo votar naquela seção, e a urna é monitorada [se está pronta para o voto, se tem alguém votando, se está na bateria, se o software é oficial ou de treinamento…]) – Não… O terminal do mesário não consegue violar o sigilo do voto. Recentemente, com a biometria (leitura da digital em nossos dedos), o terminal do mesário passou a fazer o escaneamento do dedo do eleitor, também.

A frente da máquina, todos os eleitores conhecem = Tela, teclado numérico e três botões (Confirma, Corrige e Branco). Então, vamos falar da parte traseira.

Créditos da imagem: TSE.jus.br

Atrás da urna, há uma impressora de bobina (2), estilo “caixa-registrador” (usada para emitir os relatórios em papel, no início [zerézima] e fim [o BU = Boletim de urna] do período de votação). Ela tem uma porta USB com um pendrive já instalado (1), onde os resultados para envio ao TRE/TSE são gravados. Dois slots de memória flash(9) (sendo um de acesso interno [é preciso abrir a carcaça] e outro externo) por onde o sistema da urna é carregado e os dados da votação vão sendo armazenados ao longo do dia (antes de serem criptografados[embaralhados] e gravados no pendrive (1), ao fim da sessão eleitoral). O fato de se utilizar 2 flashcards já é uma das medidas de segurança, pois o software da urna compara os votos que estão sendo gravados entre os databases (bancos de dados) nos diferentes cartões. Ela tem 2 USBs (10 e 12) usadas em caso de manutenção, sendo lacradas e parafusadas durante a operação normal. Uma saída de fone de ouvido para deficientes visuais (11), sendo a única interface na traseira que não é lacrada em dia de operação. Uma saída de energia CC (14) para alimentar eletricamente algum módulo externo, se preciso. Uma chave liga/desliga (6) sendo que nas mais novas é um botão verde/vermelho. Há uma bateria interna (8). Os demais números são bobagens como “parafuso”, “cabo AC” (energia elétrica) e por aí vai.

Se você ler a documentação da Unicamp, notará que ela fala em drive de disquete 3,5”. Esqueça isso. Desde a década de 2010 já é utilizado um pendrive como receptor dos resultados em todas as máquinas. Esse pendrive também tem seu conteúdo criptografado e assinado digitalmente, sendo preenchido só ao fim do dia/operação.

Portanto, para que um hacker possa inserir um programa malicioso na urna instalada na cabine de votação, ele terá que, de algum modo, acessar a parte traseira da urna (que fica exposta para os mesários), desparafusar e romper lacres, inserir o programa, talvez reiniciar a urna (para que ela leia o pendrive ou flashcard) e, nos dois ou três minutos que tem para votar, sair dali sem algemas.

Mas, vamos supor que ele queira hackear via sinal wifi, partindo do celular dele. Bem, a urna não tem qualquer placa de rede, nem por cabo, nem wifi (802.11xyz ou bluetooth). Logo, não há comunicação via sinal de rádio com ela. Talvez, ele tenha descoberto como apertar uma sequência de dígitos e botões no teclado da urna? Até a presente data, ninguém conseguiu hackear nosso sistema por essa interface (o teclado dela). Pode ser que alguém consiga, claro. Mas, ainda não há notícias de técnicas assim ao longo das ~duas décadas de uso delas.

O TSE é o dono do esquema eletrônico da urna (há disputas por patente na Justiça, mas, isso não vem ao caso). Os fabricantes precisam produzir a urna exatamente como manda o edital (como seria com alguém que quer fazer um processador ARM, mas aqui, com mais rigor quanto ao resultado). Depois de feita a placa, ela tem de ser homologada pelos técnicos do TSE… Então, qualquer microchip introduzido “a mais” no desenho da placa deve ser detectado na fase de inspeção do hw (hardware).

E se o hacker tentar acessar o cabo serial que liga o terminal do mesário à urna (para alguma técnica de hackeamento)? Bem, os cabos são ligados diretamente nas placas internas (não há conector; é solda) então, possivelmente, ele vai quebrar a bagaça toda no processo de tentar acessar o filamento.

Resta, assim, hackear seu software ou firmware antes destes serem distribuídos pelo TSE. Ou na fase de inseminação… O que nos leva ao próximo ponto.

Anatomia do código executado nas urnas (software/firmware [sw/fw])

A urna tem seu firmware (aquilo que se chamava de BIOS e agora, U/EFI) desenhado com memórias EEPROM (que não se apagam com a falta de energia) que validam, com chaves criptográficas públicas, que elas não vão executar um software que não foi assinado com a chave privada do TSE, além de controles para proibir que a urna carregue um sistema pelas outras portas que não a dos flashcards; claro, como todo fw, ele também controla as operações básicas do teclado e monitor da urna. Esta é uma parte das camadas de segurança para garantir que a urna inicialize o software aprovado pelo TSE, ou não inicialize nada.

Todo o código-fonte (que representa o programa em seu formato de texto) é assinado digitalmente por um certificado público guardado no TSE.

E você pode perguntar “como funciona assinatura digital de um documento (seja um e-mail, seja o código-fonte de um sistema)?”…

A assinatura digital é um processo em que um sistema faz algum tipo de contagem de todos os caracteres e seus valores, e essa “soma” (há mais de um jeito de fazer isso) resulta no que chamamos de hash. O hash é, então, assinado digitalmente com um segredo gerado via um certificado (é uma espécie de arquivo) que contém a chave privada (no caso do SIE, esta chave só existe num sistema de computadores dentro do TSE). A chave pública é outro certificado (arquivo) e, como o nome sugere, é conhecida por quem precisa dela (sistemas dos TREs, sistemas que preparam as urnas, as próprias urnas etc.). Com a chave pública pode-se acessar o segredo feito com a chave privada, mas, não é possível gerar um novo segredo; apenas ler o que foi criado com a chave privada.

Uma rápida explicação técnica: assinar digitalmente e criptografar um arquivo (ou todo um sistema) são operações distintas, embora ambas sejam feitas com uso de um certificado (90% das vezes) que contém chave pública e privada (esta última só costuma existir na origem do arquivo). Assinar digitalmente só garante que o conteúdo é autêntico, mas não protege o conteúdo de quem o obtiver. Criptografar é embaralhar os dados, de modo que só quem tem a chave pública pode ler o que foi criptografado com a chave privada. Porém, a criptografia atinge, indiretamente, a capacidade de provar a autenticidade de um documento: se você conseguiu desembaralhar o documento usando a chave pública que eu te dei, quer dizer que ele foi embaralhado com a chave privada que só eu possuo.

Logo, o que se consegue é a garantia de que o código-fonte que foi aprovado pelo TSE é exatamente o mesmo que está sendo instalado nas urnas. Se o hash bate e este hash é assinado digitalmente, a única forma do código ter sido maliciosamente produzido é com alguém de dentro do TSE usando a chave privada para assiná-lo, ou com um hacker extraviando essa chave do seu sistema original (há várias medidas para que isso não ocorra; a primeira é que essa chave não fica em um computador ligado à rede de computadores do TSE). Claro que essas duas últimas hipóteses são possíveis (quase tudo é possível). Não quer dizer que isso seja fácil de ser feito, muito menos que essa chave privada fica no computador da mocinha da portaria do TSE, enquanto ela baixa filme pirata e acessa o WhatsApp web.

De outro lado, o sistema de instalação da urna (chamado pela documentação de SIS – Subsistema de Instalação e Segurança) não permitirá a carga de um sistema operacional (“OS” em inglês, ou “SO” em português) que não esteja em conformidade com a chave pública fornecida ao SIS. Tampouco a urna aceitará executar um código que não coincida com as chaves gravadas em seu firmware.

Todas as urnas do Brasil (são aproximadamente quinhentas mil seções, cada uma com pelo menos uma urna [há seções com duas ou três]) executam o mesmo SO. Não há diferença nesse código.

Ao saírem da fábrica, elas não têm nem o SO, nem os dados da seção que irão atender. Então, numa fase denominada “inseminação da urna”, o SIS (software instalado em uma máquina oficial no TRE, ou numa cedida ao polo de preparo das urnas) instala tanto o SO da urna, quanto a tabela de candidatos e eleitores disponíveis para aquela seção (por exemplo: Na minha seção não há candidatos pelo estado do Amapá, e também não há eleitores com deficiência, ou com a letra inicial “A” [apenas exemplos]). Assim que o SIS termina a instalação, a urna é lacrada (todas as portas, exceto a de áudio, como já dito), empacotada e vai para a caixa de papelão, onde ficará sob vigia até o transporte para o dia e local de votação. Seu número serial (gravado naquelas memórias EEPROM) é cruzado com o número da seção para a qual ela se destina e gravado no sistema do TSE. Logo, a urna 1234ABC não pode enviar votos para o sistema centralizado (ao final do dia), em nome de uma seção eleitoral para a qual não estava previamente cadastrada.

O SIS foi projetado para dar uniformidade na instalação, consistência dos dados, segurança do código instalado e várias outras medidas. Este seria um ótimo ponto de ataque, contudo, vale lembrar que o EEPROM, dentro da urna, tem sua própria cópia do certificado público e este não é manipulado pelo SIS. Se um hacker consegue acessar o EEPROM da máquina para reprogramá-lo, significa que ele está com acesso físico à urna… Neste caso, por que você tem medo da urna eletrônica e não tem medo da urna de papel? Se um hacker conseguiu acessar a parte interna da urna eletrônica, reprogramar um chip, instalar um SO hackeado com código malicioso e relacrar o equipamento para que ninguém perceba a fraude, ele não conseguirá abrir a urna de papel e trocar todas as cédulas de papel por outras que ele fez (ou deram pra ele)? Esse é o seu medo? Sério?

