Sobre a Polícia – Parte 2

A Polícia Militar (não só do RJ) tem que acabar…

Créditos da imagem: Zazen Produções

É sempre complicado quando nossos heróis nos trazem desesperança.

Capitão Nascimento é um personagem baseado no livro “A Elite da Tropa”, sendo o primeiro volume bem melhor que o segundo (vai por mim). Trata-se de ficção (em certa medida), portanto. Mas é um símbolo heroico nacional do homem honesto e incorruptível, lutando contra um Estado e sociedade igualmente falidos. Em Nova Iorque, eles têm o amigão da vizinhança, o Homem-Aranha. Os brasileiros têm o Capitão Nascimento. Fala um pouco sobre o nosso fascínio com a violência urbana, em sua forma in natura.

Porém, no filme “Tropa de Elite 2”, Nascimento narra como a Polícia Militar do Rio não mais representa o desejo de um Estado Democrático de Direito (aquele erigido por todos nós que somos parte da sociedade e que, em última análise, autorizamos a presente Constituição Federal a alçar o status que ela detém), mas, sim o desejo das milícias (organizações criminosas, formadas por policiais, militares e ex-*) no caso do Rio de Janeiro.

No caso nacional, mesmo onde as milícias ainda não são uma realidade alarmante, a Polícia não está mais a serviço tão somente da Lei. Ela serve a projetos políticos (de futuros delegados e tenentes/capitães/(…), eleitos deputados e senadores) e projetos de poder local de indivíduos que, uma vez investidos na função policial, esquecem-se que estão lá para servir a Lei e não se confundirem com ela.

No que depende da Ciência Jurídica (portanto, estou falando de como deveria ser), nem mesmo o juiz, que é definido como cidadão investido na jurisdição (ele pode dizer o que é direito e o que não é), se confunde com a Lei. Tanto é assim que o Código de Processo Penal diz, tanto no art. 155 (“O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos(…)”) quanto no art. 381, caput + inc. III: “A sentença conterá:” + “a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão”. Portanto, não pode o juiz da ação penal prolatar (emitir) sentença pautada puramente em seu livre convencimento (o que pode ocorrer, em certa medida, no Direito Civil) sobre a culpa ou inocência do réu, mas tão somente fundamentar-se em fatos (provas, depoimentos, perícias…) e direito (Lei).

Contudo, a cada dia que passa, tudo isso está erodindo na sociedade brasileira. E o resultado será o que sempre acontece quando gente que não conhece limites se impõe, por força, contra gente que tenta se manter dentro da legalidade.

Mas, vamos devagar. Muito a expor, nem tanto espaço assim para fazê-lo livremente (se eu não me segurar, você não volta aqui nunca mais)…

Uma Polícia que mata, mas também morre demais…

Como prometi, na Parte 1: A ideia de que a Polícia mata demais é um tanto quanto surreal diante dos números oficiais.

Algumas pessoas dizem que “preferem encontrar com o bandido a encontrar um Policial”, o que me parece um grande exagero, embora eu entenda, com alguma calibração, o sentimento de medo sobre a conduta de quem pensa ser a própria Lei encarnada.

Falando de SP, em 2020, tivemos a morte de 49 policiais, sendo 39 militares e 11 (policiais) civis. No mesmo ano, as duas polícias mataram 814 pessoas. 780 foram mortos por militares, e 44 por (policiais) civis. Ocorre que 134 dessas mortes ocorreram fora do serviço, quando esses policiais estavam descansando ou no “bico” (e preciso lembrar: O bico existe, principalmente, porque o salário é uma vergonha. Ponto).

Mas, para não causar controvérsia, fiquemos com os números totais, sem separar “serviço” e “fora de serviço”. Comparar o número absoluto é um erro, mesmo que seja tentador. Já discutimos isso. Temos que comparar a população de cada grupo (policiais e não-policiais) para ter a dimensão correta do risco.

O contingente da PMESP é de 100 mil homens… Como expliquei, antes, o total de pessoas na rua não é de 100 mil, devendo ficar na casa dos 80 mil, fora os afastados (em 2020, quase 3 mil policiais foram afastados por suspeita de COVID-19; 43 morreram).

Mas vamos usar os números oficiais. 100 mil PMs. A Polícia Civil tem na casa dos 28 mil policiais. E a mesma história sobre pessoal na rua e interno se repete.

Então, temos (para facilitar) 130 mil policiais em SP (civis e militares). Em 2020, eles mataram, juntos, 814 populares do Estado de SP. E 49 policiais (das 2 forças) foram assassinados.

Agora, aplicando a taxa por 100 mil habitantes, temos que: dado/população x 100.000.

Logo, 44/130.000 x 100.000 = ~33.85 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil policiais, ~34 serão assassinados.

