Sobre o “tratamento precoce”

Quando um médico abandona a Ciência, começa o curandeirismo…

Créditos da imagem: foto de Jaqueline Fonseca/CB/D.A Press – Origem: https://www.correiobraziliense.com.br

Eu queria dizer que estamos vivendo o pior momento da pandemia no Brasil.

Não posso.

Não posso porque se alguma coisa foi ensinada ao povo brasileiro com educação básica, no último ano, é que as coisas sempre pioram por aqui. O dólar, o petróleo, o mercado, o supermercado, a preservação do meio-ambiente, a preservação das instituições democráticas, as recomendações e práticas médicas e sanitárias… Tudo piorou.

Também não posso porque respeito a Ciência suficientemente para saber que fazendo as coisas do mesmo jeito, o resultado PRECISA ser igual ao que está ocorrendo agora. Como nada muda na condução do enfrentamento à pandemia, os resultados não podem ficar melhores “do nada”.

Então, tem surgido com mais força nas redes sociais, diante do desesperador patamar de 3.000 (TRÊS MIL) mortos por dia (e vai piorar; não é profecia, é lógica), inúmeros vídeos de “médicos” (as aspas se devem porque poucos dizem o nome, o CRM, ou qualquer outra filiação, tornando difícil conferir) defendendo o “tratamento precoce”; aqui, as aspas são necessárias porque, segundo A CIÊNCIA, não há “tratamento precoce” conhecido para COVID-19 (embora haja novos candidatos. Mais a seguir).

Deixe-me demonstrar a visão científica no tema. Mas, primeiro, um aviso: Eu não sou médico. Não sou pesquisador. Não tenho qualquer relação profissional ou acadêmica com as áreas biológicas (embora tenha um profundo amor por elas; mas isso significa nada em termos de discutir algo com qualidade). ENTÃO, POR QUE DIABOS EU ESTOU ME METENDO A FALAR DISSO?
Bem, primeiro: Pelo nome do blog, você já deveria ter entendido como as coisas funcionam por aqui.
Segundo, diferentemente de todos esses vídeos e páginas na Internet, eu SEMPRE forneço a referência bibliográfica que consultei, e ela é, sempre que possível, retirada de associações cientificas e de classe, nacionais e internacionais. Vulgo “onde a Ciência mora”.

Todos nós, pessoas sem transtornos mentais que deformem o caráter, torcemos pela melhora das vítimas da COVID-19 – e que estão lutando para sobreviver, nesse momento – e todos nós desejamos que a COVID deixe de nos assustar. Ou seja: que ela se torne só mais uma doença, sob o controle da Medicina, com raras fatalidades, inevitáveis só para aqueles já acometidos por muitas comorbidades e/ou quadros crônicos. Esse é o sonho de consumo de todos: voltar a viver sem tanto medo de se contaminar, porque sabemos que a Medicina tem a resposta para o agente infeccioso.

Acontece que, hoje, março de 2021, ela não tem. Vacina e Tratamento não se confundem, como explicarei depois. E é importante focar na data em comento porque a Medicina, enquanto área aplicada das Ciências Biológicas, está SEMPRE sujeita a descobertas repentinas, mudanças de protocolo de tratamento, novas técnicas, banimento de técnicas antigas e por aí vai. Na Medicina (e na Ciência), o “dogma” (a ideia que não pode ser questionada) mata e não tem espaço entre os bons profissionais.

Por exemplo: no começo dos anos 1990, o tratamento para pacientes em trauma por desaceleração (termo técnico para quando seu carro vira um pastel no muro), incluía a reposição volêmica (grosso modo: repor o sangue perdido) com quantidades assombrosas de cristaloides (grosso modo: soro fisiológico). O julgamento era que o paciente morreria se a pressão arterial não fosse mantida a todo custo, em decorrência do choque hipovolêmico hemorrágico. Como o sangue jorrava no pobre arrebentado, a ideia era substituir o volume perdido por soro, mantendo a pressão em níveis considerados sustentáveis. Hoje, é impensável administrar litros de soro em um paciente todo ensanguentado como medida primária/padrão, porque se sabe que a diluição do sangue ainda restante leva a efeitos anticoagulantes, acidose metabólica(…), e a morte, nesses casos, é (quase sempre) certa. Então, o choque hipovolêmico é definitivamente um perigo nos quadros de trauma, mas “tratá-lo” com soro em abundância também é. Não sabíamos disso antes, sabemos agora (referência).

Pois bem, no tema do “tratamento precoce” para COVID-19, a resposta que a Medicina e a Ciência têm é de que não existe protocolo para tratamento precoce (referência). Embora possa, sim, existir situação em que o acometimento de duas patologias concomitantes (como COVID-19 e Influenza) leve à necessidade de tratamento com remdesivir, só por exemplo. Neste caso, a droga está aqui pelo quadro, e não como tratamento precoce para o grande público contra COVID, tampouco, como tratamento profilático (só por precaução) para ela; esta última prática, a mais perigosa ao fazer uso dos medicamentos do “kit COVID”. Há novas terapias promissoras em desenvolvimento, mas nada que o grande público tenha acesso, já.

E sua próxima pergunta pode ser: Como assim? O(A) médico(a) do Youtube/WhatsApp disse que há tratamento, explicou tecnicamente as fases do tratamento com nomes tão chiques quanto os que você usa, mostrou a importância da ivermectina, da azitromicina(…).
Ao que respondo: “Calma… O(A) médico(a) não é a Medicina. Como a árvore não é a floresta, e a parte não é o todo”.

De maneira bem grosseira (você não quer ler parágrafos, em dezenas, só sobre o método científico, não é mesmo?), em Ciência, trabalha-se com o modelo de pesquisa revisada por pares. Esse modelo vem de uma lógica (óbvia) de que o ser humano é falível. Logo, todas as suas ideias, observações e conclusões também podem ser. O jeito de mitigar (diminuir) esse problema é ter muitos olhando para a mesma coisa, criticando (com observações, indagações, confrontações) o jeito como a pesquisa foi conduzida, a validade do método, a massa de amostras, o risco de conclusões equivocadas a partir de observações certas (O problema da correlação espúria: “OMO é anticoncepcional, já que toda mulher que o compra tem apenas 2 filhos, contra 5 filhos para a mulher que compra Ace”), e por aí vai.

Por exemplo: Se uma medicação precisa ser testada no grande público, o ensaio precisa ser randomizado. O motivo é este: Imagine que o teste da droga se limite à população jovem de SP. O ensaio estará enviesado, sem considerar a discrepância de nutrição e acesso à medicina preventiva em comparação com a população jovem do Pará, digamos. E nem preciso dizer que o método excluiu a população idosa, a primeira infância, doentes crônicos e todo o resto. Portanto, é possível desenhar um estudo com 16 mil pacientes observados e descobrir que… Bem… Todos eram jovens e responderam bem ao uso de azitromicina. Ocorre que eles iam responder bem à COVID SEM a azitromicina, porque são jovens (e este não é o grupo mais vulnerável ao vírus ou ao medicamento) … Então, você tem uma pesquisa em mãos que, do ponto de vista qualitativo do método científico é pura porcaria. E duas são as conclusões: Ou a pesquisa foi desenhada para explicar um pequeno aspecto farmacológico, e gente sem conhecimento (ou maldosa) decidiu “emprestá-la” para justificar as próprias crenças, OU… Quem fez a pesquisa não sabe pesquisar (porque, por mais incrível que possa parecer, também tem cientista ruim de serviço, como tem mecânico, padeiro, técnico em informática…).

Qual é o ensaio clínico (esse é o nome de um “tipo de pesquisa” em Biológicas), randomizado, com uso de “duplo cego”, controlado por placebo (…) que embasa o discurso do/a médico/a (que, volto a dizer, não é a Medicina inteira, mas só a menor parte dela) defendendo o tratamento precoce? Bem, eu não sei a qualidade e quantidade de fontes, mas vamos supor que este(a) profissional está dizendo o que diz com base em empirismo. Observação dos fatos em primeira pessoa. Mão na massa… Você entendeu.
Ou seja: Ele(a) está na linha de frente, recebe pacientes infectados, testa eles com método PCR (esperamos que teste… Se não testar, aí não dá nem para começar a falar da validade do tratamento), e então opta pelo “kit COVID” ou qualquer outro nome para administrar drogas variadas ao paciente. O coquetel de drogas dos defensores do “precoce” é bem conhecido: hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, lopinavir/ritonavir (comercialmente: kaletra), corticoides, tocilizumabe… Deve ter algum que esqueci. Usam todos, combinam alguns, misturam com um chazinho, ervinha… Por aí vai.