O SIS gera um flashcard que instala o SO na urna (copiando seus dados para o flashcard interno). Depois que esta valida a assinatura do código apresentado, o primeiro flashcard é removido, a urna é desligada e fica pronta para receber outro flashcard com os dados de eleitores e candidatos, mas este segundo flaschard com os dados de candidatos e eleitores é destinado só ao dia da votação. Se uma urna quebra, a reserva pode ser inseminada com este flashcard, mediante registro do novo serial de urna atrelado à seção de votação.

Quando o SIS termina de gerar o flashcard externo “de votação”, este é inseminado (daí o nome da fase) na urna pela porta número 9 da imagem anterior, e a urna fará toda uma rotina de validação do conteúdo, vai verificar se a assinatura do conteúdo bate com a chave que ela tem na EEPROM (e que saiu preenchida de fábrica), e vai inicializar o flashcard interno. Esse flashcard interno, como já dito é usado em várias operações de segurança onde a urna compara resultados e faz um “double-check” de tudo que está acontecendo durante a execução. Há logs de segurança, e parte desses logs é registrado em outro chip, dentro da máquina, por redundância.

A cerimônia de assinatura

O código-fonte distribuído pelo TSE não é simplesmente assinado numa quarta-feira depois do almoço, e fim de papo… Há uma cerimônia com data e hora previamente conhecidas, e aberta aos interessados, especialmente, aos representantes de cada partido político nacional. Esses partidos podem mandar técnicos para acompanhar o processo, bem como os partidos podem, inclusive, ter acesso ao código-fonte da urna (que é baseado em open-source/código aberto) para revisá-lo e apontar eventuais falhas, antes dessa cerimônia.

Quando todos os representantes estão satisfeitos, o código é compilado (= deixa de ser texto e passar a ser um executável) em um computador isolado e sem acesso externo. Nesse momento, as chaves criptográficas são inseridas definitivamente (a empresa que ganhou o edital e desenvolveu o código do SO não tem a chave privada que o TSE usará e não terá em momento algum. Esta empresa utiliza uma chave privada própria, só para fins de testes, mas essa chave é substituída no código do SO com a chave oficial nessa fase), e são essas chaves que determinarão se o código compilado foi alterado desde esta cerimônia até o dia da eleição. A urna, como já dito, sai com a chave pública que deve “bater” com a chave privada para que o sistema possa ler o hash e concluir que o código pode ser executado (ou não).

Todo o código gerado pelo SIS passa por 2 mecanismos de criptografia (em 2002 eram o MD5 e o Assina [Microbase]), gerando uma criptografia de 256 bits. É bem seguro, se você não entendeu nada. Se um arquivo for modificado pelo hacker, mesmo que em apenas uma letra, sem que um arquivo CRC e outro SIG sejam criados a partir de uma chave criptográfica válida (e só o TSE tem a chave privada), os sistemas, tanto do SIS, quanto da urna, detectarão a mudança.

A distribuição dos softwares para preparo da urna

Como dito, o SIS é responsável por gerar a mídia que vai formatar a urna com o SO aprovado, bem como gerar o flashcard com os dados de eleitores e candidatos habilitados numa dada seção eleitoral.

E se esse software for corrompido? Já em 2002 (data do documento da Unicamp), a transmissão se dava sob criptografia do instalador do SIS (usando o algoritmo IDEA-128, bastante adequado àquela altura). A transmissão se dava por protocolo SFTP ou mídia física (CD). Logo, havia um bom controle de distribuição, em 2002. Não tenho razões para crer que essa segurança piorou, ou mesmo continuou como naquele tempo. Atualmente, é provável que eles utilizem transmissão por HTTPs ou outro meio privado (como um link MPLS, que não passa pela Internet). Mas, não tenho os detalhes porque não achei documentação técnica sobre a atual arquitetura. Isso não necessariamente significa que há obscuridade maliciosa. É natural que as empresas e órgãos governamentais não fiquem divulgando detalhes de sua arquitetura interna, o que ajudaria um hacker a se preparar melhor. Possivelmente, há melhores informações para os partidos políticos e outros legitimamente interessados.

Resta saber se eles têm competência para avaliar o que receberam. Na minha experiência com auditorias de terceiros sobre software de um dado fabricante, a maioria dos terceiros não tem qualificação técnica para entender o que recebeu em mãos. O sujeito começa a olhar o código-fonte e não sabe nem se é de comer ou de passar no cabelo. Aí, pra disfarçar a ignorância, inventa teses furadas sem, contudo, ser capaz de demonstrar onde o problema está… Digressão de minha parte… Voltando…

O software SIS precisa ser enviado aos TREs e polos para preparar as urnas para a eleição. Ele modifica o sistema operacional Windows, transformando a máquina instalada com ele em um “novo computador” com funções e acesso restritos… Não é possível baixar o MicroTorrent no computador SIS, nem assistir aquele pornozão básico (ou só acessar um site de notícias) nessa maquina alterada pelo SIS. A finalidade da máquina com o SIS é restrita a somente preparar as urnas (SO) e gerar os flashcard com eleitores e candidatos por seção.

A transferência do BU (boletim de urna) para o TSE

Bem, esta é a parte mais crucial, pois, é a única vez em que o resultado da urna poderá passar por um meio de transmissão público. Até aqui, este resultado só existia dentro do hardware da urna. Sem que o BU seja encaminhado ao TSE, não há cômputo dos votos registrados naquela seção.

O BU só é emitido ao final da votação de todos os eleitores daquela seção, ou ao final do horário limite para a votação (o que vier primeiro). Por este motivo, vemos que mesmo antes das 17h, algumas estatísticas de votação já começam a aparecer no noticiário. Imagine que a seção é nova e tem apenas 100 eleitores e que todos vão votar na primeira hora da manhã (um milagre que mesário nenhum jamais viu, coitado…). Neste caso, a urna emite o BU em papel (pela impressora de bobina), este é afixado na porta da seção e fotocópias são distribuídas aos fiscais dos partidos interessados (que já podem iniciar contabilizações paralelas e auditorias próprias).

Então, o BU é criptografado (não porque seja sigiloso, mas somente para garantir que o BU que a urna emitiu não foi trocado por um BU falso), gravado no pendrive (na porta número 1), o pendrive é removido da urna (com fiscalização dos profissionais do TRE) e então é encaminhado, seja para uma sala do colégio eleitoral com o software carregador (basicamente, ele se conecta ao TSE usando uma VPN (túnel criptografado, utilizando a internet), lê o arquivo, valida a integridade do BU, e envia este arquivo ao sistema totalizador no TSE); seja fisicamente transportado para um polo onde haja conexão com a internet (cenário comum no interior do Brasil). Ouvi dizer que havia um link via satélite entre TRE e TSE, mas sinceramente, não achei fonte confiável para isso. Além do mais, um túnel VPN já é muito seguro (pode ser bem mais seguro que sua conexão com seu banco, por exemplo).

Se o BU é enviado mais de uma vez, o sistema totalizador detecta e abre ticket de auditoria para garantir que todos os votos foram contabilizados. Isso pode ocorrer, por exemplo, por uma falha de rede em que o envio não foi completo (esta informação é de 2002. Não ficaria surpreso de saber que os sistemas atuais sequer permitem a duplicação de envio; mas, para mim, basta saber que há auditoria em caso de envio em duplicidade). Todavia, o BU de outra urna, ou o BU falsificado não serão carregados em nome de uma seção oficial. A criptografia que a urna gera e os dados anotados no BU oficial estão lá para impedir isso.

No ano de 2020, o TSE alterou a forma como os dados são totalizados, após recomendação da Polícia Federal. Anteriormente, os colégios e os polos concentradores mandavam os BUs para os TREs, e os TREs mandavam por uma rede privada (seria a rede via satélites?) para o TSE. Em 2020, todas as seções passaram a enviar os dados diretamente para o TSE via sistema desenhado para isso. Na ocasião, houve demora para divulgação do resultado, o que causou certa controvérsia sobre a possibilidade de um “ataque hacker” às eleições. O então Presidente do TSE, Ministro Luís Roberto Barroso, desmentiu o boato explicando que apenas houve um congestionamento inesperado nos canais de comunicação entre TSE e todas as mais de 500 mil seções (que deixaram de concentrar as BUs nos TREs) e sobrecarga no sistema de totalização.

Neste mesmo ano de 2020, houve um ataque ao site público do TSE, gerando a indisponibilidade do mesmo. Eu não creio – porque não faz nenhum sentido crer – que a rede de computadores que mantém o site público do TSE seja a mesma rede utilizada pelo sistema totalizador de votos, mas esta é uma arquitetura sobre a qual eu não tenho visibilidade e fica difícil dar garantias.

Conclusão do relatório da Unicamp e outros relatórios

O relatório da Unicamp termina do seguinte modo:

“O sistema eletrônico de votação implantado no Brasil a partir de 1996 é um sistema robusto, seguro e confiável atendendo todos os requisitos do sistema eleitoral brasileiro”

E

“Assim, acredita-se que, a partir da experiência acumulada pelo TSE e partidos políticos na implantação do voto eletrônico e a partir da contribuição da comunidade científica e dos setores organizados da sociedade, é possível o aprimoramento do atual sistema e a consolidação dos processos de votação e totalização eletrônicos que se configuram como um enorme avanço no processo eleitoral brasileiro, principalmente quando confrontado com o uso de cédulas de papel e urnas convencionais.” (grifo meu).

