A tensão que salta dos homens fardados? A aparente tentativa das moradoras da região de demonstrar que não temem uma eventual repressão de um Estado tentando recuperar o controle sobre parte de seu próprio território? O sentimento de hostilidade que uma viela impõe, em uma região de clara construção desordenada (e, não difícil supor, ilegal)? A suposta ameaça dos homens, em posição mais elevada de terreno, talvez, em desafio à Ordem que os fardados deveriam trazer?
Bem, tudo isso está na imagem. E você estaria certo(a), se verificasse isso tudo.
Eu, por outro lado, não consegui tirar o olho da composição da fotógrafa que, intencional ou não, foi extremamente oportuna à fotografia como registro jornalístico e histórico, no melhor estilo “uma imagem vale mais que mil palavras”: A placa, afixada no poste, onde lê-se “Rua sem saída“.
Sem Saída…
“Sem saída”, é o exato resumo do sentimento que acredito que muitos capixabas sentiram, ao lidar com a volta da barbárie, anterior ao conceito básico de Sociedade Democrática, em uma “pequena” (porque, poderia ter sido bem pior) amostra do que é a falência total das funções primordiais de um Estado de Direito.
Quando Jean Jacques Rousseau escreve “Do contrato social”, ele não deixa espaço para dúvida quanto a função central de um Estado: Garantir direitos e impor deveres através do monopólio da Força (ou “violência”).
Tal monopólio é obrigatório porque, no Direito Natural em que todo ser vivo nasce, a Força é o instrumento central da manutenção do Direito: Eu posso o que você não pode, porque sou mais forte do que você. E você, em relação ao seu vizinho mais fraco, pela mesma razão.
Oras, sendo o Direito Natural tão mais benéfico aos que detém o maior poder natural (ou seja, o maior músculo, a maior arma, o maior poder de fogo), por que diabos eles teriam abdicado disto, em troca do Direito construído pelo Contrato Social? Bem, não há como resumir a resposta de Rousseau, já que ele escreveu um livro todo só para isto. Para não obrigar a leitura (muito embora, eu recomende, fortemente), vou tentar resumir este porquê, com uma síntese da própria obra de Rousseau, e outra sentença do, também francês, pensador, Etienne de La Boétie, respectivamente:
- A Força não produz Direito. Por ser um elemento da física, nenhuma moralidade pode advir da Força. Logo, os direitos provenientes do uso da Força duram tão somente o tempo em que esse elemento físico puder ser sustentado, e tal tempo é sempre finito. O “verdadeiro” Direito descende de ideais. E ideais perduram indeterminadamente, enquanto forem benéficos à uma sociedade, em um dado período histórico.
- Frágil por natureza, de onde, a todo instante despontam os escândalos pois, o tirano não tem amigos, não ama, nem é amado: “O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apóiam mas, se entre-temem. São cúmplices”.
Considerando, especialmente, o que Etienne propõe, é fácil perceber que, na tirania e violência, não há amizade mas entre-temor. Em uma releitura minha, para sair de 1552:
O Dono do morro não dura mais do que o tempo que conseguir ser mais assustador em violência e possibilidade, do que aqueles que o servem, e que desejam sua morte e seu trono, em simultâneo.
Considerando essas idéias, fica mais claro o porquê de homens fisicamente fortes concordarem em se equivaler com homens mais fracos. Bem, pelo menos, boa parte deles. A “beleza” do Contrato Social está em propor que, ao abrir mão do Direito Natural, baseado na força que cada individuo é capaz de gerar, todo mundo ganha um Direito Cívil, legítimo por descender de ideais partilhados e onipresentes, defendidos e aspirados pela massa daquela comunidade.
É, também, tal troca que permite ao mais forte dormir como um bebê, sem temer que o mais fraco o assassine enquanto ele tenta dormir. Não há cúmplices porque o poder é entendido, assegurado e compartilhado por todos, e não mais imposto do mais forte ao mais fraco. Como a força não gera direito, matar que tem mais do que eu, não me garante nenhuma vantagem sobre a minha vitima, já que desgraçarei minha imagem, serei encarcerado (ou mesmo, morto), e não vou ter conseguido tudo o que desejei, do mesmo modo.