E para a população = 814/43.9 milhões (descontados os contingentes policiais) x100.000 = ~1.85 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil habitantes (fingindo que os policiais não são de SP), quase 2 morrerão em confrontos contra a Polícia Paulista (militar ou civil, tendendo bem mais à primeira).

Para fechar, tivemos 2.893 homicídios dolosos no estado de SP, em 2020. Vamos considerar que não estão inclusas, na estatística, as mortes por policiais (a fonte não deixa claro, mas trata as mortes causadas pela força pública em separado, logo, minha conclusão), e vamos somar a população policial do estado, para manter a conta justa.

Logo, 2.893/44 milhões x 100.000 =  ~6.57 mortos. Quer dizer que a cada 100 mil paulistas, quase 7 serão assassinados por outras pessoas que não fazem parte das forças policiais.

Portanto, se você for um policial (e nem vou separar em militares e civis; os primeiros levam a pior de lavada), sua mortalidade está em ~34 para cada 100 mil policiais. Se você for um “paisano”, sua mortalidade causada por policiais é de ~2 em cada 100 mil conterrâneos, e de ~7 em cada cem mil, se o assassino for um civil (“paisano”) como você.

Não há dúvidas de que a percepção de que a Polícia (ao menos, a paulista) mata demais, vem sem a mensagem – necessária – que ela morre ainda mais.

A sensação de insegurança ao lidar com um policial é justificada porque, mesmo sem a morte como resultado, os casos de abuso de autoridade são muito frequentes, como demonstro via manchetes, mais a frente.

Porém, argumentos como “prefiro encontrar um bandido a um policial” não passam de exagero, sem ancoragem à realidade; aqui demonstrada de forma rápida (e sem extremo rigor, reafirmo).

Referência / referência / referência / referência

2022 não tem cara de que vai terminar bem…

Eu sei… Eu sei… Você odeia essa parte em que eu te lembro que sou um pessimista por opção, com forte predileção pela fundamentação cética na interpretação dos sistemas (que sofrem, todos eles, do efeito da entropia)…

Fica ainda mais difícil calibrar esse padrão de análise na cena política, já que eu realmente tenho muita dificuldade de acreditar no “Bem” como produto espontaneamente gerado pelas interações entre Homem e Poder… Toda vez que algo realmente bom ocorreu, veio depois de muita… Muita – deixe-me pensar numa palavra técnica para descrever isso… – Merda…

A recente decisão do Exército Brasileiro de absolver General Pazzuelo não decorrerá sem efeitos sobre as tropas (referência). Eu disse, na Parte 1, que, sendo militar, é melhor matar alguém do que quebrar hierarquia. Igualmente, vale dizer que é melhor matar alguém do que permitir insubordinação ao regulamento militar.

E este regulamento é claro no que tange à participação de militares da ativa em eventos políticos:

Decreto 4.346/2002: Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências.

Anexo I – Arts. 56 e 59: “Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. + “Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”

Em resumo, a Lei, pública e de conhecimento irrefutável por parte do General Pazzuelo, foi jogada no lixo sem maiores consequências. Não é que isto (jogar a Lei no lixo) não aconteça diariamente no Brasil. Mas, antes, os militares tomavam cuidado com a participação política por se lembrarem que o mundo não tolera mais governos autoritários (exceto se você tiver algo MUITO importante para eles), sem impor aos ditadores do mundo subdesenvolvido, intervenções, vetos, sanções e todo tipo de represália da comunidade internacional.

Tal decisão (de não se envolver em política) não decorre de qualquer raciocínio ou autoanálise que tenha levado a tropa a considerar o desastre dos Anos de Chumbo, nem qualquer entendimento mais evoluído do valor e importância central de uma Democracia para os países que têm melhor qualidade de vida. Tanto é óbvio que os militares não se envergonham do passado ditatorial, que até hoje insistem em “comemorar” (referência) o 31 de março (que deveria ser 1º de abril).

Cientes de que uma reedição de 1964 faria com que o Brasil se tornasse pária internacional, os militares concordaram com a redação presente do R-4. E esqueçam a falácia de que se não concordassem, bastava Congresso Nacional e a Presidência imporem. Ninguém impõe nada aos militares brasileiros. Nada. O alto escalão decide o quanto ganham, qual a forma de aposentadoria, que lei os atinge, qual o poder de uma Comissão da Verdade… Sem o aval deles, esse R-4 jamais teria a forma que tem hoje.

Mas, agora, o R-4 já era (ou, ao menos, a parte que cobra certas abstenções por parte deles; abstenções mais que justas, se me perguntarem, já que são uma instituição de Estado e não de Governo). Se o General pode, em evento público e filmado por todas as câmeras de TV, subir num palanque, cercado de bandeiras pedindo fechamento do STF, Congresso, Intervenção, começar a falar da honra que tem em apoiar Bolsonaro; por que não poderia fazer o mesmo cada militar da tropa, usando dos mesmos argumentos do General?