E aí, O PACIENTE SOBREVIVE! Ótimo! Quer dizer que o coquetel funciona? NÃO. De forma alguma. A COVID-19 tem letalidade nacional na casa dos 2,5%. Em Manaus, lar da cepa P.1, a letalidade bate 5% (referência). Quer dizer que no caso de cem pessoas adquirirem COVID, ao mesmo tempo, aproximadamente três morrerão no âmbito nacional. E cinco morrerão no Amazonas. O que significa? Que de cem afetados, noventa e cinco tendem a sobreviver – no cenário amazonense – de qualquer forma.
E eu volto a explicar o básico: O terror com a COVID não está na letalidade, mas na capacidade de exigir o tratamento com internação para suporte à vida, que sua característica SARS (síndrome respiratória aguda grave, em português) causa em grande volume dos acometidos. A COVID-19 é mais perigosa que a dengue, pois, a dengue não gera o número de intubações e necessidade de UTI como a COVID faz. Por isso, a COVID gera poucas mortes diretas (na comparação com outros patógenos), mas muitas mortes colaterais. Gente acometida por um AVC, por exemplo, poderia sobreviver, mas não vai porque não há leitos para cuidar desses acidentados. Vou parar nesse exemplo.

Agora, imagine que eu estou fazendo o estudo para encontrar um protocolo de tratamento, e vejo que 10 em 10 pacientes meus sobreviveram ao COVID depois que eu indiquei uma dieta de carne de porco na brasa e cerveja. E, como dito, todos eles sobreviveram. Logo, por empirismo, pela minha observação prática, posso dizer que carne de porco e cerveja contribuem para uma taxa de 100% de cura nos pacientes tratados pelo meu protocolo. Percebe o problema?
Todos aqueles dizendo “eu tomei, meu marido tomou, o vizinho tomou, o cachorro tomou, e estão todos bem” estão achando que a experiência pessoal prova alguma coisa em termos de Ciência. Quando a verdade é que eles sobreviveriam DE QUALQUER MANEIRA, com ou sem o tratamento precoce. Para cada história de “sobrevivi ao COVID tomando ivermectina” eu posso apresentar uma de alguém que partiu deste mundo tomando o remédio ou coquitéis deles. Nem um relato, nem o outro, são equivalentes ao método científico. Isso são causos, irresponsavelmente (por desconhecimento ou por maldade) elevados ao status de bastiões da verdade científica.

Quando o cientista (ou o médico-cientista) se desespera pelo quadro que vive (que é absolutamente desesperador, concordamos todos) e começa a ver curas milagrosas onde ninguém mais vê, a Ciência está em risco.

A OMS não suporta nenhum dos “protocolos precoces” em uso no Brasil: https://www.paho.org/pt/covid19 (pesquisar por cloroquina ou irvermectina)
Nem a FDA (EUA): Coronavirus (COVID-19) Update: FDA Revokes Emergency Use Authorization for Chloroquine and Hydroxychloroquine | FDA
Nem a SBI(BR), a AMIB (BR), a SBPT(BR): Guidelines for the pharmacological treatment of COVID-19. The task-force/consensus guideline of the Brazilian Association of Intensive Care Medicine, the Brazilian Society of Infectious Diseases and the Brazilian Society of Pulmonology and Tisiology (nih.gov) (veja o campo “results”)
Nem a Anvisa: Anvisa proíbe venda sem receita de cloroquina e ivermectina | Agência Brasil (ebc.com.br)
Nem a EMA, da União Europeia: COVID-19: reminder of the risks of chloroquine and hydroxychloroquine | European Medicines Agency (europa.eu)

E se ninguém mais vê a mágica que o defensor do tratamento precoce está vendo, estariam todos os órgãos científicos e médicos do país e do mundo equivocados, e o médico/defensor que viu a taxa de convalescência subir com seu kit, certo? É uma hipótese, claro… Remota, mas possível. Já disse que Ciência não trabalha com dogmas. E aí, é preciso que se façam estudos sobre a farmacodinâmica (o mecanismo de ação) das drogas propostas e sua eficácia vs. o seu risco (todas as drogas têm risco. Todas. O risco só tem que ser menor do que o benefício para justificar o uso).

E aí vem o problema: Vários estudos já foram conduzidos e todos demonstraram a ineficácia (quando não, os perigos) dessas drogas.

Hidroxicloroquina/cloroquina com e sem azitromicina: A systematic review and meta-analysis on chloroquine and hydroxychloroquine as monotherapy or combined with azithromycin in COVID-19 treatment | Scientific Reports (nature.com)
Em primeiro lugar, quero demonstrar como é fácil achar um paper (grosso modo, uma pesquisa) solto por aí sobre um dado tema e que prova, digamos, o que você quer provar; e como é DIFÍCIL achar pesquisas de qualidade:
“A total of 4730 articles were found after searching 12 different databases. Of this number, 1151 duplicates were found by Endnote X8, and 472 were published before 2019 so they were excluded. Title and abstract screening of 3107 papers resulted in exclusion of irrelevant papers (2394), retracted articles (15), and manually found duplicates (586). A total of 112 articles were screened for eligability. Finally, 23 papers were eligible, in addition to, 12 mannually added research.”.
Começaram com 4.730 artigos, e somente 23 sobreviveram aos controles de qualidade.

Em segundo lugar, quero destacar a conclusão do estudo:
Treating COVID-19 patients with CQ/HCQ did not decrease mortality. Even it was increased if AZM was added. Besides, CQ/HCQ alone or in combination with AZM increased the duration of hospital stay.”.
Ou seja: A cloroquina não apenas foi inútil para combater a COVID, mas aumentou a mortalidade na presença de azitromicina (em comparação ao grupo de controle, sem o medicamento [SC: Standard Care]), como também aumentou o tempo de internação dos submetidos à droga.

Lopinavir/ritonavir: Lopinavir–ritonavir in patients admitted to hospital with COVID-19 (RECOVERY): a randomised, controlled, open-label, platform trial – The Lancet
In patients admitted to hospital with COVID-19, lopinavir–ritonavir was not associated with reductions in 28-day mortality, duration of hospital stay, or risk of progressing to invasive mechanical ventilation or death. These findings do not support the use of lopinavir–ritonavir for treatment of patients admitted to hospital with COVID-19.
Novamente, o uso de Lopinavir/Ritonavir foi inútil no tratamento de pacientes de COVID-19.

Corticoides: Corticosteroids for COVID-19 (who.int)
Aqui, a recomendação se divide em 2:
1) Para pacientes sem quadro agudo (o que equivale aos pacientes pensando em “tratamento precoce” ou, ainda pior, profilático):
We suggest not to use corticosteroids in the treatment of patients with non-severe COVID-19
Ou seja: Não se recomenda o uso de corticoides para os casos leves e moderados da COVID. Fica um alerta: Corticoides reduzem, modo geral, a resposta imunológica do indivíduo. Tomá-los por contra própria pode te fazer morrer de outras doenças (que continuam existindo, é bom lembrar) que não a COVID.

2) Para casos graves de COVID:
We recommend systemic corticosteroids rather than no systemic corticosteroids for the treatment of patients with severe and critical COVID-19”.
Perceba que a recomendação da OMS para o uso de corticoides se dá em casos graves, em ambiente hospitalar e controlado. Isso porque, como já dito, essa medicação reduz a eficiência do sistema imunológico – pode parecer contrassenso, mas evidências obtidas em quadros graves de COVID demonstram que a resposta imune do corpo pode levar ao agravamento da insuficiência respiratória pela resposta inflamatória típica atípica (editado: a resposta inflamatória acaba sendo mais agressiva do que deveria ser). Suprimir o sistema imunológico, controladamente, pode ser benéfico, portanto – e tal medicação não pode ser usada por conta, fora do ambiente hospitalar; ou ainda pior, como profilaxia.