Tudo isso, para dizer que a função básica do Estado é o monopólio da violência, como fonte, garantia e até mesmo ameaça para que cada um cumpra seus deveres, respeite direitos alheios e assim, possa ter seus próprios direitos garantidos e preservados.
Mas, se outras fontes, paralelas ao Estado legitimo, podem gerar a mesma ou ainda mais violência do que o próprio Estado, então, todo o sistema de garantia de direitos e cumprimento de deveres, corre o risco de implodir.
Como o cidadão(ã) não tem mais a garantia da proteção de seus direitos, sua lealdade ao Estado e ao Contrato Social é seriamente ameaçada, e ele passa a flertar com o retorno ao Direito Natural, já que este parece, ao menos, mais garantido do que aguardar por um Estado omisso que não virá resgatar a Lei e a Ordem de outrora.
146 mortos não são nada: O verdadeiro pavor está na disposição de cada um…
146 mortos em 10 dias? Isso não é nada. Nada. Estamos falando do país que, em 2014, matou 143 pessoas, diariamente, de forma violenta. 143/dia… 146 em 10 dias, capixabas? Isso não é nada para nosso record. E todos sabem como nós somos competitivos. Vamos lá, Espírito Santo! Vocês não estão nem tentando…
Mas, o verdadeiro pavor vem das cenas de saques, espancamentos, assalto de pessoas completamente vulneráveis, depredação da coisa pública, ataque aos meios de transporte: O horror do que se passa na sociedade capixaba está na disposição de grande parte de sua população em abraçar o caos social, como meio legitimo de ser e estar.
Para um país cujo o povo se gaba de ser pacífico e não estar em guerra, as cenas gravadas em Vitória dão conta de uma cidade na iminência da falência moral (não religiosa: mas, de olhar o próximo como alguém que poderia ser você e, daí, respeitá-lo, pelo simples exercício da empatia).
O silêncio era absoluto nas ruas, e o estado de depredação dos patrimônios era muito grande nas vias mais tradicionais do comércio capixaba, lembrando um local, pouco antes da tormenta, ou da invasão de tropas inimigas.
Igualmente tragicômico, para mim, foi o video veiculado na mídia, de um carro tocando “Imagine” de John Lennon, e projetando a palavra “Sem medo” em paredes, enquanto as pessoas gritavam “hurru”, por trás de grades e completamente apavoradas para pisar fora de suas casas (ou seria, “de seus cárceres”?). NADA contra a esperança. Mas, para o bem ou para o mal, palavras de ordem não corrigem a falência estrutural de medidas e políticas de segurança pública, e a erosão dos tecidos sociais do nosso povo. É, simbolicamente e na minha opinião, como tentar vender a imagem de um povo resistente e “raçudo”, por cima dos 146 corpos mortos, empilhados.
O maior pavor está na disposição malévola de cada cidadão. Claramente, muitos dos saqueadores não eram, até então, gente envolvida com roubos e furtos. O efeito mais nocivo dos eventos de Vitória para o imaginário do brasileiro (e, em algum grau desconhecido – por ora – no imaginário estrangeiro) é perceber que na falta de agentes fardados que façam o policiamento ostensivo (portanto, que é exibido com fins de manter o “fantasma” da punição no “radar” de cada um), qualquer cidadão brasileiro, mesmo aqueles sem passagem por crimes, se convertem logo à marginalidade, e implantam a imagem de um Estado em ruínas. Em pouco tempo, as ruas da capital do Espírito Santo, pareciam tiradas de cenas de filmes apocalípticos.
A central diferença é que, para meu completo pesar, a única praga devastando o local, não era uma horda de zumbis, ou uma raça alienígena, mas sim, o próprio povo que lá morava.
Um pequeno desequilíbrio no sentimento e na contabilidade/percepção do risco de sofrer uma sanção, e o brasileiro, mais uma vez, mostra o pior que pode ser.
E, se essa onda de paralisação afetou o Espírito Santo, por que não afetaria outros estados?
A Ameaça Fantasma…
Mas, o que muito conterrâneo meu ainda não percebeu é que a situação das PMs, no Brasil, é um gigantesco barril de pólvora. E estamos brincando de acender e apagar o paviu, faz um tempo.