A semente do Mal está plantada, como jamais esteve. Com toda a força que se poderia esperar. O autogolpe em 2022 é, para mim, uma realidade concreta. Se ele não ocorrer, não será porque ele nunca esteve em curso. Será tão somente por alguma intercorrência não previsível aos arquitetos do golpe (não se dá golpe sozinho. Lembre-se disso). Todo o discurso contra a segurança das urnas brasileiras, todo o assédio de Bolsonaro sobre tropas federais e estaduais (polícias) não é de graça. Ele se movimenta para recrutar homens com treinamento e acesso às maiores armas que o país dispõe. Ninguém mais nega isso (referência).

Para piorar, tudo indica que os próximos anos serão turbulentos em potências que estabilizam a região, como os EUA, à beira de uma nova guerra civil (referência / referência [em inglês]). Não é meu tema, hoje. Mas História não é a soma de eventos estanques como, lamentavelmente, se deduz do que vemos em sala de aula… A estabilidade de um “farol” na região, irradia para outros locais. A instabilidade, também. E certos movimentos têm uma relevância e importância que a simples leitura de datas históricas camufla, como se não houvesse ligação entre fatos A e B, no tempo e no espaço. Equívoco comum, mas perigoso.

Se ninguém mais nega, por que nada se faz contra isso?

Bem…

Bem…

Essa é uma questão… Que não consigo responder. Não entendo o cálculo. Não entendo mesmo.

Que o Congresso é uma zona quanto à organização e alinhamento de pautas e bandeiras, nós todos sabemos, e a fragmentação partidária é um grave problema do nosso sistema que permite a eleição de um Centrão, orgulhoso de seu “fisiologismo” (em outras palavras: apoia quem der mais poder para eles), jargão que, outrora, era motivo de vergonha.

Mas, mesmo diante desse Congresso fragmentado, Bolsonaro não pretende dividir o poder com seus atuais correligionários. “Como você sabe disso, Rodrigo?”. Olha… É só perguntar onde estão os ministros que ousaram dizer “chefe, talvez você não esteja entendendo bem isso daqui…”. E se você entende que “dividir o poder” significa que os outros façam tudo que você manda, sem questionar… Você e seu presidente (com minúscula, mesmo) têm problemas…

Portanto, não vai sobrar poder para ninguém. Só para os donos do golpe e os homens com o acesso às armas que manterão o golpe em vigor. É assim em todo lugar onde um golpe ocorre. Não será diferente em 2022, por aqui.

Essa é mais uma das vezes em que imploro estar errado. Não ganho nada, estando certo. Mas, é uma repetição da História, a meu ver. E os homens que não conhecem a própria História a repetem. O brasileiro médio é um péssimo aluno, então, eu temo muito. E tenho bastante a perder.

E como isso tem a ver com as polícias militares e a necessidade de acabar com o modelo vigente?

Desde que escrevi a Parte 1 desse artigo, muita coisa ruim, envolvendo forças policiais do Brasil (aqui, meu foco foi no Sudeste), aconteceu. Muita coisa ruim, mesmo:

Julho/2020:

Major diz que PM comete abusos há 188 anos e orienta escapar de filmagens em retreinamento (uol.com.br)

Vídeo mostra PMs sufocando entregador em Pinheiros: ‘não consigo respirar’ | São Paulo | G1 (globo.com)

‘Achei que iria morrer sufocada como George Floyd’, diz mulher negra que teve pescoço pisado por PM em SP | São Paulo | G1 (globo.com)

Após episódios de violência policial, bancada da bala de SP quer acabar com ouvidoria da polícia (globo.com)

Agosto/2020:

Homens que agrediram jovem negro em shopping no Rio são policiais militares | Jornal Nacional | G1 (globo.com)

Três policiais militares morrem em abordagem a falso policial civil em São Paulo | São Paulo | G1 (globo.com)

PM que pisou no pescoço de mulher negra em SP é indiciado por abuso de autoridade e caso vai para Justiça Militar | São Paulo | G1 (globo.com)

Novembro/2020:

Jovens são ameaçados e agredidos por policiais após pedirem ajuda para escapar de perseguidores – RecordTV – R7 Cidade Alerta

Abril/2021:

Policial sai de delegacia e dá tiros de fuzil durante manifestação de mulheres em Paraty; veja vídeo | Sul do Rio e Costa Verde | G1 (globo.com)

Policial assediada e ameaçada de estupro e morte por tenente pede medida protetiva no litoral de SP | Santos e Região | G1 (globo.com)

Maio/2021:

Operação policial com 25 mortos é a mais letal da história do Rio de Janeiro | Notícias e análises sobre os fatos mais relevantes do Brasil | DW | 06.05.2021

Eu omiti todas as ocorrências que envolviam apenas um policial, ou policial fazendo “bico”, para retratar um comportamento reiterado na relação entre a força policial e a sociedade.