O relatório de 2002 fez sugestões de melhorias em vários pontos, inclusive com críticas construtivas sobre auditoria independente, ou mesmo sobre uma mudança no design de validação dos dados enviados pelo teclado ao FW/SO. Mas, como o próprio relatório explica, é difícil imaginar que alguém possa explorar possíveis vulnerabilidades diretamente em contato com a urna, já que teria que abrir o equipamento para adulterar o funcionamento do componente.

O verdadeiro risco de adulteração é realmente na fase de criação do software e da assinatura deste com a chave privada, ou no envio dos BUs ao TSE. No primeiro caso, como demonstrado, contudo, isso não é algo trivial e não se pode fazer com uma única urna. O ataque teria que ocorrer na data em que o TSE “empacota” o software da próxima eleição, e teria que ser feito no computador onde isso acontece – computador que não está ligado à internet. Impossível? Não. Nada é impossível. Ainda mais no Brasil… Mas, altamente improvável. Há formas mais baratas de se manipular uma eleição e nós já vimos isso ocorrer no passado recente das Américas (volto a esse ponto, mais à frente).

Tal relatório foi pivô de polêmicas entre os detratores da urna e o TSE, porque destaca aspectos negativos sobre a independência de auditoria por agentes externos ao TSE, ponto que os críticos afirmam jamais ter sido sanado.

Esse não foi o único relatório produzido com o intuito de validar ou auditar o sistema de eleição eletrônico brasileiro:

No mesmo ano (2002) em que a Unicamp fez o relatório sob encomenda do TSE, o PT encomendou relatório público à UFRJ; embora não consiga apontar falhas, os autores reclamam da “imaturidade do modelo de desenvolvimento de software”, mas não apresentaram nenhuma falha que pudesse ser explorada.

Em 2003, o TSE pediu novo relatório público à UFMG e UFSC. O relatório apontou a possibilidade de que o segredo do voto fosse quebrado com a arquitetura proposta, e apoiou a impressão do voto como forma de aumentar a confiabilidade no sistema. Não relatou como fraudar o resultado da urna.

Em 2004, a associação BRISA forneceu relatório secreto ao TSE. Obviamente, não tenho como apurar os achados.

Em 2006, o PTB-AL encomendou relatório público de um professor (e apenas um) do ITA. Este professor afirmou que poderia haver “contaminação” nos resultados de Alagoas, mas dada a característica do estudo, focado em urnas do estado de Alagoas, com apenas um pesquisador escolhido a dedo, opto por descartar esse relatório. Não se faz ciência com base na opinião de apenas uma pessoa, não importa o quão competente ela seja. Já discutimos isso antes.

Em 2008, o TSE encomendou relatório secreto ao CTI-MCT. Conclusão: idem ao outro relatório secreto.

Em 2009, o próprio comitê multidisciplinar do TSE emitiu relatório público. Na conclusão, disseram: “A proposta de impressão do voto conquista corações e mentes pela simplicidade, tangibilidade do papel e pela aparente facilidade de combater fraudes. O fato de que o uso de criptografia e mecanismos sofisticados tecnologicamente não serem entendidos pela maioria dos eleitores, candidatos e público em geral, não diminui os benefícios que essas ferramentas modernas trazem para a segurança das eleições”.

Evidentemente, eu não esperava que o comitê do próprio TSE fosse contrário ao sistema defendido pelo Tribunal; pelo menos, não de maneira veemente. Contudo, acompanho a opinião geral de porquê há tanta crítica ao vigente sistema: desconhecimento.

Em 2010, o relatório público CMind, formado por 10 profissionais de várias áreas (direito, computação, engenharia, jornalismo) que criaram um comitê para avaliação da segurança do voto digital, foi bastante crítico ao relatório do ano anterior, emitido pelo TSE. Para eles, o sistema é repleto de falhas e imperfeições que o TSE se omite em endereçar. Contudo, o relatório não apresentou uma forma de hackear a urna, dentro da seção eleitoral. Também, não explicou como o sistema de transmissão do BU poderia ser manipulado para apresentar um resultado falso no lugar de um legítimo. Não quer dizer que suas críticas não sejam cabíveis. Mas elas estão, em grande volume, debruçadas nos procedimentos, na transparência, nas formalidades, e não são críticas que demonstram “como é fácil burlar a urna apertando as teclas x, y e z na ordem 2, 3, 1”…

Em 2012, um relatório público foi liberado pela Universidade de Brasilia (UNB), feito espontaneamente por esta. Esse relatório demonstrou uma técnica para ordenar os votos gravados na BU o que permitiria, em tese, quebrar o sigilo dos votos. Também, levantou a possibilidade de outras manipulações, mas não conseguiu demonstrar as técnicas, alegando que as regras do TSE impediram tal demonstração. Talvez, seja o relatório mais importante para o que discuto aqui (a segurança da urna eletrônica). Se não demonstrou como hackear a urna, colocou em xeque o segredo das votações, requisito indeclinável por força de mandamento constitucional (art. 14 da CF/88), e que nos protege de manipulações como a compra de votos ou a coação dos eleitores. Não tenho respostas de como o TSE endereçou esses achados.

O último relatório do tipo foi encomendado pelo PSDB em 2014, sendo realizado e publicado pelo mesmo CMind que fez o relatório de 2010. Nos achados, temos duas conclusões para destaque:

“pode-se concluir que a auditabilidade do sistema eletrônico de votação do TSE em seus moldes atuais é prejudicada por diversos fatores. O sistema não está projetado e implementado para permitir uma auditoria externa independente e efetiva dos resultados que produz[…]”

E

“Já com relação ao processo de transmissão e totalização dos votos, não foram encontrados indícios de fraudes ou de erros sistemáticos que pudessem alterar os resultados depois que estes saem das urnas eletrônicas.”.

Essa segunda conclusão é importante porque trás mais embasamento para o que eu disse sobre não temer riscos quanto ao sistema de transmissão dos BUs (a segunda parte onde poderia haver uma fraude, na minha opinião).

O que eu acho de todos os relatórios

O que eu acho não é importante. Na verdade, o que alguém acha não é nada importante neste mérito. O que realmente importa é a qualidade do material de análise, a validade técnico-científica dos testes, e seus achados (provas). As visões políticas, o uso de palavras mais ou menos arrojadas, retóricas mais ou menos fortes, nada disso é importante em relatórios dessa natureza (que deve ser técnica).

O que importa é se alguém conseguiu provar como hackear a urna, ou o sistema que contabiliza os votos. Esses são os jeitos óbvios de se fraudar uma eleição com urna eletrônica. E não vi nenhum relatório que demonstrou como fazer isso.

O que li foram críticas a um modelo que pode ser aperfeiçoado (como quase tudo em termos de instituições no Brasil), que pode ser melhor do que é, mas não li nenhum relatório que demonstrou, inequivocamente, como manipular os resultados das eleições brasileiras através da operação nas cabines de votação, dentro da seção eleitoral, ou interceptando o envio dos BUs ao TSE e modificando esses BUs. Nenhum teste foi capaz de corromper a máquina DRE brasileira em condições normais de uso (idênticas ao que o cidadão José [versão hacker] encontrará numa seção eleitoral).

E se, para hackear e manipular os resultados, os agentes maliciosos precisam abrir a urna, instalar outros softwares, acessar a sala de instalação das urnas, modificar programas de instalação, hackear servidores com canais de comunicação criptografados (em que a transmissão se dá em momento desconhecido e não em tempo real)… Meu amigo e minha amiga… Eu não sei porquê pensar que uma urna de papel poderia impedir a manipulação do resultado das eleições, diante de tamanha vontade, capacidade e disponibilidade de recursos.

São fontes para estas seções que escrevi, acima:

O relatório da Unicamp (possivelmente, o melhor documento para entender de onde partimos e para onde podemos rumar).

O artigo da Wikipedia sobre CVEs (coletor de votos eletrônico). Contém links (alguns quebrados) para os demais relatórios.

As auditorias das últimas eleições contendo o sistema de votação paralela (um teste em que urnas são sorteadas, removidas da seção, e auditadas por empresa contratada em uma sala com representantes dos TREs e partidos) para todos os estados do país.

A notícia sobre o motivo da lentidão na apuração de 2020 E a notícia que explica que a Polícia Federal recomendou a centralização, após perícia em 2018.

A apresentação geral da Urna eletrônica brasileira, feita pelo TSE.

Sabe onde teve fraude usando informática? Nas eleições dos EUA…

Estranho, né? Pois é…

O país que tem o sistema mais atrasado das democracias, onde tudo é feito do jeito mais arcaico possível… Foi atacado, ciberneticamente, nas eleições de 2016 e, possivelmente (pois, ainda se investiga), em 2020.

Sim, porque para manipular uma eleição em um dado país você não precisa fraudar as urnas em si. Basta você fraudar a verdade. Manipular as mentes das pessoas, tão dependentes de redes sociais para se (des)informarem.

Não é preciso invadir a urna, de papel ou eletrônica. Basta que eu bombardeie você com mentiras por todos os lados para acabar com a reputação de alguém que eu quero que perca, ou criar uma imagem de salvador de alguém que sempre mereceu a sarjeta.

As notícias sobre o ataque cibernético da Rússia contra os EUA nas eleições de 2016 e 2020 são de conhecimento público e consolidadas em mais de uma fonte. Não preciso me alongar no tema.