Tocilizumabe:
Comunicado de Imprensa: Resultados do Estudo COVACTA (roche.com.br)
Detalhe: Esse relatório é da FABRICANTE do remédio…
A Roche anunciou hoje que o estudo de Fase III COVACTA, de Actemra® (tocilizumabe), não atingiu seu desfecho primário de melhora do estado clínico em pacientes adultos hospitalizados com pneumonia grave associada à COVID-19. Além disso, os principais desfechos secundários, que incluíam a diferença na mortalidade dos pacientes na quarta semana, não foram atingidos;(…)

Como visto, já foi demonstrado em diversos estudos sérios, nacionais e internacionais, algumas vezes com resultados animadores in vitro (o que é bem diferente de obter os resultados in vivo [dentro do paciente]), mas que falharam nos testes “pra valer”. E muitos defensores escolhem um paper da fase inicial de testes (ou, pior ainda, um paper sem qualquer rigor científico), e se abraçam a ele porque, nesse ponto, já não são mais cientistas mas, sim, crentes fervorosos na promessa de cura que se sustentou em algum momento (quando não, promessa que nunca esteve lá).

E o pior: Essas drogas têm efeitos colaterais perigosos para os seres humanos: Retinopatia [basicamente, cegueira] (cloroquina), necrose hepática [basicamente, “morte” do fígado] (azitromicina), dispneia severa [basicamente, falta de ar extrema] (ivermectina)… A lista é enorme e as reações não são assim tão raras… MESMO quando são raras, se elas ocorrem em 0,5% dos pacientes que tomam (digamos), faça a conta: Se 10 milhões de pessoas tomarem uma droga com efeitos perigosos (mas, raros) que afetam 0,5% dos medicados, significa que 50 mil pessoas vão ter um enorme risco de desenvolver doenças causadas por efeito colateral da medicação; algumas até letais. Se 60 milhões tomarem, são 300 mil pessoas que podem vir até mesmo a óbito, e aí, o medicamento já matou mais do que a doença (ao menos, em números oficiais). E o Brasil tem 211 milhões de brasileiros, sendo que ~69% destes estão em idade produtiva (entre 15 e 64 anos). Então, aqui está o perigo de dizer “se não cura, mal não faz”. ERRADO… FAZ MAL, SIM!
Se já é totalmente carente de embasamento o uso de tais drogas como tratamento precoce, imagine então como tratamento profilático (profilaxia, de forma simples: tomar a droga para conter um risco que não sabemos se vamos enfrentar) …

Faço ressalva especial para a ivermectina, reduto ferrenho dos que acreditam que há tratamento precoce disponível, mas já desistiram de defender as demais drogas. Ela é a “nova cloroquina” do momento. No Peru e na Bolívia, as autoridades equivalentes a Anvisa aprovaram o uso da droga para tratamento da COVID (referência).
Acontece que o fabricante/inventor da droga, a empresa alemã Merck (no Brasil, MSD), já fez comunicado dizendo que não há qualquer evidência cientifica da eficácia da droga no combate à COVID (referência).

Agora, raciocine comigo: Por que o fabricante da droga, pronta e testada desde 1970, e que pode salvar o mundo (e tornar o fabricante dezenas de vezes mais rico) emite comunicado dizendo que a droga deles não funciona para isso? Bem, várias são as hipóteses: porque a quebra de patentes faz não compensar para a empresa; porque a droga não é tão rentável quanto a vacina (a Merck não está desenvolvendo vacinas, só para constar); porque é um plano do reptilianos do centro da Terra para erradicar a raça da superfície…
Fico com a hipótese que me parece mais simples (seguindo a “Navalha de Occam”): porque ela não funciona para COVID-19.

Vou comentar só mais uma coisa: “Vacina” e “Tratamento” são coisas distintas.
Vacina é a forma de ensinar seu sistema imunológico a produzir anticorpos eficientes para o agente biológico, enquanto você ainda não tem a doença. Mesmo para quem já teve e sobreviveu, a vacina é “obrigatória” (pelo bom senso, não por força de lei), pois, a resposta imunológica produzida pela vacina tende a ser padronizada para toda população vacinada, o que não ocorre com a imunidade pós-infecção. Aliás, a maioria das pessoas sequer sabe se teve COVID ou não (no máximo, suspeita, mas não testa conclusivamente). Logo, a vacinação é sempre a escolha certa, já que é possível contrair COVID de novo (referência).
Assim, se alguém falar para você que pegar a doença é melhor que se vacinar, você já sabe quais termos chulos empregar, certo?
Tratamento diz respeito às drogas e técnicas que atacam a doença em andamento. Vacinar alguém intubado não terá o efeito de cura que se espera de uma droga eficiente contra o patógeno. Ocorre que – ainda – não temos essa droga (e, no Brasil, nem as vacinas).

Há boas pesquisas em andamento. Por exemplo, o soro antiviral do Butantan pode ser viável como tratamento para acometidos pela COVID-19 (referência), mas ainda está em desenvolvimento e depende de autorização da Anvisa para começar os testes clínicos em humanos.

A Ciência Médica não pode ser como a religião. Ela precisa mudar conforme as evidências científicas de qualidade surgem (e já mostrei que cientista não é “tudo igual”, nem os trabalhos produzidos por essas pessoas).

E como sabemos se tem qualidade? Quando o maior número de cientistas daquela área chega à mesma conclusão.

Um cientista/médico = Uma árvore.

Milhares de cientistas/médicos = Uma floresta.

Ciência se faz com “floresta” e não com “árvores”.

Confie na floresta.

Sobre o verdadeiro vírus

Tem quem ache que o pior vírus, no momento, é o Coronavírus… Mas, isso, só até conhecer o nosso presidente (em minúscula, mesmo)…

(créditos da imagem: Aroeira, 2020 – Publicada em https://jorgalistaslivres.org)

O Brasil enfrenta, em paralelo ao resto do mundo, uma segunda epidemia. A primeira é causada pelo SARS-CoV-2, e todo o planeta luta contra ele, buscando por respostas – mais ou menos – em conjunto. A outra é uma epidemia de estupidez e “descivilização” (como cunhou o Professor suíço, Manuel Eisner, ao analisar a violência no Brasil); porém, esse combate é bem mais complicado do que criar uma vacina para a COVID-19.

De repente, todos sabem muito sobre tudo…

Bem, faz um tempão que não escrevo por aqui. Precisamente, 150 dias…

O motivo, como sempre, é a vida: Muita coisa para fazer, pouco tempo para realizar. Mudança na carreira, faculdade pegando fogo, matérias encavaladas para acompanhar… E aí… Pah!!! COVID-19

E teve tanta coisa que eu queria falar… Mas, sinceramente, acabei por concluir que era momento de falar menos e ouvir mais. Dar espaço para as autoridades, diminuir o ruído de fontes disponíveis… Sou grão de areia, eu sei, mas fiz minha parte e me calei.

Nas primeiras semanas de COVID-19, tínhamos especialistas em Virologia das mais variadas matizes e formatos. Muitos, até hoje, não sabem a diferença entre um vírus e uma bactéria (dica: praticamente tudo; é bem mais fácil dizer no que se parecem), mas, estavam lá, falando com grande propriedade da função da máscara de pano como filtro antiviral, fórmulas caseiras para matar o vírus, incluindo vinagre (?!?!?!)…
Bem, ainda tem quem ache que vinagre “limpa” a salada… Outros falaram que o calor tropical nos protegeria. Se fizer 56 graus lá fora (temperatura em que o vírus “morre” – fonte), sua preocupação passará a ser outra, garanto…

Restou me calar para não ser mais um louco no show de horrores que foi viver os primeiros dias da pandemia de Coronavírus, misturada com a epidemia de estupidez e desinformação que sempre vivemos por aqui. E, sinceramente, esse é o ponto mais importante em buscar educação: Ter autoconhecimento suficiente para saber sobre os limites do seu conhecimento, e poupar os outros e a si de falar grandes atrocidades.

Como disse Bertrand Russell:

O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas…

E, por Deus, como há idiotas nesse país. É como uma convenção que nunca acabou, porque o idiota-mor que organizou, esqueceu de pôr uma data de término.

Bem, para te adicionar algo novo, como eu sempre tento fazer quando escrevo, vou buscar apresentar um pedacinho do que é a Virologia para, depois, propor algumas ilações com o tema principal. Você não vai sair pronto para sustentar um debate na área, mas vai ter alguma referência e, se quiser, até um material extra para ler e, a partir daí, falar com um pouco mais de fundamento sobre o mundo dos vírus.