O único caso particular que mereceu destaque foi o da Soldado Jéssica, que trabalhava no litoral paulista e recebeu as ofensas mais grotescas dos últimos tempos de seu superior, Tenente-Coronel Cássio Novaes. As conversas ocorreram via WhatsApp e há prints de vulgaridades que revelam uma podridão de caráter que não desejo reprisar por aqui. Embora o caso seja extremo, como já falei, na Parte 1, a presença de mulheres na PMESP é quase inexistente. E isso hipertrofia um machismo arraigado na sociedade, criando os “super-monstros” dentro da corporação, como este homem demonstrou ser.

Superado o horror da ação no Jacarézinho (RJ), haja vista que há pouco a adicionar no que já foi dito; de longe, o caso que mais me chama a atenção e reforça a ideia de que há algo de estruturalmente errado, ocorreu em julho de 2020: Um major da PMESP relata, em curso de reciclagem da atividade policial, que “a PM já comete abusos há 188 anos” (desde sua [re]fundação, portanto). O que os policiais têm que aprender a fazer é não serem flagrados…

Este caso é emblemático – embora muito menos violento do que a brutal incursão no Jacarézinho, ou do que o assédio moral e sexual de um superior hierárquico contra a policial – porque revela a mentalidade de um Oficial de patente elevada, com treinamento e – esperava-se – razoável discernimento de “certo” e “errado”, treinando os policiais que nos atendem. Todavia, o que ele quer passar à tropa é a ideia de que “se te pegarem abusando do poder de polícia, o problema é que você não é esperto”…

Eu já disse que não penso que “ser militar” torna a polícia mais violenta, per se. Tanto é verdade que a violência policial não é monopólio da ala militar que o caso mais brutal, no Rio, foi conduzido pela Polícia Civil. O problema é que se o militarismo não é a raiz da violência, ele ajuda a criar mecanismos e dinâmicas onde essa ideia de atuação violenta faz sentido e é até desejada por uma cadeia de comando muito “pesada”, que não pode ser contrariada sem enormes consequências, e pouquíssimo aberta ao contraditório, ao exercício da racionalidade, e à discordância quanto a atuação.

O que significa ser militar?

Pessoas que se identificam como “de esquerda” costumam ter uma irracionalidade ao lidar com a palavra “militar”. Esta é similar à irracionalidade de pessoas “de direita” com o termo “descriminalização de entorpecentes”. Por isso, muita gente rosna contra termos, sem entender que eles têm seu lugar (eu deveria acrescentar “lugar de fala”, mas de boas de arranjar mais polêmica barata)…

A organização militar é uma necessidade do mundo real. Pensar numa nação sem forças militares é viver em um mundo cor-de-rosa em que todos respeitam todos, gratuitamente, bem como suas respectivas culturas e História. Só “porque sim”.

Para quem entende que isso não pode ser atingido com a atual evolução da espécie humana, a militarização de uma organização de defesa nacional é uma necessidade. E por quê? Tentarei explicar.

Para que serve a organização de uma instituição pública (entenda em sentido amplo) como, digamos, o SUS? A organização visa otimizar as estruturas para atender à missão institucional daquela “pasta”. Assim, o SUS terá um modelo organizacional que o permita lidar com Estados, Municípios, suas respectivas secretárias de saúde, e todos os órgãos que permeiam o conceito “saúde pública”, incluindo SAMUs, UBSs, ou mesmo a rede privada que requer do SUS, por exemplo, suporte nas filas de transplante de órgãos, ou vende seus serviços ao Estado. Ele se organizará para atender às interfaces que tem com cada um desses entes. Se a organização é vertical, horizontal, mista, isso não é meu foco.

Agora, qual é a principal missão de uma força armada de um país? As respostas podem ser variadas, mas eu vou te dar uma definição que acho boa o bastante para explicar a necessidade do militarismo. A função de uma força armada é proteger os interesses nacionais, sua soberania e território de ameaças externas, através do pronto-emprego de pessoal e material bélico.

Pronto-emprego” é a palavra-chave para se entender a função do militarismo como organização da instituição de defesa nacional. “Pronto-emprego” é a noção de que um grande contingente (dezenas de milhares, até… o EB tem aproximadamente 230 mil combatentes na ativa; o resto está em funções administrativas) de pessoas e de materiais precisam ser rapidamente deslocados para onde e quando for preciso, no intuito de proteger a nação de qualquer ameaça, da maneira mais rápida possível.