O que precisa ficar claro é que quando a manipulação de um sistema eleitoral se dá por uma força exterior muito poderosa (em especial, o que se chama de ataques patrocinados por “State actors” ou, simplesmente, outros países) e muito organizada (com divisões militares de cyber-guerra, muito dinheiro à disposição, muitos recursos), sistema eleitoral nenhum está preparado para lidar com isso, no nível tecnológico.

O único remédio que consigo propor para isso é EDUCAÇÃO… Nesse caso, educação cívico-democrática e política. Educação para desconfiar de fake news, educação para saber pesquisar sem receber de mão beijada, educação para não acreditar em boatos e crendices, para detectar resultados espúrios e análises enganosas.

Educação para não cair no canto da sereia de candidatos safados, sem um plano de governo realista e factível.

Afinal, urnas eletrônicas são seguras?

Você leu tudo que escrevi. Teve acesso às fontes que eu consultei. Percebeu a complexidade para hackear o SIE brasileiro (tenho total convicção de que as tecnologias empregadas são melhores do que os padrões que se utilizava em 2002, pois o TSE teve duas décadas de interação com a indústria para aperfeiçoar o modelo [tanto urna, quanto software são fabricados pela iniciativa privada, sob edital, e não pelo TSE]).

Se você me perguntar “você confia na urna eletrônica brasileira?” a resposta é, claramente, “SIM!”.

Se você me perguntar “então, você confia que ela é 100% segura?” a resposta é “HELLS, NO!” (nem fod@$%^…)

Eu já disse isso antes: O único sistema eletrônico 100% seguro é aquele fora da tomada. Não existe nada, absolutamente nada “ihackeável”, nem mesmo sistemas que não usam computadores. Tendo tempo, recursos, conhecimento e acesso… Qualquer sistema cai. Qualquer um; o nosso, o da NASA, o da China….

O motivo para isso é que, como seu criador (o ser humano), os sistemas herdam falhas de conceito que são muito complexas em sua interação com outras “partes móveis” do sistema e muito difíceis de serem testadas em todas as combinações possíveis, sendo que se a brecha é detectada somente em situações extremas, é matematicamente improvável se prevenir contra tudo o que pode dar errado.

Novamente, o sistema eletrônico 100% seguro é o sistema desenergizado. E ele serve como um lindo peso de papel e nada mais.

Mas quem te disse que elas precisam ser 100% invioláveis? Por que essa tara? 😁

Vou te dizer como eu vejo a situação das urnas eletrônicas: para que eu prefira as urnas eletrônicas ao sistema anterior (em papel), elas só precisam ser mais seguras que a urna tradicional. E, como profissional de TI, com base em tudo o que foi lido e exposto, eu te garanto: elas são estupidamente mais seguras que o outro método (o papel).

Perfectíveis, sim. Sempre. Tudo é perfectível. Mas não são o calcanhar de Aquiles desta democracia.

Esforço para hackear a urna eletrônica: Profissionais competentes, desvio de uma urna para análise e técnicas de invasão, conhecimento da arquitetura de consolidação dos votos nos servidores do TSE, desvio/furto da chave criptográfica utilizada na transmissão dos votos ao final da sessão de votação, quebra de todas as medidas de segurança realizadas no código original (sua assinatura, o chip EEPROM)… Depois disso, o sujeito tem que, ou interceptar a urna entre o momento que ela deixa a “inseminação” e é escoltada (talvez, ele pague a equipe de escolta para permitir a adulteração), ou, de algum modo insanamente complexo, hackeá-la já dentro da seção eleitoral, na frente de todos os fiscais e voluntários, nos pouquíssimos minutos em que fica na cabine. Se tiver que carregar o software para hacker a urna, então… Rapaz, vai ser complicado disfarçar que a “urna caiu” para você acessar o painel traseiro dela, desparafusar, colocar seu pendrive/flashcard… Bem difícil… Outra hipótese é hackear a transmissão dos BUs, mas, novamente, o hacker tem que ter meios de assinar o BU com o certificado digital da urna, “batendo” o número de série que está ligado à seção para qual ele quer falsificar o BU. Possível? Matematicamente, sim… Fácil? Hehehe…

Esforço para hackear a urna de papel: Jogar duas cédulas (uma dada pelo fiscal, outra que você trouxe no bolso) ao invés de uma, ou pagar a escolta para, no translado da urna para a contabilização, trocar o conteúdo oficial pelo adulterado. Abrir o lacre adesivo/plástico, trocar tudo, e colocar novo lacre adesivo/plástico.

Pensando nisso, qual sistema lhe parece mais frágil?

Novamente, não estou discutindo se existe ou não existe tecnologia de máquina de votos mais complexa, mais recente, mais servida de mecanismos antifraude. Estou discutindo se a urna eletrônica atual consegue ser mais fraudável do que a urna de papel (e porque queremos a segunda – mais fraudável – como método antifraude da primeira – menos fraudável).

E a resposta para o último parágrafo é: nada é mais fraudável do que o papel.

Também por isso, paramos de usar cheques e fazemos todas as transações importantes (quanto ao valor) virtualmente, usando criptografia e nada mais. E não pedimos que o banco imprima a transação em papel para confiar no sistema bancário.

Por que a tara com a urna eletrônica?

Porque interessa ao discurso de quem quer justificar a futura recusa em reconhecer a derrota que – se Allah quiser – está por vir.

Sou contra o sistema VVPAT ou IVVR para as nossas máquinas DRE?

Absolutamente não… Nunca sou contra a melhora de nada. Se o sistema é considerado universalmente “x% mais seguro” só com a impressão do voto de origem digital, e seu depósito numa urna de papel, ótimo, vamos em frente.

O problema é que não é tão simples assim. O TSE já declarou que atualizar o sistema para imprimir custaria por volta de dois bilhões de reais a mais. São 500 mil seções eleitorais. Cada uma com pelo menos uma urna. Fora as reservas. Fora as seções no exterior. Se você pensou em utilizar a impressora de bobina que gera a zerézima e o BU, distribuídos aos partidos, errou!!! (leia com a voz do Faustão)… A impressão precisa ser automatizada, confiável, com redundância (para o caso de falhas) e, nos sistemas atuais, não é manipulada pelo eleitor (a cédula é impressa, aparece num “túnel” de acrílico, você confirma e a cédula cai na urna, sem [a sua] interferência humana). Quanto custaria projetar isso? E auditar isso? E manter isso?

Isso tornará o sistema mais seguro? Ninguém pode dizer que sim. Exceto se implementarmos e começar a haver diferença entre cédulas e BUs – aí sim, o sistema DRE está viciado e é caso de polícia. Caso contrário, gastamos alguns bilhões de reais apenas pela “sensação de segurança”. Como o tanque de guerra, parado na rua do cidadão assustado com a violência; não resolveu o problema com o batedor de carteira, mas todos se sentem mais seguros… Porquê não pagar por isso, não é? Não é.

Tornará a urna mais aditável? Sim, sem dúvidas. Mas será um processo eleitoral bem mais caro (além de toda a tecnologia adicional já descrita, temos que guardar e processar as cédulas em algum lugar seguro e monitorado) e mais lento (temos que ter auditores e eles são humanos, não máquinas – se colocarmos máquinas para ler o comprovante impresso, o que diabos estamos querendo? Só cortar árvores?)…

Disse, um certo cavalheiro:

O preço da liberdade é a eterna vigilância.

Thomas Jefferson

A liberdade de um povo em escolher quem o representa no Estado é o ápice do que o processo eleitoral democrático significa. Não podemos, jamais, confiar cegamente no discurso de um órgão oficial. As urnas devem ser auditadas, os processos devem ser melhorados, o que é obscuro tem que ficar claro como o meio-dia na areia branca da praia. Nada mata mais a corrupção e a falcatrua do que a claridade. Quem gosta de sigilo por 100 anos é a Justiça Militar (sim… os caras envolvidos com o governo e que mais gritam sobre “transparência nas eleições” são os mesmos escondendo a sujeira deles com sigilo secular).

MAS… Mas… Não é por isso que vamos gastar “os tubos” com impressão do voto digital, só para que nos sintamos “seguros” de que não há fraude, sem que esse sistema realmente signifique palpável diminuição do risco de fraude, apenas custando mais caro para o nosso bolso. A decisão precisa ser lógica, não emocional. É um sistema computadorizado. Emoção não tem nada a ver com essa área das ciências.

Por que estamos ouvindo a sandices de gente eleita pelo voto eletrônico, contra o voto eletrônico?

Pois é… Também não sei…

O anencéfalo que lamentavelmente chegou à idade adulta, foi eleito pelo voto popular na mais triste eleição da história democrática deste país (até agora), e seu opositor reconheceu a vitória, sem escândalo. Teve outros VINTE E SETE ANOS para VAGABUNDAR no Congresso Nacional, sendo dezesseis desses vagabundos anos conquistados via urna eletrônica.

E aí… Aí, esse animal irracional que grasna, rosna e relincha diuturnamente, começa a falar “é… não vai ter eleições limpas ano que vem, tá ok?… Se eu perder é porque foi roubado e não vou reconhecer! (faz arminha com as mãos…)”…

Que tipo de imbecil sustenta essa argumentação? “Se eu venci, deu tudo certo com a urna. Se eu perdi, não foi justa a disputa”…

Como alguém ainda considera as opiniões advindas desse projeto de ditador de meia tigela? Eu não sei. Teria que sofrer uns cinco ou seis AVCs para concordar com algo que tem autoria do mais esdruxulo e repugnante cidadão a frequentar a Presidência da República do meu país. Sujeito que, com sorte, será “só” uma virgula triste na nossa história e não o causador de mais um retrocesso às trevas ditatoriais, nesse amaldiçoado país quando o assunto é política.