Vamos perguntar a quem sabe:

O material no qual me baseio é o excelente guia da Fiocruz, de ~90 páginas, disponível aqui. Sua leitura é muito mais profunda e detalhista do que eu farei por aqui, mas convido a todos que se interessam a le-lô na integra. O material tem linguagem de fácil acesso, requerendo conhecimentos básicos em biologia e química do Ensino Médio. Nesse tema, se alguém sabe do que fala, esse “alguém” é a Fundação Oswaldo Cruz.

Em Virologia, área de especialização da Microbiologia, o estudo dos vírus se dá por escopos como:

  • Taxonomia & Estrutura viral
    • É o escopo que classifica (~“dá nomes”) aos entes virais, e estuda sua estrutura químico-físico-biológica. Por exemplo, a classificação se dá pela presença de moléculas de RNA ou DNA (somente uma família de vírus [mimividae] possui ambas), pela polaridade da fita RNA, pela fita dupla ou simples de DNA, pela presença ou ausência de envelope proteico protegendo o capsídeo (que protege o ácido nucleico), e por aí vai.
  • Replicação viral
    • Escopo que estuda as funções enzimáticas empregadas pelo vírus para se replicar (o que, grosseiramente, seria equivalente à sua reprodução). Vírus não “fazem sexo”, nem podem se multiplicar por meiose ou mitose porque, não, eles não são uma célula, como todas as bactérias são [e todas são unicelulares]). Vírus sequer têm metabolismo próprio (grosso modo: “Capacidade de produzir energia vital”) precisando sequestrar a estrutura celular (complexo de Golgi, mitocôndrias, ribossomos…) do hospedeiro para este fim. Por este motivo, até hoje não há consenso científico se vírus são seres vivos. A palavra “vírus” aliás, vem do latim para “veneno” ou “toxina”.
  • Patogênese viral
    • Estuda a capacidade de um dado vírus de causar alterações clínicas no hospedeiro, como febre, tosse, vermelhidão em tecido da derme etc.. Algumas infecções virais são assintomáticas, pois, o agressor não consegue afetar significativamente a estrutura infectada, de um ponto de vista físico, químico e/ou fisiológico (aliás, é o que acontece com a maioria das crianças que se contaminam com SARS-CoV-2: Elas não apresentam sintomas e são, por este motivo, um perigo aos grupos de risco [idosos, diabéticos, obesos, pessoas com quadro cardiorrespiratório crônico…]).
  • Imunologia viral
    • A imunologia cuidará de entender como o sistema imunológico do hospedeiro reage ao invasor, como diagnosticar a presença do agressor em exames laboratoriais, quais medicamentos ajudam o sistema imunológico (em geral, pela imobilização enzimática do agente patológico, ou pelo fortalecimento de alguma estrutura que o agressor se aproveita para contaminar a célula hospedeira), e quais medicamentos não têm qualquer relevância (no caso da COVID-19 de cara, antibióticos; porque antibióticos visam atuar no metabolismo [alguma parte dele] das células do agressor e, como já citei, vírus não têm células!), ou se são mais perigosos que a doença em si (como, por exemplo, os baseados em Cloroquina, pois, esta aumenta consideravelmente o risco de complicações cardíacas; uma área-alvo na patogênese típica da COVID-19), e daí por diante.
  • Epidemiologia
    • A Epidemiologia é importante alicerce para a Vigilância Epidemiológica, parte das obrigações de qualquer Ministério da Saúde, visando garantir a segurança sanitária da sociedade. Esse escopo ajuda no entendimento do potencial de contaminação de um dado agente viral (necessidade de “vetores” [animais, em geral, artrópodes], período de incubação, mortalidade, patogenicidade etc.); igualmente, ajuda no planejamento de calendários de vacinação, identificação de medidas públicas para atacar o contágio, identificação de comportamentos de risco, profilaxia recomendada, e assim vai.

Vírus possuem uma capacidade de recombinação e mutação sem igual, podendo mudar apenas um cromossomo em seu ácido nucleico, “dando à luz” a um agente que pode ter características bem distintas e até “adotar” partes do DNA hospedeiro ou de outros vírus que estão atuando concomitantemente; e isso pode resultar em um nova cepa (linhagem) de vírus que pode ser mais ou menos eficiente em contaminar, resistir ao tratamento, além de poder aumentar a patogênese do agente (fonte – em “Evolução dos vírus”). Foi o que ocorreu no caso da gripe suína, onde o vírus influenza A se encontrou com o vírus da gripe aviária em células suínas, recombinando seu código com o outro patógeno, se tornando ainda mais agressivo para nossa espécie. Nota: Isso tudo não é “pensado”… É simples efeito da seleção natural, como bem explicado por Darwin.

Com o SARS-CoV-2, em algum momento (entre dezembro e fevereiro) e lugar na Europa, uma mutação ocorreu e mudou uma simples base nucleica: Uma Guanina (G) por uma Adenina (A), na posição 23.403 (o SARS-CoV-2 possui 30 mil pares de cromossomos), tornando a “Spike” (sua proteína de acoplamento às células humanas, pelo receptor ACE2) muito mais eficiente. Em outras palavras, com a mutação, o Coronavírus se tornou mais contagioso e e pode ter dificultado a produção de uma vacina única (fonte).

Por fim, me parece que não custa dizer o óbvio: Vírus e bactérias não têm “intenção”. Eles não pensam, não tem estrutura nervosa (o vírus tem muito menos estrutura do que a bactéria), e não são “maus” ou “bons”. São como um fato: Eles apenas existem.

O que o vírus causa pode ser bom ou ruim e, aliás, inúmeros são os indícios da importância dos vírus para a espécie humana, inclusive em sua evolução, sendo que podemos ter evoluído para o ponto em que estamos, em parte, graças a eles.
Igualmente, é aceito pela comunidade científica que nossas mitocôndrias (a “usina de força” das nossas células) devem ter sido bactérias que viviam de maneira simbiótica dentro de nós e que, em algum momento, migraram para o citoplasma, se fixando permanentemente à citologia humana (fonte).
Em resumo, é o humano que tenta emprestar conceitos morais e éticos ao mundo biológico. Os vírus e bactérias não são bons ou maus. Eles existem e interagem. O resultado pode ser bom (e.g.: Nossas mitocôndrias, ou os vírus que infectam e matam bactérias no trato intestinal, garantindo o equilíbrio da flora), mau (e.g.: Ebola, Coronavírus), ou neutro (quando não causam nenhuma patogenia). (fonte)

As terapias gênicas são, em grande parte, estruturadas em cima da ideia de reescrever as partes do vírus que fazem mal, e utilizá-lo para “infectar” seu corpo com aquilo que ele precisa. Seriam, no limiar da técnica, capazes de curar Hemofilia ou Diabetes Mellitus, por exemplo, ao reescrever nas células do fígado e pâncreas (respectivamente), os genes que “dão problema” (de maneira bem grosseira, tudo bem?). (fonte)

Bem… Agora que temos o mínimo de contexto para seguir, vamos em frente.

Sobre a necessidade de sermos intolerantes

Karl Popper, filósofo nascido alemão, em 1902, e inglês por escolha, sintetizou o conceito mais aceito do que é Ciência, até hoje. Mais especificamente, ele sintetizou o que faz de uma teoria, ciência, assim dizendo:

Uma teoria científica é um modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos. Assim, uma boa teoria deverá descrever uma vasta série de fenômenos com base em alguns postulados simples como também deverá ser capaz de fazer previsões claras, as quais poderão ser testadas.

Assim, podemos entender o que faz de uma teoria, ciência, e o que não é ciência. Se não consegue descrever os fenômenos através de um modelo matemático (Força = Massa*Aceleração) ou postulado claro (“crime” é Ato Típico, Antijurídico, cometido por Agente Culpável); se a teoria não consegue prever claramente boa parte dos resultados destes mesmos fenômenos, no futuro; tal teoria pode ser teoria da conspiração, teoria de boteco, teoria de Whatsapp… Mas, não é teoria científica. Teoria também não é sinônimo de “opinião”!!! Pelo amor de todos os santos… Mas, isto fica para outro dia…

Também, é de Popper o Paradoxo da Tolerância (fonte):

A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas. Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, ao direito de não tolerar o intolerante.