E o Espírito Santo foi, apenas, uma degustação do que pode vir por aí, se o governo federal não for capaz de cobrar dos estados o que a Constituição de 1988 os obriga (por exigência de seus antecessores [governadores] aos constituintes, diga-se de passagem):
- Capítulo III – Da Segurança Pública
- Art 144: (…)exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
- §6 “As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
- Art 144: (…)exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
- Resumindo: Segurança pública é dever regulatório e executivo da autarquia ESTADUAL, e não da União.
- CURIOSAMENTE, como está ocorrendo no Rio de Janeiro, os estados, falidos, tentam empurrar a conta de sua incompetência para a União. E quem paga a conta do deslocamento e manutenção das tropas, para estados onde a má gestão arruinou as finanças? O país inteiro.
- Muitas pessoas dizem “onde está o governo federal que não intervém!?”, mas, por ignorância, ou por pura falta de noção de que políticas e manutenção de direito custam dinheiro, supõe que, como um pai, a União deve ficar acudindo estados que faliram por ingerência, tampando as consequências nefastas do populismo como ideal de gestão econômica, o tempo todo, em todas as ocorrências.
Muito mais por sorte do que por competência, a situação da paralisação policial ainda não se alastrou pelos estados falidos dessa nação, mas, o governo do Espirito Santo será decisivo na “jurisprudência” que deve ser utilizada para analisar outras eventuais paralisações de funcionários públicos tão críticos quanto militares estaduais, e que tipo de resposta, futuros movimentos similares devem obter se pressionar o governo de uma forma “indefensável”, dada a imensa gravidade da situação.
Mais do que isso, o tecido social brasileiro está fortemente desfiado. Temos um momento de muitas tensões políticas, uma total crise de representatividade com os políticos eleitos e sua distância das metas e das demandas de quem os pois lá, mais uma série de indicações duvidosas em cargos públicos, e tomadas de decisão ruins.
Os Policiais estão errados. Mas, a Sociedade também está…
Não há porque perder tempo, relativizando: O artigo 142 da CF/88, §3, inciso IV, fala exatamente da proibição do direito de Greve ao Militar. Ponto. O crime, além de Constitucional, também é Militar, legislação muito mais “dura” em sua condução e aplicação, do que o Direito Penal “Comum”. Na verdade, e sem tornar eterno este artigo, afirmo que a militarização é uma das últimas amarras que faz a Polícia ostensiva brasileira trabalhar, mesmo sendo tão odiada e abandonada. Com certeza, um contra-senso para muitos que pedem a desmilitarização, mas, exigem que a tropa volte ao trabalho, imediatamente.
Além disso, a lei federal 7.783, que regula o direito à greve, é explicita ao dizer em seu artigo 11, que:
“(…)os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Parágrafo único. São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população.“
Em resumo, nenhum policial, militar ou civil, tem direito à greve como meio de reivindicação por melhores condições de trabalho, à luz da legislação brasileira vigente.
Não obstante à essa obviedade, ano após ano, assistimos à greves de Policiais Civis e Federais, além das “operações padrão”, que nada são além de uma “greve branca”, onde o servidor público bate ponto, mas não faz nada. No entanto, a parada dessas polícias, não causa efeitos tão visíveis quanto a paralisação da Polícia Militar.
Nunca vimos, em um passado um pouco mais distante, a paralisação de policiais militares. Pense em 10 ou 20 anos atrás, e notará que essa força, responsável pelo policiamento ostensivo, nunca parou de trabalhar, independentemente das condições oferecidas. O primeiro protesto grevista, pós-democratização, nesse tipo de organização, ocorreu somente em 2014, na PM da Bahia.
Temos uma Polícia Militar odiada pela população que ela deve proteger, abandonada à própria sorte quanto à investimento em materiais de trabalho (coletes balísticos vencidos ou fora das especificações, viaturas “baixadas”, esperando peças e sem nenhuma blindagem [muitos policiais morrem, no Brasil, só por entrar de viatura na “rua errada”] e armas que disparam com o simples chacoalhar do corpo, com dedo fora do gatilho), sem treinamento adequado e sem remuneração que justifique melhores recrutas.