E não se esqueçam, meninos e meninas, outros e outras… Não há vida política desonesta com povo 100% honesto. Essa conta não fecha. Não é Brasilia que enoja o Brasil. É o Brasil que entulha Brasília (com lixo, majoritariamente – não obstante eu reconheça a existência de algumas poucas boas almas na vida política nacional). Se não gostamos dos representantes, temos que pensar em:

a) o material humano que forma nossos candidatos.

b) nosso processo de escolha destes.

E então, como um físico tendo que explicar que, não, a Terra não pode ser plana, cá estou a explicar que não tem como a urna eletrônica ser mais fraudável do que a urna de papel. E que imprimir o voto, por si só, não é resposta adequada à transparência (mas, à priori, o afago a medos e receios que não se lastreiam em verdade, até aqui). Até aqui, imprimir o voto é o tanque de guerra em cada rua da cidade. Em boa medida, daí minha irritação e meu sarcasmo ao longo desse texto inteiro.

Porque é SEMPRE cansativo ter que explicar que o queimar da Amazônia lasca o planeta, que a Terra é redonda, que vacina faz (MUITO) mais bem do que mal, que democracia é melhor que ditadura… E agora… Que o sistema eletrônico que elegeu adversários como FHC (2º mandato) e Lula, também elegeu todo o Congresso Nacional que, agora, fica – em boa parte de seus componentes hipócritas – de conversinha furada para confundir um povo já carente de razão e lucidez, falando sobre o voto impresso como “única forma de eleições limpas” …

Com qual objetivo real, senão permitir a desestabilização da frágil democracia brasileira? A mando de quem? Quem são os senhores dessa gente que nunca me representará (seja por sua desonestidade intelectual, seja por suas posições antidemocráticas)?

Então é isso… Espero que a informação deixe você, que se sentia um pouco desinformado(a) e, por isso mesmo, com medo da segurança da urna eletrônica, um cadinho mais confiante nessa discussão. Não cego, nem com a guarda baixa (vigiar as instituições é responsabilidade constante de todo cidadão). Mas menos alarmado(a) e menos vulnerável ao pânico e histeria.

O resumo é: nenhum sistema é 100% seguro. Isso não existe. Nem o eletrônico, nem o em papel (nem o em nada), é absolutamente inviolável. Quando comparados os sistemas, contudo, a urna de papel é uma vergonha em termos de segurança.

E a nossa urna eletrônica é suficientemente segura. Poderia ser mais, claro; sempre pode.

Não quer dizer – enquanto as auditorias técnicas (que também podem ser melhores [maiores, mais frequentes…] e podemos cobrar isso) não demonstrarem o oposto – que precisa ser mais segura, já e a qualquer preço.

Sobre o assalto a Portela

créditos da imagem: Secretaria Especial do Esporte - Mundial de Baku
Aviso: este é um artigo de mera opinião. Logo, ele foge um pouco da lógica que consiste em apresentar fontes para as “grandes” afirmações, como faço por aqui. Você é bem-vindo(a) para pedir alguma fonte para alguma afirmação se quiser/precisar, e farei o possível para apresentá-la(s) a você.

Falar em “Justiça” é sempre complicado. Quem estuda Direito, então, pode lhe apresentar mil teses sobre “o real significado de ‘Justiça’”. Todas elas postulando, é óbvio, que sabem “a verdadeira verdade”.

Para uns, “Justiça” é fazer com que a Lei seja aplicada cegamente, doa a quem doer. É evidente, para mim e tantos outros, que esta concepção ignora a complexidade do mundo real e das circunstâncias que nele se desdobram, gerando, fatal e inexoravelmente, injustiça.

Para outros, “Justiça” é proteger o mais fraco em detrimento do mais forte. Por mais romântica quanto essa ideia possa soar, é evidente – com base em fatos históricos, inclusive – que sociedade nenhuma pode prevalecer se as “regras do jogo” são sempre subjetivas, e os direitos e obrigações dependem majoritariamente da “hipo” ou “hipersuficiência” das partes envolvidas.

Batido conceito em todo santo semestre da faculdade de Direito, lá vem Aristóteles definir o que é “Justiça”. E, frequentemente, sumarizam seu pensamento (que é mais complexo e mais profundo do que uma frase) assim: “Justiça é tratar os iguais, igualmente; e os desiguais, desigualmente, na medida de suas desigualdades”.
Este último conceito é o mais aceito como a definição “contemporânea” (bem antiga, por sinal) de “Justiça”, e é por este e outros motivos que o Direito do Trabalho – só por exemplo – tem o preceito basilar de “hipossuficiência do empregado” ante ao empregador; regra que, claro, comporta exceções.

Daí, aquele(a) mais espertinho(a) em pesquisa na internê, corre lá na Constituição e se apressa em compartilhar que assim diz o art. 5º da Lei Maior: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(…)”.
E truca…
E perde…

O problema de uma Lei que não foi escrita para ser acessível a todos é que a hermenêutica jurídica (palavra bem bonita/mala para “interpretação da Lei”) não permite a leitura de um artigo “solto”, sem compreender o sistema em que este artigo está imerso.

Logo, nenhum direito é absoluto. Nenhuma regra é concêntrica (ou seja, sem exceções). Nenhuma decisão é irreversível (não sem vários meios de questioná-la, e mesmo depois de “sentença que transitou em julgado”, o Direito ainda prevê mecanismos onde se admite revisitar tema já encerrado. [Nesses temas, o Direito corrente costuma falar sobre “Ampla defesa”, “Contraditório” e “Devido processo legal”, caso você deseje saber mais).

Mas, claro: isso são as exceções já que, como dito anteriormente, a sociedade não poderia viver com regras absolutamente subjetivas e que mudam ao gosto do freguês (a isto, o Direito dá o nome de “insegurança jurídica”; condição danosa à sociedade e à economia de qualquer nação). Pior do que uma regra ruim, é a regra que ora se aplica, ora não, a depender de condições completamente imprevisíveis.

E, depois de tudo isso, é bastante importante esclarecer que advogados não lutam primariamente por “Justiça”. É claro: se você já viu a entrevista de um advogado após, digamos, a inocência de seu cliente ser corroborada em juízo, ele sempre dirá “o que se fez, aqui, foi justiça!”, ou coisa que o valha.
MAS… Mas, advogados realmente lutam por direitos. E direitos nem sempre são justos.

E “Justiça” não se confunde com “Direito”. O dono de um terreno de vários quarteirões tem o direito de reaver o imóvel ocupado por dezenas de famílias carentes (em regra; portanto, há exceções). E isto nem sempre será justo, já que a propriedade deve atender à sua função social, conforme preceitua o inciso XXIII do mesmo art. 5º, da mesma Constituição Federal (que também não se pode ler de forma não-sistemática). Por outro lado, um cidadão com apenas um terreno pequeno, morando de aluguel em outra cidade, a trabalho, pode se ver em um processo que consumirá muito tempo e muito dinheiro para reaver um imóvel invadido por espertalhões ou mesmo criminosos. Novamente, a realidade supera em muito a capacidade de criar hipóteses, e em cada uma delas, descobriremos que nem sempre o que é certo é legal, nem o que é legal é certo. Essa divisão costuma mexer com a cabeça dos futuros advogados. É uma relação conflituosa desde que os ideais se chocam com a necessidade de pagar boletos (“boletos”, sim, porque sou cringe e ninguém os paga por mim).

Se entrarmos em um clássico terreno de desavenças entre jusnaturalistas (que seguem muito aos “contratualistas”, como Locke e Hobbes, mas especialmente a Rousseau) e juspositivismo (muito ligados à Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen), teremos todo um complexo tabuleiro de ideias para destrinchar. Chegaríamos aos extremos de que uma Lei, ainda que legitimamente erigida, deve ser sumariamente desrespeitada caso não seja “justa” (com toda a complexidade e inexatidão que cabe nessa palavra). Do outro lado, veríamos que se a Lei lhe permite fazer mal ou, simplesmente, não impedir que o mal ocorra, ainda assim, você será justo ao fazer o mal ou deixar de impedí-lo).

Por que toda essa ladainha?

Bem, porque Maria Portela, atleta olímpica do JuDo (são duas palavras/ideogramas[kanji]: “Do” = Caminho/Escola; “Ju” = Suavidade/Gentileza) brasileiro na categoria até 70kg, sofreu um assalto. Para facilitar, vou seguir com a grafia em português que é “Judô” .
E, já que iniciamos falando em Direito, vale compartilhar que não existe o crime de “assalto”. Os crimes contra o patrimônio, vistos no código penal são, geralmente, o furto (quando o objeto é subtraído sem violência ou grave ameaça) no art. 155, ou o roubo (quando o objeto é subtraído mediante violência ou grave ameaça), no art. 157. Há outros, claro.

“Assalto” é um conceito quanto à forma de agir. “Tropas de assalto” não são tropas militares criminosas, mas tropas com técnicas de assalto o que, basicamente, significa “pegar o adversário de surpresa”.
Afirmar que os árbitros do dia 28 de julho (no Japão) “roubaram” Portela, poderia me levar a responder por outro crime, o de Calúnia (quando se imputa fato típico [crime] contra alguém, falsamente), art. 138 do CP. Claro: ninguém vai ser processado por chamar o árbitro de futebol (ou de qualquer esporte) de “juiz ladrão” … A Lei ainda não é tão frívola. Ainda.