As palavras atingem minha compreensão do mundo como bombas. É duro pensar que estou vivendo os dias da minha vida às portas de ver realizado o Mal do paradoxo de Popper (o fim da tolerância). Para que preservemos a Tolerância como valor e a Democracia como regime de Estado, precisaremos nos tornar intolerantes com os intolerantes.

Para quem me conhece “ao vivo”, suponho ser fácil perceber que sou totalmente contrário à ideia de censura e repressão da opinião alheia. Eu acredito – no caso geral – na ideia sintetizada da filosofia de Voltaire:

Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.

A frase, erroneamente atribuída ao filósofo é, na verdade, de autoria de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall (1868 – 1939), sendo, contudo, um brilhante resumo da linha liberal (nada a ver com liberalismo econômico) de pensamento de Voltaire, contra o Estado Absolutista com o qual conviveu. (fonte)

Isso dito, não há qualquer conflito nessa ideia com o paradoxo postulado por Popper. Aliás, Popper é bem claro ao dizer:

não insinuo (…) que devamos sempre suprimir (…) filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública (…)

Logo, há um pressuposto: Se os argumentos baseados em racionalidade permitem fazer com que os integrantes da sociedade questionem filosofias intolerantes, mantê-las na discussão pública é vacina mais do que desejada contra o alastramento dessas mesmas ideias.

Contudo, Popper também prescreve a exceção:

Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; (…) (pois) eles (os que propagam as ideias intolerantes) podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas

Assim, é chegada a hora de todos nós (que acreditamos numa sociedade que tolera a diferença, que respeita a dissidência do pensamento, que se baliza pela Lei para compatibilizar a convivência e que busca incessantemente os princípios (positivamente) utópicos de igualdade e fraternidade na sociedade) nos tornamos intolerantes com os intolerantes. Sob o risco de permitimos que a tolerância seja exterminada.

Hoje, estou no dia de desmontar atribuições errôneas… Diferentemente do que muitos dizem, este – a seguir – não é um ditado alemão, mas uma frase, até onde obtive informação, de autoria do Chris Rock (o comediante estado-unidense) – (fonte):

Se 10 caras acham que é ok passar um tempo com um nazista, eles se tornam 11 nazistas.

Depois da frase de 2017, alguém, na Alemanha, deu uma roupagem mais formal e usou o exemplo dos 10 à mesa com 1 nazista… Enfim… Este não é, de verdade, meu ponto.

Meu ponto é que toda vez que nós rimos com simpatia para alguém falando atrocidades e defendendo tortura e massacre daqueles que pensam diferente, que são diferentes, ou que simplesmente não dizem “amém” para aquilo que o boçal vocifera, nós não apenas garantimos a perpetuação da barbárie, como nos tornamos mais bárbaros, também.

Por isso, é hora de ser intolerante com gente intolerante: Ou eles discutem seu ponto de vista dentro de um grau civilizatório mínimo, respeitando noções gerais de debate civilizado, e se abstendo de expedientes falaciosos (como atacar o autor do argumento, e não o argumento em si) ou calam a boca e morrem gritando somente para os loucos e bárbaros como eles mesmos, até o ponto de ficarem isolados da sociedade civilizada, como merecem aqueles que querem destroçar o próximo e tornar o mundo um lugar de supremacistas e egocêntricos.

Como bem disse o filosofo Heidegger, mais tarde, inspirando fala similar do Doutor Martin Luther King:

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

A História, no entanto, não perde o dom da ironia: Heidegger, alemão, foi filiado ao partido Nazista desde 1933, embora tenha se tornado um crítico do regime já durante a 2ª Grande Guerra.

Como podemos ver, a necessidade da intolerância com os intolerantes parte do risco de que a discussão não mais seja racional, e que os intolerantes se imponham por força bruta, e massacre dos seus opositores, à revelia da validade de suas ideias.

E clamo que todos nós, seres civilizados, deixemos de emitir “notas de repúdio veemente”… Não tem nada mais inócuo e patético, do que uma sociedade e órgãos de um Estado Democrático de Direito que, depois de levar seguidas cusparadas na cara, emitem “notas de repúdio”… Tais notas são motivo de riso entre os animais irracionais do outro lado dessa guerra. Precisamos, como Popper disse, ser intolerantes, se preciso, com o uso da força Estatal (porque nós, sim e, de fato, estamos ao lado do Estado Democrático de Direito), processando, legalmente, e encarcerando os elementos que atentam contra a vida civilizada e balizada pela Lei. Mas, eu não sou bobo, e também sei que o “braço forte” do Estado está sendo corrompido, dia após dia… Bom… Outro tema, outro post.

O verdadeiro (e mais perigoso) vírus

O verdadeiro e mais perigoso vírus, atuando no Brasil, é o vírus bolsonarista. Como agora sabemos o básico de Virologia, faremos a análise desse vírus dentro das lentes científicas da Microbiologia – num óbvio, mas, eficaz, penso eu – exercício de analogia e sarcasmo, é claro.

Taxonomia & Estrutural Viral

O vírus bolsonarista ou vírus do bolsonarismo vem da família bolsonariae, e sua origem remonta à boçalidade, à estupidez e ignorância do espécime medíocre; daí, tamanha similaridade na fonética dos termos, sendo a nova grafia mero acidente de transcrição histórico (aviso: isto não é um fato; mas teria tudo para ser).
É um vírus oportunista (como advertido anteriormente), que se aproveita da vulnerabilidade do hospedeiro – a sociedade brasileira – e essa vulnerabilidade vem da nossa completa descrença e desrespeito pelo sistema político criado pelas elites nacionais e, por uma questão de recorte histórico, sedimentado nos últimos ~100 anos de história nacional. Mais especificamente, com início da Era Vargas em 1930, passando pela promulgação da segunda Constituição, de 1934 (que fundou várias bases do que chamamos de “democracia” atualmente, como o voto secreto e obrigatório aos 18 anos, o voto feminino, nacionalização das riquezas naturais, bancos e surgimento de outras estatais, e por aí vai…) e, mais tarde, já na Ditadura do Estado Novo (1937 a 1946), autoritário e anticomunista, também moldado por Vargas, que tinha afeição declarada ao Fascismo do ditador italiano, Benito Mussolini.
Vargas é chamado de “pai dos pobres” por seu “departamento de imprensa” (DIP) – na realidade, um gabinete de Propaganda – e o nome até que “pega”, por ser considerado o Patrono dos Trabalhadores Brasileiros (por exemplo: Foi ao fim de sua ditadura que surgiu a nossa CLT). Não é de se espantar, destarte, que admirado por tantos, e com medidas tão populares (mas, também, populistas), seu autoritarismo e repúdio à democracia, enquanto forma de dirimir os conflitos na gestão da coisa pública, não seja lá de grande proeminência em sua biografia de domínio popular. Modo geral, lembramos tão somente do lado frondoso do homem “que cuidou de quem luta dia e noite pelo pão”, e tendemos a minimizar que, antes de 64, a Ditadura já ocorrera por suas mãos…

Este sistema político hodierno, posto à nossa face, emula uma democracia, mas, não chega a ser uma, de fato, porque diante dos anseios e problemas da população comum e sem status ou fama, tal sistema político se nega a realizar qualquer mudança sincera e profunda nas “regras básicas do jogo”. Quando muito, orquestra um espalhafatoso espetáculo de luzes e som, com a intenção de mesmerizar a todos e causar grande estardalhaço; mas, como num truque de mágica, onde o segredo é distrair a plateia para que ela não note o que você faz com as mãos, nossos mágicos políticos terminam sempre por retornar todos os atores e mecanismos para os lugares onde sempre estiveram. Sim Salabim!

O grande segredo é não haver mistério algum…

…diria conhecido compositor

Diante da desesperança e da descrença completa, vários organismos da sociedade – ou seja, seus cidadãos; nós… – ficaram vulneráveis aos mecanismos de sequestro – especialmente, o sequestro intelectual – impostos pelo vírus bolsonarista.

Replicação Viral

A replicação viral do bolsonarismo é centralmente baseada em mecanismos de desinformação (as famosas fake news). O mecanismo é conhecido de longa data pelos Cientistas (políticos), e como propagou Ésquilo – e não um senador estado-unidense (estou num dia de checagem de autorias…) (fonte) – dramaturgo grego:

Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.