Para que este pronto-emprego possa ocorrer, a humanidade não criou nada melhor do que a cadeia de comando militar. Militares não recebem uma ordem superior e se juntam para discutir se: a) essa ordem é mesmo a melhor; b) se ela não pode ser feita mais tarde, ou em momento mais oportuno; c) que tipo de treinamento é preciso fazer antes da ordem ser executada (etc., etc., etc.)…

Perceba: O(a) militar passa a vida treinando para um dia que pode e pode não chegar. Esse treinamento, essa dura disciplina, são desenhados para que, na eventualidade de seu acionamento, ele(a) não titubeie diante das ações e medidas que deve tomar para reestabelecer o controle da situação, onde, quando e como tiver de ser feito.

Portanto, me parece muito razoável (e eu sequer consigo pensar em outro modelo tão eficiente para o fim de “pronto-emprego”) que a organização militar seja o tipo de organização que define as instituições de defesa de uma nação.

MAS… Segurança Pública NÃO é Defesa…

E aqui é onde a porca torce o rabo…

A missão do militar é repelir a ameaça à nação. A qualquer custo. A qualquer preço. “Eliminar/Neutralizar” são verbos comuns para confirmar que a fonte da ameaça não mais existe, dentro do teatro de operações militar. Essa ameaça é, em 99% das vezes, outro ser humano, de outra nacionalidade(idealmente) que aquela da força militar.

Mas aquele que nos amedronta no dia a dia; o ladrão, o assassino, não estão ameaçando a Segurança Nacional. Não são ameaças à nação (por mais que você queira dizer que “sim”, não. Lamento.). Eles são um problema – majoritariamente, mas não só – social, “um refugo” que a sociedade permitiu que o Estado ignorasse e que, agora, nos causa medo e pânico.

Veja: Se a Constituição de 1988 tivesse seus artigos 5º e 6º integralmente cumpridos, em primeiro lugar, o Brasil seria um dos dez melhores países do mundo; falo isso sem sombra de dúvidas. Em segundo lugar, a criminalidade seria algo extremamente incomum, mais voltada ao tipo de crime que vemos nos países de alto desenvolvimento humano, de natureza mais explicável pela psiquiatria, ou de menor potencial ofensivo (o furto simples ou a depredação, causados por jovens desajustados e revoltados).

Mas, nós, sociedade civil brasileira organizada, permitimos que o Estado brasileiro prometesse “as tampas” e não cumprisse quase nada. E não nos importamos com isso porque, francamente, nós não nascemos na favela, certo? Então, e daí que lá não tem esgoto encanado, não é mesmo? Essas pessoas que voltem para suas terras, bem longe dos nossos olhos e jornais – depois de construírem todas as nossas casas, nossas ruas e parques, nossos meios de transporte, e se for possível, deixem as mulheres (só elas) porque precisamos de babás, faxineiras, e zaz… – para morrerem no fim de mundo de onde vieram, já que o Estado não levou água, posto de saúde, escola,(…) até lá e, já dissemos… Não é problema nosso…

Então, qual é o meio ideal para controlar a raiva, o desprezo pela sociedade que os cerca e ao mesmo tempo exclui, e sufocar o ódio nessa gente – boa o bastante para nos servir na padaria, no caixa do mercado, ou lavar nossos banheiros, mas que “quer demais do Estado, enquanto senta e não faz nada” – que nossa sociedade apoiou o Estado a esquecer e reprimir? O cumprimento de condições básicas de saúde, habitação e educação? Claro que não! achando que meu dinheiro dá em árvore? Que sou comunista? Estou falando da repressão policial que, de quebra, é bem mais barata (pelo menos, na superfície) …

E aí, vem o artigo 144 da CF/88… Ele organiza a Segurança Pública (que, de novo: Não se confunde com Defesa Nacional).

E tá lá no §6º, essa bobagem aqui: “As polícias militares e os corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército(…)” … Pronto… Lascou-se tudo.

Em quase todo país é natural que polícias e outras forças de resposta à Segurança Pública, Lei e Ordem, apoiem suas respectivas forças armadas em momentos de confronto contra agressores externos. Isso não é novidade. Acontece que o Brasil “decidiu” (não foi o Brasil… Foram os militares da ditadura, através do seu lobby, que era o 2º maior durante a Constituinte, perdendo somente para os ruralistas [referência]) que policiais e bombeiros militares são força reserva do Exército. E como isso ferra com tudo? Bem, para começar, as Polícias Militares (onde os bombeiros também se enquadram) copiam, de cabo a rabo, a organização militar, a filosofia de “pronto-emprego”, os códigos de conduta militar – como na PMESP, o RDPM o faz – e toda a lógica de “questionar quase nada, cumprir quase tudo, eliminar ameaças”. Eu nem vou falar da IGPM (Inspetoria Geral das PM) que permite ao Exército passar por cima do Governador daquele estado em várias decisões… Se quiser se arrepiar (especialmente, com relação à minha previsão para 2022), vá ler o decreto-lei 667 e ver o poder que o EB ainda detém sobre todas as PMs do Brasil. “Não usar” não quer dizer “não poder”. A LSN deveria ter lembrado a todos disso.