Mas, se eu disser que “roubaram” a Portela, estarei também dizendo que houve uma intenção danosa, uma vontade de cometer o mal à atleta. E é muito difícil afirmar isso, exceto em casos notórios e igualmente infames de árbitros que aceitaram algum tipo de vantagem ou promessa benéfica em troca de um favorecimento indevido aos mandantes (o que, basicamente, caracteriza a corrupção passiva; mas esta figura típica se destina ao agente público, havendo diploma para tratar do caso entre CNPJs… Outro dia, outro post).

“Assalto” parece mais correto. Portela fazia uma luta difícil, mas dentro de uma certa normalidade e, de repente, de assalto, foi duplamente punida pela arbitragem (em momentos distintos da luta) que se desviou do que era esperado por milhares de espectadores (uma pesquisa feita por uma atleta da modalidade resultou em 97% de participantes opinando que houve waza-ari [explico o termo, depois]). Daí, podemos dizer que ocorreu “insegurança jurídica” no mundo do Judô; claro, abusando agressivamente das analogias entre as áreas.

Talvez eu devesse ter feito isso antes, mas faço agora: fui judoKa (neste contexto, “Ka” = praticante. Mas, seguirei com a forma aportuguesada, “judoca”) no início da vida adulta, por três anos, aproximadamente. Ainda amo o Judô, mas não o prático mais por N circunstâncias da vida, incluindo carreira, obesidade, problemas, outros sonhos que pediram passagem, e por aí vai.

Não tive a oportunidade de iniciar cedo no Judô, como ocorre com a maioria dos que praticam a arte. Não morava em um local que permitisse isto (a academia mais próxima devia ser na Penha, a Associação de Judô Messias, local tradicional, conhecido por quase todos os judocas de SP; e eu morava na Cidade Líder/Itaquera); nem meus pais tinham as condições para manter esse tipo de atividade extracurricular nas agendas de meu irmão e nas minhas (se um tem, o outro também tem que ter – essa era a Lei).

Mais que isso: você geralmente gosta mais daquilo que conhece e é exposto. Daí a importância de incentivar seu(sua) filho(a) a ler, primeiro pelo exemplo (leia para ele, tenha livros por perto, na mesa do escritório ou da sala, mesmo sob o sacrilégio de não lê-los). No início da década de 90, não existia exposição a outra coisa que não o futebol. TV a cabo? Você está louco(a). Internet? Quase dez anos adiantado(a)… E eu não gostava de futebol. Então, os esportes demoraram um pouco para entrar nas minhas paixões e, até hoje, o futebol é a menor prioridade na lista que inclui várias modalidades como futebol americano, natação, vôlei (pelo qual tenho enorme carinho, mas fica para outro dia) e, claro, o Judô.

Suponho que ainda que meus pais tirassem recursos de onde não tinham para me pôr, digamos, no Judô (ou qualquer coisa diferente do trivial), o provável é que eu desanimasse e perdesse o interesse por não ter o nível necessário de incentivo ao meu redor. Nenhum primo com quem eu convivia fazia; nenhum amigo da escola (todos tão pobres ou ainda mais pobres do que eu). Esse ambiente é excelente para desistência de qualquer criança, em qualquer atividade. Elas já desistem de estudar o que são obrigadas a estudar (novamente, muito pelo que recebem de incentivo no meio em que vivem). Imagine algo que não é mandatório.

Com a vida adulta, o primeiro emprego formal e um pouco mais de constância, o Judô foi um lugar encantador num passado um tanto quanto turbulento com minha depressão, alguns sintomas de síndrome do pânico, e caos por todos os lados da vida. Sou eternamente grato ao Senpai ( = aluno mais experiente) Fernando de Bem, e ao Sensei Roberto Forte Katchborian e, claro, todos os demais Senpais e Kohais ( = o oposto de “Senpai”), pois, sem eles todos, eu jamais poderia amar o Judô.

Em específico, agradeço ao Fernando por me convencer a assistir ao primeiro treino, me oferecer o DoGi ( “Gi” = uniforme. O nome completo seria “judo-gi” [ou karatedo-gi, se for um traje para Karatê, e assim vai…]) emprestado. E, até hoje, a “minha” faixa branca não é minha, mas dele, emprestada também. Se é emprestada, Fernando, significa que ainda é e sempre será sua. Peça de volta quando quiser, pois, uma faixa carrega muitas histórias. O desgaste dela nos lembra das horas no tatame, e de toda dificuldade para alcançar o próximo Kyu (= “grau de iniciantes”), até chegar no 1º Dan (faixa preta, com “Dan” também significando “grau de perícia”), momento em que, dizem os judocas, “o Judô começa, de fato”.

Depois, agradeço ao Sensei Katchborian por tantas lições, aperfeiçoamentos, bondade, sabedoria, sensibilidade e mentoria. Um verdadeiro mestre adequa sua forma de ensinar ao ritmo, possibilidade e dificuldade de cada aluno, e não acredita em fórmulas mágicas ou em “ensino quadrado”, tentando empurrar o conhecimento de qualquer maneira. Espero, quem sabe, ainda poder voltar a treinar com meu mestre e concluir a formação básica. Depois da faixa branca, cinza, azul, amarela e laranja alcançadas, ainda faltam três Kyus (concluir a transição para a verde [que havia iniciado, mas parei] o que leva um ano, normalmente; depois, estar em nível com a roxa, o que pode levar dois anos; e por fim, alcançar a faixa marrom, onde o judoca fica, em média, três anos antes de se avaliar o preparo deste para tentar obter o Dan; contudo, este é o caso geral e cada caso concreto é único). Só então estarei pronto para pleitear meu primeiro Dan.

Com Sensei Katchborian também aprendi sobre os três grandes pilares do Judô:

  • 1) Seiryoku Zen’Yo; tudo o que fazemos (no Judô e na vida) deve visar a máxima eficiência. Derrubar um adversário que pesa 100kg é sempre difícil. Faça da forma mais eficiente possível. Ao lidar com um problema na sua vida, resolva-o da forma mais racional e efetiva possível. É uma filosofia de vida e, por ser assim, é algo que o judoca persegue a vida toda, sempre imperfeitamente, mas sempre passível de se aperfeiçoar.
  • 2) Jita-Kyouei; Meu treino e minha luta só são bons na medida em que são bons para o aprimoramento de meu adversário e/ou colega de treino. A solidariedade humana importa ao judoca que leva o Judô a sério.
  • 3) Ju; a suavidade que o Judô prega nada tem a ver com a ausência de esforço. Mas, sim, com os movimentos mais eficientes quanto possível, para vencer o adversário. Às vezes, vencemos ao ceder a uma força maior que a nossa, e não ao nos opormos a ela (oposição que nos levaria à derrota, provavelmente).

Sem os Senpais e Kohais simplesmente não há treino, já que não é possível treinar Judô sozinho. Você até pode fazer algumas partes do treino individualmente, mas a parte em que realmente aprende é a parte em que enfrenta os adversários que o ajudam a ser melhor, como você os ajuda também.

E, mais uma vez, você se pergunta: “Onde diabos esse texto está querendo chegar?”. É uma pergunta justa. Eu tinha duas missões até aqui: 1) Compartilhar como o Judô se organiza e alguns conceitos básicos da arte, para que o texto tenha alguma valia para quem se dedicou a lê-lo; 2) mostrar que não estou falando de algo cuja ignorância não permitiria ver um palmo à frente (já que não cito fontes até aqui, você precisa confiar que eu sei sobre o que falo; e isso é sempre perigoso).

De volta a Portela

Maria de Lourdes Mazzoleni Portela, nascida em 14 de janeiro de 1988, em Júlio de Castilhos, Rio Grande do Sul, é uma judoca com trinta e três anos e meio, formada pela tradicionalíssima SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto Alegre) que manteve em seus quadros os nomes que ficariam conhecidos no Judô mundial, inclusive revelando alguns deles, como João Derly (bicampeão mundial [2005 e 2007]; campeão pan-americano [2007]) e Tiago Camilo (campeão mundial [2007]; tricampeão pan-americano[2007, 2011, 2015]; duas medalhas olímpicas [prata em Sidney/2000 e bronze em Beijing/2008]).

Atualmente, conta com Mayra Aguiar (bicampeã mundial[2014 e 2017] mais cinco medalhas mundiais [prata/2010, bronze/2011, prata(equipes) e bronze/2013, bronze/2019]; campeã pan-americana [2019] e mais três medalhas [prata/2007, bronze/2011 e prata/2015]; e que acaba de conquistar o terceiro bronze olímpico, agora em Tóquio/2020 [os outros dois em Londres/2012 e Rio/2016], sendo a primeira mulher brasileira com três participações com medalha em esporte individual, em olimpíadas), Érika Miranda (três pratas em mundiais [2013/2013 {equipes}/2017] e quatro bronzes [2014, 2015, 2017, 2018]; além de campeã pan-americana em 2015 e outras duas pratas [2007, 2011]), Felipe Kitadai (bronze olímpico em Londres/2012; prata no mundial 2011; campeão pan-americano em 2011 e prata em 2015)…

…e, claro, Portela (duas vezes medalhista mundial [prata/2017 e bronze/2019] e duas medalhas no Pan-americano [bronze em 2011 e 2015]), filha da casa.

Conhecida na seleção nacional de Judô pela alcunha de “raçudinha”, Portela é um verdadeiro tanque de guerra em forma de judoca. Assistir suas lutas é ver um espírito combativo muito alto. Ela raramente se cansa antes do golden score (prorrogação) e busca o combate o tempo todo, até quando poderia simplesmente administrar a vantagem.