A desinformação favorece a família bolsonariae, pois, em uma Era de “pós-verdade” (termo cunhado, em 1992, pelo dramaturgo Steve Tesich), a informação – enquanto compreensão ordenada de fatos – não tem mais credibilidade por si só. Nessa nova Era, é possível “informar” sem aduzir qualquer fato. Mas, para qualquer um com imunidade ao sistema de ataque da família bolsonariae (família de vírus, claro), é óbvio que os fatos importam e que “verdadenão é algo quedepende da visão de quem julga”.
Existe certo e errado, existe fato e ficção, e “fato” não se confunde com “opinião”. E é claro que veículos de informação tradicionais não são isentos de distorção, mas, para isso temos mais de uma fonte de informação, e elas atuam verificando umas às outras, num eterno exercício de vigilância recíproca.

Como bem disse o sagaz Millôr Fernandes:

Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados

Ou seja: O melhor indício de que um(a) jornalista está cumprindo com seu papel Constitucional de vigiar “os poderes” (na verdade, as funções do Poder [que é sempre Uno]) da República, é quando o(a) jornalista é odiado(a) por todos os lados e ideologias. Se um lado sempre bate palma para uma fonte de notícias, sendo este lado situação ou oposição, melhor desconsiderar a opinião dessa fonte, daqui por diante.

Depois da desinformação, e da relativização da verdade, outro mecanismo de replicação utilizado pelo vírus bolsonarista é ligado à ignorância e truculência dos organismos que ele contamina. Quanto mais radical e mais alienado da realidade nacional de desafios, desigualdades, racismos, preconceitos históricos e jamais solucionados pelo Estado-de-faz-de-conta que é a República das Bananas – bioma do hospedeiro-alvo do bolsonarismo: A sociedade brasileira – e quanto mais ignorante do fato de viver em uma sociedade fundada, não na igualdade – com supostamente ordena a Lei Maior – mas, sim, nos privilégios de certos grupos sobre outros, mais eficiente é a acoplagem do vírus bolsonarista às células do organismo agredido, facilitando a replicação do vírus.

Tão logo acoplado, o patógeno sequestra a capacidade de raciocínio, e altera a ordem entre fatos e versões, incapacitando o organismo (o cidadão) de ver com clareza a ordem dos eventos, as relações de causalidade e efeito, e afetando a habilidade de pôr os acontecimentos em uma perspectiva clara e óbvia para qualquer organismo ainda não infectado. Deste ponto em diante, o organismo, tomado pelo agressor viral, passa a ser contaminante para todos ao seu redor, difundindo as mesmas mentiras e ilusões delirantes, fundadas em absurdos completamente esvaziados de lógica e de bom senso; todos esses elementos, fundamentais para a continuidade da infecção e replicação viral bolsonarista.

Portanto, o nosso conhecimento da replicação viral da família bolsonariae, aponta para o fato de que o agressor biológico se beneficia da ignorância de longa data, sempre incentivada pelas condições do bioma (crônico investimento irracional e errático na estrutura da educação pública, alienação proposital e incentivada [“nessa casa não se discute futebol, religião, nem política!”], Coronelismo [o eleitor tal qual gado em um curral, esperando as ordens de seu senhor], Sebastianismo [a crença de que precisamos de uma figura mítica e salvadora para nos livrar de todo o mal], Clientelismo [o eleitor como um cliente do político, a ser atendido e satisfeito, nunca tratado como parte capaz e responsabilizável na construção das políticas e espaços públicos]; todas estas, características históricas em nossa relação com a política nacional).

Patogênese viral

Os sintomas clínicos do organismo contaminado são evidentes, se manifestando com intensidade moderada, a priori, mas ficando extremamente fortes quando na presença de outros organismos infectados. Isto sugere que a carga viral do bolsonarismo cresce em progressão geométrica na presença de 2 ou mais infectados no mesmo espaço, físico ou virtual. Estudos mais detalhados precisarão ser realizados para que se determine se o vírus bolsonarista é “airborne”, ou seja, transmissível pelo ar. Até que estudos conclusivos sejam realizados, sugere-se o afastamento de pelo menos 10 metros, (ou 2 conexões de distância em redes sociais) de qualquer infectado.

Os sintomas típicos são:

  • Clamor por intervenção militar, com alguma variação sugerindo que isso seria “Constitucional” (possivelmente, devido aos delírios induzidos pela forte febre que acompanha o quadro);
  • O uso da camisa da seleção brasileira de Futebol, com o brasão da CBF; entidade que os infectados imaginam ser um símbolo de honestidade e que representa os valores da causa;
  • A embaraçosa relativização dos danos graves e atos criminosos cometidos pelo Pai da família bolsonariae (família de vírus, claro) e todas as demais cepas do bolsonarismo; família esta que está espalhada em outros cargos da política nacional, já em grau de pandemia, contaminando outras partes da fauna que coexiste com nosso hospedeiro (a sociedade), como Polícias e Forças Armadas – mecanismo importantíssimo utilizado pelo vírus na supressão da imunidade inata do hospedeiro, sendo vetor de transmissão perigosíssimo, e que merecerá estudo em separado;
  • O rapto da bandeira nacional Brasileira, como se fosse um símbolo só disponível aos infectados, sendo que a mesma é estranhamente apresentada ao lado de outras bandeiras, com mesmo destaque (quando não, menor do que as demais, ou até mesmo ausente), de nações como Estados Unidos da América e/ou Israel (fica evidente o sintoma de confusão mental causado pelo bolsonarismo: O organismo contaminado se julga mais patriota que os demais, mas se manifesta ostentando bandeiras estrangeiras, num raríssimo caso de esquizofrenia patriótica viral);
  • O uso de falácias como “E o Lula? E o PT?”, “Os cientistas/ONU/NASA/IBGE são de esquerda!”, ou “Morra, comunista!”, quando enfrentados com dados e fatos que não podem ser vencidos pela via da inteligência e racionalidade, mas, tão somente pela força;
  • Agudo desarranjo intestinal reverso, invertendo violentamente os movimentos peristálticos, e fazendo com que o organismo infectado regurgite as próprias fezes enquanto fala; um dos sintomas mais assustadores e chocantes que já se presenciou na história moderna da Virologia.

Enquanto temos conhecimentos de outros sintomas, estes podem ser confundidos com os sintomas causados por outro patógeno (bem mais moderado e infinitamente menos danoso, devemos acrescentar), já que o bolsonarismo não é o único vírus de matriz populista a se aproveitar dos mecanismos de infecção e características de vulnerabilidade da nossa sociedade.

Os sintomas apresentados, acima, de todo modo, são extremamente comuns no organismo infectado com o vírus da família bolsonariae, servindo de baliza para o diagnóstico diferencial clínico e descarte de outras doenças possíveis (anencefalia em idade avançada, possessão demoníaca patriótica, entre outras).

Imunologia Viral

Os organismos que resistem ao bolsonarismo e todas as suas variantes, – sejam elas a estupidez, a ignorância, a ideia alucinógena de superioridade baseada em fato algum, a produção e propagação de desinformação(…) – apresentam algumas características relativamente comuns ao grupo de organismo com imunidade congênita presente:

  • Educação e respeito pelo próximo, ainda que diante de discordância de grande porte;
  • Capacidade, acima da média, de separar “fato” e “opinião”;
  • Consciência inequívoca de que ditaduras sempre dão certo porque mentem o tempo todo, e nunca permitem que seus opositores sobrevivam;
  • Educação moral e formal para entender a realidade por um prisma não-fantasioso e não-mágico (e.g.: não, armar o brasileiro em seu atual grau de civilidade e respeito ao próximo, não é uma prioridade de um governo de gente normal);
  • Profunda descrença em “salvadores da pátria” e “figuras míticas”, por terem consciência de que pessoas não salvam um país, mas instituições fortes e que não podem ser facilmente raptadas por golpistas e estelionatários são a verdadeira chave do sucesso das grandes nações;
  • Consciência plena de que o bem mais importante que alguém possui é a própria vida e que, subtraído tal bem, este é insubstituível e, daí em diante, nada mais importa; nem sociedade, nem lei, nem economia, nem igualdade, nem merda nenhuma.