Depois, vem o fato de que através do militarismo e da justiça militar, o policial militar ganha mais e mais a noção de que ele não mais é um cidadão brasileiro. Ele é um militar brasileiro. Outra categoria de povo. Outra categoria de cidadão, inclusive. Às duras penas, a sociedade conseguiu que policiais militares que pratiquem crime doloso contra a vida sejam julgados, como qualquer outro, em sede de Tribunal do Júri. No entanto, se um policial mete a mão na sua cara e te arrebenta os dentes, ele não será julgado pela Justiça Penal Brasileira. Ele será julgado pela Justiça Militar, dentro do rito militar, e dos códigos militares. Você poderia pensar que é “mais rígido/sério” que a lei comum. Espero que Pazzuelo tenha removido essa farsa da sua cabeça. Aliás, na Justiça Militar, o “padrão” é o sigilo e não a publicidade, como é no Direito que você e eu estamos submetidos… Portanto, você e eu nem ficamos sabendo de todas as palhaçadas que ocorrem por lá. Daí a impressão que lá é mais sério, talvez?!

Por fim, policiais militares não têm o direito de se indignar com sua própria condição sub-humana. Nas UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora), vários foram os casos de polícias trabalhando em contêineres de metal, sem ar-condicionado, sem encanamento para água e esgoto (porque, afinal, estão dentro da favela), e por turnos MUITO SUPERIORES às 12h habituais (referência). E, se reclamarem, não posso dizer que vão terminar melhor do que começaram. Porque ordem não se discute; se cumpre. Mesmo que seja trabalhar como um escravo, em condições desumanas, indefinidamente. E é só um exemplo.

Eu disse, um pouco antes, que não penso ser o militarismo o que faz da Polícia Militar uma polícia mais violenta. E eu citei, como demonstração disso, que a ação policial mais violenta da história do Rio de Janeiro ocorreu pelas mãos de policiais civis. Então, qual é o ponto em desmilitarizar?

São “pontos”, no plural… Talvez, o principal é que as Polícias Militares são cobradas pelos Governadores e pelos respectivos Secretários de Segurança Pública, a darem resultados. E por “resultados”, o que esses Governadores realmente querem dizer é “não vai me deixar favelado incomodar gente importante, que isso dá merda na eleição!”… E Policiais Militares não atentam contra a hierarquia, lembrando o Governador que sem água encanada e condução digna é difícil pedir pro “paisano” se lembrar do que ele ganha sendo um cidadão exemplar; porque isso contraria toda a lógica militar.

Agora, perceba a incoerência: A Polícia Militar, por designação constitucional, não investiga (isso é papel da Polícia Civil ou Federal, que são as Polícias Judiciárias na Constituição). Se não investiga, não pode pedir ao poder judiciário pela emissão de mandado de busca, só por exemplo. Se não pode emitir mandado de busca, não pode solucionar crimes complexos que se dilatam no tempo, que têm suas bases de atuação em bairros ricos e de classe média ou inter-estados, e não pode, desse modo, fazer um trabalho excepcional de inteligência policial.

Tudo que a Polícia Militar pode fazer é esperar. Esperar pelo que? Pelo flagrante, é claro. Exceto… Exceto, se for na favela. Porque aí, se o policial suspeitar que naquela casa está o dono do morro, é só chutar a porta e pegar o meliante… E se não for a casa do meliante? Aí é só pedir desculpas ir embora, e fo#$%-S3…

Perceba que no sistema penitenciário brasileiro, o terceiro maior do mundo com mais de 770 mil presos (grande parte deles esperando o primeiro julgamento), o número de detidos por tráfico de drogas e afins é assombroso, quase 40%. Já, para crimes contra a pessoa (incluso aqui o homicídio, mas não só), o número é baixíssimo: ~11% (referência). Porque achar um homicida requer investigação de qualidade e inteligência para juntar as provas e apontar o indiciado. Já, pegar um traficante requer apenas uma “batida policial” de surpresa no “pé do morro”. E a PM também tem que ser produtiva, lembra?

Então, a grande pergunta é: O que me apavora mais como cidadão brasileiro, pagador de impostos, e privilegiado com esgoto encanado? Um moleque fumando um baseado, ou alguém matando pessoas? Nossa Segurança Pública vem respondendo, inclusive com números, o que parece preocupar mais o brasileiro…

E esse traficante preso é o “gerentão do morro”? Claro que não… É o “vapor”… O moleque… Ou o jovem adulto… Se for moleque, vai para a fundação Casa (se chegar a tanto, mas esse não é meu tema, hoje). Se for jovem adulto, vai para o sistema penitenciário. E uma vez no sistema penitenciário, ele precisa se “alistar” em uma das facções que mandam no sistema prisional (facções que existem com conhecimento e velada anuência do Estado, é claro). Ao se “alistar”, ele ganha proteção, mas também sai como uma dívida de lealdade. A proteção não é de graça. Esse virou soldado da facção e vai ter que pagar pela sobrevivência enquanto estava preso. De simples “varejista do tráfico” ele passará a segurança particular, ou até mesmo intimidador da sociedade, ou assassino de policiais. O que o seu novo senhor quiser. E de “vapor” que não me incomodava, ele passa a assaltar os lugares que eu frequento. Como sociedade, somos uma das mais burras. Contratamos os nossos problemas futuros.