Mas, no dia de 28 de julho, em Tóquio, Portela seria desclassificada por excesso de shidos (faltas, cuja terceira gera a desclassificação do(a) atleta) após quatro minutos do tempo regular e quase onze minutos de golden score (prorrogação em que o primeiro atleta a marcar, vence. Não há limite máximo de tempo).

A desclassificação por shido, em si, não é polêmica, acontecendo com regularidade nas competições, com maior ou menor frequência, a depender do espírito da arbitragem naquela competição. Esse espírito se altera para mais rigor, ou menos rigor, conforme a crítica especializada e leiga comenta os últimos torneios. A IJF (International Judo Federation) está sempre tentando tornar o Judô mais atrativo ao grande público. Na minha nem tão modesta opinião, às vezes, às custas da alma do Judô; como quando baniu alguns golpes que compunham o Go Kyo (os quarenta golpes fundamentais do Judô, criados e esquematizados por seu fundador, Sensei Jigoro Kano, em 1882).

Entre as evoluções (lembrando que “evolução” não é sinônimo de “melhora” [pergunte para alguém que evolui a óbito; ou melhor… Tente perguntar…]), eliminou-se as notas “Koka” e, mais recentemente, “Yuko”. O atual sistema de notas é composto por apenas dois critérios: Ippon (o golpe perfeito, que termina o combate imediatamente) e Waza-ari (um “Ippon imperfeito”. Dois waza-aris encerram o combate). O tempo regular de combate caiu de 5 para 4 minutos, e shidos não desempatam mais as lutas (embora possam eliminar o adversário, como aconteceu com Portela). Tudo para tentar tornar a luta mais dinâmica e mais “viva” para o público em geral.

Portanto, ninguém “dá Ippon” em ninguém. Ippon é uma pontuação que depende da perfeição com que um golpe é aplicado. Assim como Waza-ari também não é um golpe, mas sua pontuação (e que se pronuncia como “uazaari” e não “vazari”, como lamentavelmente todo narrador e até judocas dizem por aí). Até existe um golpe chamado de “ippon seoi nage”, mas quando judocas abreviam o golpe, se referem a ele como “seoi nage”. Então, de agora em diante não diga “ele deu ippon”. Pode dizer, porém, que “ele(a) jogou o adversário de ippon” (analogamente a quando dizemos que alguém fez um gol “de placa”); porque a projeção efetuada se deu com perfeição e gerou um ponto perfeito, o ippon. Ippon e waza-ari adjetivam o golpe realizado. Não são golpes em si.

Abaixo, o nome dos golpes incluídos no Go Kyo (há mais golpes, esses são os principais para projeção [nage waza]. Há, ainda toda uma parte de solo/imobilização [ne waza] e toda a parte de chaves [kansetu waza] e estrangulamentos [shime waza]):

direitos de imagem: https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:Gokyo-no-waza.jpg

Então, onde reside a polêmica que leva Portela a ter sido “assaltada”?

Portela fez uma luta boa. Mas sua adversária, Madina Tamaizova do Comitê Olímpico Russo (ROC) – já que a Rússia está punida pelos escândalos de dopping e não pode atuar nos jogos olímpicos com a bandeira nacional – também foi sobrenatural. Na realidade, conforme a história do dia 28 se desenvolve, o brasileiro que entende de Judô passa de ódio para perplexidade, terminando até mesmo em admiração pela capacidade de superar a dor que Tamaizova demonstrou. MAS, vamos devagar…

A luta entre Portela e Tamaizova era o round de 16 avos da final. Depois, obviamente, vinham as oitavas de final e assim por diante. Nos campeonatos atuais de Judô, não há “fase de grupos” … Você entra e se perder, está fora. Fim de papo. A repescagem surge nas quartas de final, e o Judô geralmente premia quatro medalhas, sendo um ouro, uma prata e dois bronzes (os perdedores das semifinais enfrentam os vencedores da repescagem, pelos dois bronzes à mesa).

A primeira luta de Portela foi contra a afegã do time de refugiados, Nigara Shaheen (que não consta no ranking IJF em suas primeiras cem posições), e foi vencida em altíssima velocidade pela brasileira que ocupava a nona posição no ranking mundial da IJF para mulheres até 70kg, sua categoria e a categoria do dia nas Olimpíadas de Tóquio. Um belíssimo sode-tsurikomi-goshi foi aplicado com apenas 28 segundos de luta. Golpe muito plástico e de execução perfeita por Portela. Ippon. Fim de combate.

Do lado da Tamaizova, naquele momento, décima segunda do ranking IJF, a russa enfrentaria, na primeira luta, Maria Bernabeu, espanhola, décima oitava do ranking IJF naquele momento. A luta foi vencida por um soto-makikomi imperfeitamente executado, que resultou em um waza-ari para a russa ao primeiro minuto e sete segundos, e a luta durou os quatro minutos típicos e previstos.

É evidente que enfrentar uma refugiada que não treina regularmente é comparativamente mais fácil do que enfrentar a décima oitava da categoria na IJF, embora o ranking tenha uma série de imperfeições em seu sistema de ranqueamento, mas não cabe discutir isto por aqui, agora.

Então, chega a luta fatídica: Portela e Tamaizova. Trinta e três anos e meio do lado brasileiro, vinte e dois anos do lado russo. 1,58m do nosso lado, 1,69m do lado adversário. Ambas no limite da marca de 70kg (embora a realidade não seja bem essa).
O arbitro foi o Sensei (todo arbitro de Judô também é judoca) Everardo Garcia, do México. Não tenho os dados dos árbitros no VAR/banca.

E a luta foi assustadora. Quatorze minutos e cinquenta e oito segundos de duração. Basicamente, três lutas em uma.

Nos primeiros quatro minutos nada de realmente grande ocorreu, mas, já era visível que os trinta e três anos de Portela lhe rendiam mais astúcia e controle na luta contra a novata de vinte e dois anos. Portela teve, certamente, mais volume de luta. Tanto que o primeiro shido (punição) saiu aos 4m35s para a russa, por evitar a pegada (o que é um “antijogo”). Porém, cinco segundos depois, o mesmo shido foi dado a Portela. Nesse tempo, já estávamos em golden score. O primeiro ponto, waza-ari ou ippon, encerraria o combate, portanto.

O polêmico golpe não concedido à Portela foi desferido aos 3m02s do golden score (portanto, 7m02s no total); um eri-seoi-nage, imperfeito, já que as costas da russa não atingiram totalmente o chão, mas ela acertou o tatame de um ombro ao outro (rotacionando a omoplata contra o solo) e em alta velocidade. O arbitro não concedeu o waza-ari à brasileira, emitindo o comando de “mate” (que interrompe o combate) e acionou o VAR para revisão. Após quase um minuto, o waza-ari seguiu não concedido.

O que diferencia um waza-ari de um ippon?

Talvez, aqui, caiba uma pequena pausa para classificar ippon e waza-ari, quanto a pontuação de um golpe.

Conforme preceitua o documento “IJF Sport and Organisation Rules (SOR, Version 8 October 2019)”, um ippon é a aplicação perfeita de um golpe de Judô. Essa perfeita aplicação requer quatro critérios: a) Força; b) Velocidade; c) Queda do adversário sobre as próprias costas; d) Controle habilidoso sobre a queda do adversário até o contato deste com o chão.

Portanto, o arbitro avalia o domínio da técnica pelo Tori (quem arremessa), e controle da queda sobre o Uke (aquele que cai), fazendo com que este último atinja o solo com as costas “chapadas” contra o tatame, de maneira completa. A velocidade e a fluidez do golpe também importam.

Já, um waza-ari é um golpe em que algum dos quatro elementos (ou até mais de um), acima, está incompleto. O controle da queda não era pleno, as costas não atingiram o chão completamente, não houve velocidade suficiente, e por aí vai.
Para mais detalhes, consultar páginas 116 a 118 do referido manual (em inglês, no site da IJF).

Voltando ao combate

Portela projeta Tamaizova através de um sode-tsurikomi-goshi a 3m02s do golden score. A atleta cai com o ombro direito e, depois rola até o esquerdo. As definições típicas de um waza-ari estão caracterizadas, na minha opinião, opinião inclusive embasada nas descrições do documento da IJF. A atleta russa chega, ainda, a usar – intencionalmente ou não – o pescoço durante a queda; algo que, se realmente caracterizado, acarreta a desclassificação (“hansokumake”) da atleta russa pelo perigo à coluna dela mesma. Só lembrar do segundo princípio do Judô, o Jita-Kyouei.

E, não se enganem, porque eu não me engano. Em conversa com amigos, eu já havia dito que não acreditava em medalha de ouro para Portela. Especificamente, eu disse a eles: “Portela tem poucas chances reais de lutar por prata/ouro, mas o bronze não é impossível. A luta dela é a oitava no tatame feminino. As favoritas do 70kg são Van Djike(HOL) e Pinot (FRA), com Arai (JAP) correndo por fora. A Portela pega uma afegã do time de refugiados, e é esperado que ela vença essa, ao menos”.

Então, não. Nunca achei que Portela seria ouro em Tóquio. Aliás, eu acho até que demandar o bronze dela, ou de qualquer atleta é um defeito de quem assiste a uma competição olímpica (“demandar” é diferente de “achar possível”).