Epidemiologia

Depois de um relatório tão perturbador, nossa pesquisa nos leva à boas e más notícias.
A boa notícia é que o R-zero do bolsonarismo apresenta forte descenso. O número de novos contaminados vem em franca queda, e o vírus começa a demonstrar característica de nicho, atacando somente regiões e populações naturalmente propensas à ignorância e truculência, sendo que já vemos um certo platô de contaminados em cerca de 30% da população. Considerando os números anteriores, essa parece uma reação animadora e que nos dá alguma esperança de convalescença do hospedeiro – a sociedade brasileira. O prognóstico, se mantidas as atuais variáveis, é muito positivo, com recuperação mais tardia a ocorrer em janeiro de 2023. Convém, porém, observar os sintomas até outubro de 2022.

Pois,

O preço da liberdade é a eterna vigilância…

…como disse Thomas Jefferson.
Outra boa notícia é que os organismos sobreviventes e curados passaram a recobrar a capacidade cognitiva depois da fase rara de “coma de olhos abertos” que enfrentaram. São comuns os relatos de volta da percepção da realidade, o fim dos delírios, e surpreendentemente, muitos admitem que passaram a reconhecer que militares não são melhores, nem piores do que o resto da sociedade. Afirmaram, ainda, que militares são pessoas comuns, que usam farda, tem um preparo específico, mas, não tem nenhuma qualidade adicional por causa disso. Prognóstico animador, dado o retorno da habilidade de constatar o óbvio!
As más notícias ficam com a piora aguda do quadro de saúde da democracia. Este sistema é dependente direto do hospedeiro – a sociedade – e se o hospedeiro adoece, a democracia também. É confusão comum nos recém-iniciados em biologia política (só para constar, isso não existe…) pensar que a democracia faz a sociedade, mas é o exato oposto. Da mesma forma que um pedaço de papel não obriga ninguém a ficar em casa, um país não pode ser democrático se seu povo não quiser que seja, e é tolice pensar diferente.

A profilaxia recomendada diante desta epidemia é lavar sempre as mãos e não acreditar em nada que você receba por Whatsapp, Instagram, Facebook, Twitter… Procure se manter próximo a mais de um (idealmente, pelo menos 3 [três]) veículo de informação tradicional, como forma de validar a informação recebida em mais de uma fonte. Nunca confie em canais de comunicação oficiais do governo, porque eles não fazem notícia, fazem Propaganda; e a diferença entre os dois tipos de comunicação é brutal.

Também, é política de prevenção recomendada, ser intolerante com os infectados exibindo sintomas de intolerância. Não é preciso descer ao nível de baixeza e desumanidade deles, mas basta não continuar a conviver com esse tipo de infectado, dado que as chances de cura deles são baixíssimas, enquanto as chances de que você acabe contaminado são enormes.

O esquema de vacinação para se prevenir contra o vírus é até simples: Doses cavalares de realidade obtida por fontes confiáveis e jamais por redes sociais; procurar os fatos antes das opiniões; não se permitir guiar por pessoas que despejam ódio e retratam compatriotas como seres inferiores, seja porque são mulheres, gays, negros, ou “comunistas”; exercício da capacidade de análise crítica, sem jamais aceitar soluções simples ou milagrosas para problemas complexos e de longa data; a solução virá pela decantação das instituições, e não pela força estúpida de projetos mentecaptos de ditaduras e supressão de direitos.

Eu, pessoalmente, fui além da sugestão e adotei a intolerância para com os intolerantes, como me pediu Karl Popper, e estou em lockdown contra bolsonaristas trogloditas e ignorantes, mantendo o contato somente com aqueles que ainda apresentam alguma racionalidade – na esperança de ajudá-los a vencer a doença com a qual se deixaram contaminar.

Todo cuidado é pouco, pois, se eu vacilar, posso acabar sentado à mesa com outros dez incautos e que não querem se posicionar com clareza em favor da democracia, e contra o fascismo crescente, por medo de “perder a amizade”; e aí, vem um bolsonarista estúpido, senta-se conosco e, pronto: Agora somos onze bolsonaristas estúpidos, defecando pela boca, num piscar de olhos.

Um dos mais tristes fins que alguém pode ter…

Dois pesos e duas medidas

Você sabe o que faz de “um quilo”, um quilo?

Bem, de largada, cabe dizer que “quilo” (e não “kilo” [do inglês, que respeitou a forma original em grego, de onde vem o “k”, sempre minúsculo]) é apenas fator multiplicativo por mil, como se definiu nos prefixos do SI (Sistema Internacional de Unidades).
O que, de fato, se mede são os gramas (sempre no masculino, já que no feminino passa a ser aquela que os jogadores de futebol pisam). Portanto, 1kg (um quilograma) é igual a mil gramas.

Tem jeito melhor de começar te lembrando do quanto sou chato (torço que você pense isso só quando lê por aqui)? E admito que tento impor um rigor maior do que a média para blogs desconhecidos, sempre pesquisando sobre o que escrevo por estas bandas, e tentando acertar em tudo; o que não se repete na convivência in loco comigo (ao que ouço a voz de todos dizendo “Graças aos Céus!”…).
Claro: Uma pessoa que busca esse tipo de rigor em todos os contatos e ocasiões, não é nada além de muito chata(o), insuportável, e desconectada(o) da necessária leveza para se viver bem em sociedade.

Tudo é questão de foro: Se estou participando de uma discussão em um foro técnico, eu exijo que a precisão técnica esteja presente na conversação. Até porque aprendemos, desde cedo, que algumas palavras, em foros específicos, adquirem conotações bem diferentes e distantes da acepção comum.

Para ficar num exemplo hiperbólico: “Os direitos reais sobre coisas móveis (…), só se adquirem com a tradição”. Se você tentar usar o significado comum na sentença anterior, nunca vai achar a explicação correta (de que contratos de compra e venda de bens móveis só são considerados finalizados, incluindo a transferência de direitos [outra fonte ainda tornaria a sentença pior: “o negócio jurídico só se aperfeiçoa”], quando da entrega efetiva do bem [entrega do bem = tradição]).
Já havia dito que era um exemplo absurdo (embora escrito no nosso ordenamento jurídico). Mas, não é assim tão diferente num foro de Medicina, de Tecnologia da Informação, etc….

Mas, voltemos ao começo:

Você sabe o que faz de um quilo(grama), um quilo(grama)?

Bem, até o mês de maio deste ano, um quilograma era definido por comparação com uma massa feita de uma liga de Platina-Irídio (massa que estampa a capa deste post). Essa massa ficava trancada num cofre na França, e é popularmente conhecida como “Le Grand K” (incoerência, já que o k deve ser minúsculo), sendo a definição de um quilograma, desde 1889. Mas, não mais.
Após 130 anos de serviços prestados, com várias cópias ao redor do mundo comparadas com o grande K (que é formalmente chamado de “IPK”) em ciclos de 40 anos, chegou a hora do senhor K se aposentar. Se nós tivermos a sorte de vivermos 130 anos, também poderemos nos aposentar, um dia (cutucada gratuita. Obrigado, de nada).

No lugar do grande K, adotou-se uma constante quântica chamada de “constante de Planck”. Essa mudança foi decidida num foro científico em 2018 que adotou a convenção que já define o que é um metro, bem como o que é um segundo. O Sistema Internacional de Unidades, com o apelido carinhoso de “mks” (metro, quilograma, segundo) é composto por essas três unidades de medida, dentre outras (Editado: Pesquisando mais, restou provado que o mks antecedeu o SI, e o SI herdou o mks, adicionando outras medidas)… Se as outras duas (metros e segundos) já haviam abandonado a medição com referência em um objeto (o metro, por exemplo, também usava uma barra de Platina-Irídio com 2 marcas para calibrar o que era um metro), era tempo do quilograma mudar também.
Conforme explicou a revista Época, as novas definições por constantes regram que “(…)um metro é a distância percorrida pela luz no vácuo no período de 1/299.792.458 segundo, e um segundo é a duração de 9.192.631.770 períodos de radiação correspondentes à transição entre os dois níveis do átomo de Césio 133”.

De mais a mais, o Grande K já não era tão grande: Constatou-se que, desde sua criação, o senhor K perdeu 40 microgramas em interações com o meio ambiente. Insignificante para a receita de bolo, inaceitável para ciência de ponta.

Com constantes como a de Planck governando o SI, esperamos que esses problemas de calibragem não venham a ocorrer tão cedo.

Dois pesos e duas medidas

Os jovenzinhos que leem o que escrevo aqui não têm nem ideia do que digo a seguir, mas, na minha infância, ir à feira incluía ver balanças como esta:

Balança antiga, com contra-pesos de ferro, usada em feiras livres, há tempos atrás.