E aqui vem a questão mais dura do assunto “Segurança Pública”: Quem fez tudo isso ser possível? O morador do morro, o policial, o governante?

Não. Nós. Nós todos. Você, lendo essa porcaria de blog. Eu, escrevendo essa droga de texto. Nós dois, perdendo tempo com isso, ao invés de cobrarmos que o Estado acabe com as favelas (não por meio de bombardeios [eu sei que tem quem ache tentador; recomendo terapia], porque a favela não é uma questão de Defesa/Segurança Nacional, mas sim, uma questão de Cidadania [que pressupõe que somos iguais perante a Lei], em primeiro lugar, e por último, e de forma mais utilitarista, de Segurança Pública).

Quando nós permitimos que a padaria venda Cigarro e Caninha, mas proibimos que alguém comercialize legalmente Cocaína e Maconha, estamos garantindo o moto-perpétuo do jogo de gato e rato entre policiais e traficantes. E não cabe mais nesse texto (que está enorme), mas eu ainda vou apresentar o tanto de falácias na discussão sobre legalização das drogas; de mentiras sobre “o gasto do contribuinte com saúde de viciados” (advinha: ele já existe), ao assombroso volume de dinheiro perdido em arrecadação por meio de tributos sobre tal comércio – que só no Brasil, movimentou R$17 BILHÕES de reais em 2018 (referência) – link corrigido. Para dar uma noção da catástrofe, Rio e SP gastam R$5,2 bilhões por ano, no combate às drogas (referência). Sabemos do resultado dessa guerra ao tráfico.

Então, a Polícia Militar existe para fazer com que nós, sociedade civil “limpinha” fiquemos a salvo daquilo que nós, sociedade civil hipócrita, permitimos que o Estado (que existe porque nós assim autorizamos) trate essa gente como coisa pior que bicho. Até que a Polícia faz m#$%^ daquelas que não dá pra disfarçar o cheiro… E aí, temos que responsabilizar alguém (contanto que não sejamos nós a assumir a culpa, solidariamente). E aí, culpamos as autoridades.

E as autoridades culpam os Comandantes. E os Comandantes, os Coronéis… Até… Chegar no soldado. Soldado que foi orientado pelo major a “bater, mas sem ser filmado”… E que fica puto com todos nós… Porque ele pode até ter feito supletivo, mas não é burro ao ponto de não notar a imensa hipocrisia entre o que queremos e o que pedimos. “Que todo criminoso seja reintegrado à sociedade!… Contanto que bem longe de mim”… É um dilema com seus méritos… Não estou dizendo que não é. Mas é hipócrita, ainda assim. “Dê um jeito nessa gente inconveniente, sem que me custe mais caro, e sem que pegue mal na mídia, e lá fora (pra eu poder viajar sem ser chamado(a) de conterrâneo(a) de genocida)”. Fácil!

Como deveria ser?

Propostas são inúmeras. Umas mais realistas, outras menos. Não se pode portar um modelo europeu que só conhecemos através de manchetes, e achar que ele vai funcionar aqui. Não vai. Não adianta desarmar a PM, enquanto traficantes têm acesso a armas cada vez mais impressionantes (incluindo mísseis, já falei). Ao mesmo tempo, não adianta seguir atirando com fuzil neles, porque seguiremos abrindo vagas no RH do crime e mantando inocentes aqui e acolá. O ódio crescente agradece. E não, “não vale tudo”, porque isso não é Defesa (mesmo lá, o vale-tudo tem regras). É Segurança Pública.

Então, qual o caminho? Se eu disser que sei, serei como todos os especialistas da TV que eu critiquei. Não sei se há um modelo único. Não sei, por exemplo, se Polícia Comunitária funciona para uma metrópole como SP. Não sei se cidades do interior, com menos orçamento, podem lidar com inteligência policial de alto custo, como câmeras, drones, IA… Não sei.