Uma olímpiada tem um complexo ranqueamento para a qualificação do atleta aos jogos, logo, ninguém ali é muito fraco. Claro que há o time de refugiados, o país sem qualquer tradição na modalidade, etc., etc., etc…. Mas, mesmo assim, quando olhamos, por exemplo, um brasileiro em décimo lugar numa lista de dez competidores olímpicos, é ignorância reduzir o pensamento a “ele(a) ficou em último(a)” . No ranking olímpico, sim. No ranking do mundo, absolutamente não. Porque onde ele(a) se classificou, centenas e até milhares não conseguiram.

Em modalidades como a natação, por exemplo, muitas vezes a diferença entre o ouro e o sexto lugar, digamos, está na casa dos centésimos de segundo. O medalhista de ouro, na categoria masculina, Caeleb Dressel (EUA), fez os 100m nado livre em 47s02c, e o sexto lugar, Alessandro Miressi (ITA), fez em 47s86c… Mesmo do primeiro para o último colocado na final, a diferença foi de um segundo e oito centésimos. Isso mesmo. O tempo que você levou para ler a última frase é o que separa o campeão e aquele que você, talvez, considere um perdedor.

É claro que atleta nenhum sai de casa, rumo a uma olímpiada, desejando ficar fora do pódio. Mas estar lá já o credencia a dizer que ele pertence à elite esportiva mundial. Você concordando com isso ou não.

Mas, o que realmente frustra no caso Portela é a ambiguidade. A “insegurança jurídica” é o que corrói. Eu consigo apontar N quedas muito similares, senão menos características do que aquela, e demonstrar que as comissões de arbitragem declararam o waza-ari.

Mais do que isso: se a atleta russa defendeu a queda usando o pescoço para evitar o rolamento sobre a omoplata (o que seria waza-ari), então, ela deveria ser imediatamente desclassificada por hansokumake. E se não usou o pescoço, então o que DIABOS ela fez para bater o ombro direito e não rolar as costas inteiras até o esquerdo? Qual mágico movimento ela pode ter performado que não envolveu a ponte com o pescoço ou o rolamento por sobre toda a omoplata?

Leandro Guilheiro, que ainda atua na preparação dos atletas do Judô brasileiro alegou que, em apuração com um membro do comitê de arbitragem, seu contato disse que é pacificado que aquela queda não deve ser pontuada. E, novamente, não se enganem: o Judô de alto nível, como quase tudo que fica grande e mundial, tem muita politicagem. É muito difícil que um arbitro oficial acuse outro arbitro oficial de equívoco no julgamento. Qualquer semelhança com o judiciário brasileiro é mera coincidência.

O que resta?

Não resta nada. O estrago foi feito. As entidades desportivas brasileiras se acovardaram ao não tomar uma posição propositiva em prol da atleta; como sempre fizeram e como sempre farão, de seu patamar e postura sempre servis, sempre subalternos.

Eu me recuso a reprisar as imagens do choro comovente de Portela. Ela sofreu como sofre a vitima de um crime. E foi um crime. Não em sentido estrito, claro. Mas em um sentido emocional. Humano. Ético, por que não?

A história de TODO atleta – do nosso lado e do lado de lá – envolve muito sacrifício, escolhas difíceis, quase sempre muita dor. Em esportes como o Judô, as lesões são ingratas companheiras na jornada, quase sempre certas numa longeva carreira.

Esporte pode até ser sinônimo de saúde. Não o esporte de alto rendimento, contudo. Não há nada de saudável no esporte de alto nível, e não acredite em quem diz que há.

O dopping é uma das faces do “melhoramento humano” que o esporte de alto nível pode incentivar (especialmente, quando a medalha é tudo o que importa para uma dada cultura desportiva, pressões por resultados, dos torcedores, dos patrocinadores, do Estado [como no caso russo]).

Outra face são as lesões que deixam marcas permanentes (de dor na aposentadoria, de mobilidade reduzida), os tratamentos paliativos para um(a) atleta lesionado(a) seguir atuando, quando ele(a) deveria se retirar da ativa, tratar a lesão por meses, e não simplesmente seguir convivendo com a dor atenuada, meses a fio, piorando a lesão no longo prazo.

No Judô, como em toda modalidade de combate, é comum que o atleta use medicação para induzir a diurese e até diarreia, antes da pesagem. O atleta pesa, digamos, 76kg… E perde quatro, seis, oito quilos de água e nutrientes antes da pesagem, para entrar na categoria inferior. Depois, corre para se hidratar até a luta. Chame isso do que quiser. Menos de “saudável”.

E, depois de uma vida de preparação e dos esforços focados no ciclo olímpico – quatro anos de muito esforço, muita dor, muitas restrições, derrotas, vitórias, viagens… – a atleta Portela chegou até o momento de ver a redenção de sua cruz pessoal como atleta de alta performance.

Chegou até o momento, mas, viu o momento lhe ser tirado das mãos por fatores que, elogiosamente, chamarei de “caprichos de interpretação”.

O choro de Portela não foi por perder aquela luta, garanto. Foi, sim, por ver o sonho de uma vida ser arrancado de suas mãos sem que ela tivesse merecido a punição que lhe foi aplicada. A punição de um ponto não atribuído. A punição de, depois de praticamente quinze minutos, ser desclassificada por “falta de combatividade”. Um absurdo, por qualquer ângulo, para qualquer um que assistiu a mesma luta que eu assisti.

Tamaizova não é culpada de nada, até que se prove o contrário. Como eu disse, ela também deve ter uma história de vida e de atletismo muito parecida, senão igual ao da nossa Portela. Mas, eu tenho convicção de que ela não mereceu a medalha que levou, mais tarde (o bronze). E não por ela, em si. Mas, porque não era ela que deveria ter passado de round. Bem… Se o mundo fosse justo…

Pior do que isso: toda vez que eu me lembrar de Tamaizova, toda vez que um vídeo da história olímpica de 2020/2021 for reprisado, nas semanas que antecedem a próxima olimpíada, eu serei lembrado do crime que Portela sofreu. Eu serei forçado a dizer “não, Tamaizova… Essa medalha não é sua. Não era no seu peito que ela deveria estar. Se deveria estar em algum lugar, era no peito de Portela, se é que ela não iria mais longe, depois de lhe vencer”…

Deve doer demais. Nunca fui atleta profissional. Mas eu já tive sonhos arrancados de mim por motivos e forças que eu não tinha como lutar contra, ou alterar. E sei como é um sentimento cruel que te persegue pelo tempo. Creio que você também já se sentiu assim, em algum ponto, ou agora mesmo. Creio que todos já se sentiram assim. Então, porque se solidarizar publicamente com Portela?

Porque Portela representa parte do espírito humano de superar desafios, superar a si mesmo(a), seguir, mesmo com dor. São valores caros, especialmente para os tempos que passamos. São valores que, não só, mas especialmente, o esporte consegue cristalizar e ensinar.

Recuso-me aos chavões. Bobagens como “fulano(a) é um herói!”… Pura bobagem. “Herói” é palavra que reservo a quem faz algo realmente heroico, especialmente quando a vida está em jogo, ou outra coisa que valha quase tanto quanto. Atletas raramente são heróis só por serem atletas. Raríssimas vezes a palavra “herói” pode ser usada para alguém que, por vontade própria, decidiu competir e ganhar a vida através das competições desportivas.

Mas, Portela merece minha simpatia, me compadeço e entendo seu luto e sua dor, porque Portela é um símbolo que me lembra das vezes em que sonhei, em que dediquei bom tempo da minha vida a um propósito, com um custo (financeiro, material, emocional, temporal…) que só eu conheço, e isso foi tirado de mim sem que eu pudesse enfrentar aquilo em pé de igualdade. E eu lembro do sabor terrível de “injustiça” na boca. E consigo imaginar o gosto amargo que Portela teve de sentir, ali.

E, no fim, essa me parece a maior importância dos jogos olímpicos no mundo contemporâneo: ao mesmo tempo que os atletas representam a elite do preparo humano, do aperfeiçoamento da técnica, da precisão que beira ao maquinal… Eles também nos lembram da nossa humanidade, da nossa falibilidade, dos nossos limites, e de que essa vida é dor, é superação, é choro… É tudo que o comercial ou o coach não nos conta… A vida é cíclica, como um ciclo olímpico. Tudo que começa, um dia acaba. Muitas e muitas vezes, sem direito a protestos de “justo” ou “injusto”, com toda a imprecisão que tais termos carregam, como já discutimos.

Com a idade que tem, Portela já é “velha”… Outra face muito cruel do esporte profissional. Além do que, as novas gerações já estão pedindo passagem e o esporte olímpico, como a vida, faz o novo substituir o velho com muita frequência… Mas, agora, torço MUITO para ver Portela em Paris 2024.

Não porque eu ache que com trinta e seis anos e tantos meses, em 2024, Portela estará mais pronta ou terá mais chances do que tinha nessa edição.

Mas, se Portela voltar à Paris, ela me lembrará de algo que as Olimpíadas e especialmente, o Judô, sempre tentam nos ensinar: a vida vai nos derrubar inúmeras vezes. A real questão é quantas vezes teremos forças para nos levantar do chão duro em que ela nos jogou. Inclusive, quanta força ainda temos, mesmo cientes de que ela sempre vence e sempre nos dá o último tombo.

Força, Portela! Por você. Por mim. Por todos que sabem o que é ter um sonho arrancado das mãos e ter que se levantar depois de um pesadelo que ocorre enquanto estamos de olhos abertos.

Força! Não só por você. Mas por todos nós que já caímos, ao menos uma vez, e seguimos levantando enquanto der.