Você, automaticamente, pensou “esse cara tem uns 60 anos”. No RG, pouco mais da metade disso; no corpo, tenho uns 80. Na maturidade, uns 12, 13…

Mas, pra que tudo isso? Para podermos discutir o problema por trás do ditado.

Não. O ditado não está errado. O certo é, mesmo, “dois pesos e duas medidas”.

Ao contrário do que você já pode ter lido por aí, não estão corretas as versões “um peso, duas medidas” ou ainda, “dois pesos, uma medida”.

O ditado, registrado em dicionários para estes fins, é, de fato, “dois pesos e duas medidas”.
O que esse ditado quer dizer – e muita gente que defende as outras versões não entendeu – é que as pessoas carregam consigo dois pesos (diferentes entre si), e duas medidas/réguas (também diferentes) para pesar e medir as situações da vida, quando, na verdade, deveriam ter apenas um peso e uma medida para todas as situações.

Difícil definir a origem exata do ditado (que existe em outras línguas, como a inglesa) e, por isso mesmo, fico com a explicação do Professor Sérgio Rodrigues de que o dito se refere a uma passagem bíblica.

Em Deuteronômio, capítulo 25, versículos 13 a 15, lê-se:

  1. Na tua bolsa não terás pesos diversos, um grande e um pequeno.

  2. Na tua casa não terás dois tipos de efa, um grande e um pequeno.

  3. Peso inteiro e justo terás; efa inteiro e justo terás; para que se prolonguem os teus dias na terra que te dará o Senhor teu Deus.

  • Efa” é uma palavra sinônima a “medida”.

Também, de um ponto de vista estritamente científico, está errado se referir à medição da Massa dos objetos (que se mede em quilogramas), como se fosse “Peso”. Na Física, “Peso” é medido em quilograma-força (kgf), e também pode ser medido em newton (N) ou dina (dyn). A fórmula geral determina a multiplicação da massa de um objeto (exemplo = pessoa de massa igual a 70kg), pela aceleração da gravidade (na Terra, 9,8m/s²) e se obtém o peso em kgf, por exemplo.

Rodrigo: Essa tortura tem um objetivo maior do que tornar minha segunda-feira um porre?

Até que tem, caro(a) leitor(a)… Até que tem…

O objetivo é dizer que se você e eu não temos dois pesos e duas medidas, é nossa obrigação discordar, reprovar e até repudiar a recente atitude do Jornalista, João Paulo Saconi, a serviço da revista Época, da editora Globo, que se disfarçou de cliente/paciente para contratar serviços da Psicóloga (que alega ser Coach, categoria do mundo contemporâneo que não quero nem discorrer, por ora), Heloisa Wolf Bolsonaro, esposa de Eduardo Bolsonaro (este último, filho do Presidente da República), com fins de produzir matéria para o periódico.

Por um mês, o repórter se declarou como um novo cliente e participou do curso fornecido pela profissional no modelo de “coaching”. Desta falsa relação entre a profissional e ele, o Jornalista publicou matéria que pode ser lida aqui. Não sugiro dar “ibope”, mas entendo ser importante permitir a leitura para que você possa concluir o que eu já conclui: A matéria é sensacionalista, sem qualquer interesse à Sociedade, etc.

Para começo de conversa, preciso dizer que não tenho dois pesos e duas medidas. Ou, melhor dizendo – relembrando da minha condição inescapavelmente humana – faço de tudo para não ter dois pesos e duas medidas. Se considero que os fins não justificam os meios para Bolsonaro e seus atos de governo, os fins seguem sem justificar os meios para a ambição do Jornalista que queria “pegar a nora do Presidente no flagra”.

Continuo com só um peso e uma medida, especialmente, quando me lembro da Lei. Nada a ver com a bobagem do “sigilo Profissional-Cliente/Paciente”, como tanta gente se apressou em dizer. O dever de sigilo (nos mesmos moldes que existem na Advocacia) é do Profissional, não do cliente/paciente. O que me faz lembrar da Lei é que a Constituição Federal elenca inúmeros direitos da Pessoa, além de liberdades para o exercício das Profissões, etc. É a mesma Constituição que prevê a Liberdade de Imprensa, claro. Nem me ocorreu pensar diferente disto.

Mas, nenhuma Liberdade é absoluta em um Estado Democrático de Direito.

Se houvesse liberdades e direitos absolutos, alguém derrubaria a casa em que moro pelo direito de “ir e vir”. Fica evidente que é bobagem tratar liberdades como “absolutas”. Todas elas respeitam certas regras e limites. Óbvio.

Mais do que isso, vou para a Lei específica. O Código de Ética do Jornalismo (disponível no site da FENAJ), aprovado em 2007, entre outros artigos, declara:

Art. 11 – O jornalista não pode divulgar informações:

(…)

III – obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração;

Chamo a atenção dos senhores para “salvo em casos de incontestável interesse público E quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração”.

O “incontestável interesse público” nas técnicas de Heloisa, enquanto profissional de Coaching, me parece insondável. Nada, em nenhum ponto da matéria, levantou-me a desconfiança de que houve ou poderia haver crime, especialmente, do tipo que lesa o Estado, a sociedade  ou o cidadão.

Num segundo momento, o artigo é claro ao dizer “não se pode fazer uso de identidades falsas(…), exceto quando esgotadas todas as outras possibilidades”. O Jornalista não se apresentou como sendo jornalista, muito menos informou à profissional requisitada de que se tratava de matéria jornalística a ser publicada, o real motivo de estar ali.
Antes disso tudo, ele poderia, por exemplo, ter tentado o contato formal com ela, explicando que sendo a próxima (provável) Embaixatriz (que é diferente de “Embaixadora”) do Brasil nos EUA, e como profissional Psicóloga, tudo o que ela tinha para dizer seria importante, e que ela deveria considerar como publicidade gratuita do seu método, caso topasse a entrevista – tudo isso, só por exemplo.

O código de ética não para por aí. Há outros dispositivos que demandam do Jornalista o respeito à dignidade das pessoas, não que precisasse citar, diante da Constituição, mas, o faz porque a categoria considerou fundamental repetir o que determina a Lei máxima.

Retrocedendo no código, com meus comentários entre parênteses:

Art. 6º – É dever do jornalista:

(…) incisos não relevantes à pauta, omitidos.

II – divulgar os fatos e as informações de interesse público; (repito: onde está o interesse público?)

IV – defender o livre exercício da profissão; (se defende o da categoria, não defende o da entrevistada?)

V – valorizar, honrar e dignificar a profissão; (ao ignorar a conduta antiética, ignora este inciso)

VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; (não tenho dúvidas de que houve desrespeito a todo o inciso)

X – defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito; (não preciso comentar)

XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias; (a profissional em Psicologia, Coach e, só por ocasião da vida, mulher do Congressista, não estaria protegida?)

XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza. (Heloisa pode ter a postura e pensamento avessos ao que acredito ser o melhor para a Política nacional, mas não devo aceitar sua perseguição por ser casada com quem é, ser Cristã, ser hetero, acreditar num governo conservador e até retrógrado nos costumes; como também não aceito a perseguição contra gays, ateus, políticos “de Esquerda”, etc.).

Algumas pessoas tentarão relativizar o que digo aqui porque odeiam Bolsonaro, o seu “clã” (palavra horrível para uma Democracia, mas é o que temos no momento) e quem se associar com eles.

Mas, eu não relativizo. Sou solidário à revolta de Heloisa e seus familiares, e desejo que ela não desista de processar o Jornalista e seu Jornal – porque numa revista ou jornal, texto algum é públicado sem o conhecimento do Chefe da Redação, diferentemente do meu blog fundo-de-quintal, onde toda a desgraça depende de só um clique – e que acione os órgãos de Ética para a denúncia do profissional em questão. Porque hoje é com ela, mas amanhã, pode ser comigo (como já disse em outro post).

E, principalmente, porque ainda que pudesse ser do meu interesse pessoal, político, de visão de mundo, o escárnio com a rotina profissional de Heloisa… Em uma Democracia, em tempos de paz, os fins não justificam os meios, nunca.

E eu não aceito trabalhar com dois pesos e duas medidas.


PS: Dia depois deste post, tomei conhecimento de nota com pedido de desculpas do Grupo Globo a Heloisa. Perceberam que erraram feio. Já é um bom começo.