Re-significando um artigo do Blog “Para entender Direito“, “se pagar bem a Polícia não garante sua qualidade, pagar mal é uma receita certa para o desastre”.
Para ficar no básico, um policial em São Paulo, treina tiro a cada 12 meses, se der sorte. Vários especialistas em Segurança Pública, no entanto, recomendam um treinamento trimestral, que, muito além de mirar em alvos de papel, e ficar cheirando a pólvora, deveria cobrir:
- Correção de falhas com ambas as mãos;
- Simulações de falhas de funcionamento de diversos tipos;
- Recarga tática e de emergência com qualquer mão;
- Manipulação de travas e mecanismos com as 2 mãos;
- Baixa luz e julgamento (tomada de decisão) de tiro;
- Disparo enquanto deslocando-se para o abrigo;
- Disparo com uma mão;
- Disparo e correção de falhas de várias posições de “policial abatido”;
- Enfrentamento de múltiplos alvos.
A primeira idéia que deve ocorrer em muitos que lerão isso é que “não devemos treinar o policial para ser mais letal, ensinando-lhe a ser melhor com armas de fogo”. E é por esse tipo de afirmação que acredito que engenheiros não devem fazer operações cardiológicas, e mecânicos não devem lecionar botânica.
Se cada um ficar no seu quadrado de competência, a sociedade vai bem mais longe. Supor que um policial é mais letal por conhecer melhor o equipamento (e o framework que envolve o emprego desse equipamento) que protege sua vida, é o mesmo que supor que um piloto de fórmula 1 é mais perigoso que o jovem recém habilitado, nas estradas.
Então, temos uma tropa que é mal recrutada (porque tem um salário que espanta qualquer candidato de nível melhor), mal treinada, odiada, tida como inimiga de boa parte da população, e alguém se espanta quando eles decidem parar? Para mim, o espanto é ter dado certo por tanto tempo, a despeito de tudo o que se constata em erro.
O rompimento entre Sociedade e Polícia é pra lá de cretino porque, nós, sociedade, deveríamos nos lembrar que abrimos mão do Direito Natural, por alguma razão (porque os tiranos são sempre mortos por sua “linha sucessória”). A Polícia é a realização da idéia de “Monopólio da Força/Violência” que faz o Estado ser respeitado, as leis, cumpridas, e os Direitos, individuais e coletivos, garantidos.
Se a Polícia é má, corrupta, ineficiente, é bom lembrarmos que ela não recruta estrangeiros (só brasileiros e, no máximo, nacionalizados), somos nós, sociedade, que desprezamos seu trabalho, sua formação e importância, e nós que não ligamos se ela é sucateada e arruinada por iniciativas da gestão pública, década após década.
Em uma sociedade, como a nossa, que crê ter uma miríade de direitos, mas pouquissímos deveres, não é difícil entender como chegamos ao ponto em que estamos. Achamos merecer muito, sem fazer absolutamente nada, e vemos deveres de todos outros para conosco, enquanto só temos o dever de reclamar do que não temos. Mergulhados nesse egocentrismo, não conseguimos perceber o óbvio: O que explodiu em Vitória, foi só o que ocorre todos os dias, à meia-luz, e em becos escuros.
Mas, análogo a pedir um prato em um restaurante baiano, não importa quanto tempo demore, a conta sempre chega.
E se a piada lhe pareceu ofensiva, para mim, mais ofensivo é ouvir de alguém que se considera inteligente, que estaríamos melhor sem a Polícia.
Somente um louco que ignora a essência humana, em especial, a essência do nosso povo, pode propagar as bobagens de uma sociedade auto-regulada, como algo viável.
Na ausência de um Estado Uno, monopolizador da Força, o Contrato Social é rasgado; o tecido social é destroçado, e o país inteiro se torna um pesadelo ampliado, aos moldes exatos do que vimos ocorrer com o infeliz povo capixaba.
O extrato que forma nossa nação, sem o medo da repressão estatal, não é 1% melhor do que vimos em Vitória.
Do Povo, Pelo Povo, Para o Povo: A Violência é o melhor que temos à oferecer, uns aos outros?
O Espírito Santo parece dizer “Sim”.