O que sei é que temos de parar de cobrar os Policiais Militares por resultados. E eles têm que deixar de ser militares. Temos que mudar o foco da Segurança Pública de combate às drogas para combate aos crimes contra a vida (porque, para mim, perder o celular, mesmo que doloroso pra quem suou pra comprar, é sempre menos do que perder a vida). As ações de Segurança Pública têm que ter mais inteligência, e menos pressa. O policial não pode se afobar…. O suspeitou entrou no morro? Tudo bem… A gente espera… Temos todo o tempo, recursos, tecnologia, e disposição pra prendê-lo hoje, amanhã, daqui 10 dias, um mês. Ele vai ter que sair. Se não sair, já está em prisão domiciliar. Contra os do morro ele não é louco de atentar. E nós não vamos perder um homem ou mulher (da força pública ou da sociedade excluída que mora na favela) numa guerra desnecessária, criada e incentivada por gente que lucra com o dinheiro sujo do tráfico e com a violência que decorre dele (e que gera pânico e todo um mercado que lucra sobre esse pânico [mais grades em casa, mais apólices de seguro, mais alarmes, mais armas, mais empresas de segurança particular, mais blindagem de veículos…]).

Não sei qual é a solução, e não sei se ela serve para todos. Sei que passa por ter uma força policial que mata menos (ela não é a que mais mata, mas, idealmente, deveria matar perto de zero). Sei que passa por ter uma força policial que não se confunde com a Lei que ela jurou proteger e fazer cumprir. Sei que passa por valorizar os policiais como seres humanos, com medos, desejos, necessidades. Tanto quanto os criminosos que os movimentos sociais – acertadamente – não cansam de defender como seres humanos, com direitos e expectativas. Sei que passa por encarcerar menos, julgar com mais velocidade e qualidade, cometer menos injustiças. Mas, também, mostrar ao policial que a diligência dele não é em vão, e que quando ele prende com evidências e provas, o verdadeiro marginal não sai da cadeia mais rápido do que ele, fazendo papelada.

Sei que passa por não ter mais uma organização militar na Segurança Pública. Porque a força pública não serve para, via pronto-emprego, eliminar a ameaça. Ela serve para pacificar o meio-ambiente onde os cidadãos convivem, e lembrar a todos que há uma Lei e que esta serve para todos e alcança a todos.

Não, Segurança Pública não é item de supermercado (como eu disse na parte 1), onde basta comprar mais para ter mais. Quem acha que a solução é simples, precisa revisitar a mensagem de Mencken:

Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.

E o meu sonho de ser Policial Militar?

Depois de tudo que eu escrevi, e reconhecendo que minha inteligência não é medíocre (no sentido literal da palavra)… Você acha que eu teria estômago para usar a farda por quanto tempo? Chuto que se não morresse logo, eu iria durar… 2 anos. Logo, ia ter que ver ou até fazer algo com que não concordasse. E aí acabou. É claro que como empregado da minha empresa, faço coisas que não acho as mais eficientes, objetivas, sensatas. Mas nunca me pediram para fazer nada moralmente errado. E isso me basta.

Eu amaria ser militar. Sério. Já pensou conseguir ser um piloto de caça? Ou estar na elite dos atiradores do Exército… Sempre treinando para proteger meu país, desenvolvendo uma precisão e um grau de reflexos extra-classe. Ter uma farda bonita, uma insígnia de “machão”, estilo BOPE, na boina… Já pensou? Eu pensei. Por muito tempo.

Mas, tudo isso… Todo esse treinamento… Essa ordem… Essa “incapacidade” (desejada pelo modelo organizacional) de pensar antes de fazer… Essa habilitação ao “pronto-emprego”… Tudo isso…

…Para atirar no vapor, filho do cara que levantou a parede do apartamento que eu moro, e neto da mulher que limpa o banheiro do restaurante que eu frequento(tava)?

Obrigado, mas… Não, obrigado.

Sobre a Polícia – Parte 1

Crédito da imagem: Revista IstoÉ, via Youtube

Para quem assiste muitos filmes de suspense, a paródia será conhecida:

Precisamos falar sobre a Polícia…

E este não é um assunto prazeroso para mim… Na verdade, dialoga diretamente com uma parte de mim que sempre quis ser militar, especialmente, na Polícia Paulista. Cheguei muito perto, mas deixei esse sonho para lá, depois de algumas idas e vindas.

Tenho boa quantidade de familiares na “Força Pública” (do bisavô ao irmão, passando por todos os outros “degraus”), e tenho um pai que foi militar durante o fim da ditadura iniciada com o golpe de 64 (e que prestou o serviço obrigatório à FAB e à Justiça Militar), além de outras influências como a década de 1990 inteira, todos os seus filmes e séries (para citar alguns: Máquina Mortífera, Duro de Matar, TopGun, Passageiro 57, e só todos os duzentos filmes de roteiros “cópia-e-cola” do Steven Seagal)… E ainda tinha CyberCops, Giban, Jiraya, Black Kamen Rider, e todas as N séries japonesas estilo “Super Sentai” das Redes Manchete e Record… Falar que esse período do audiovisual nas TVs brasileiras, cheio de enlatados importados, não alimentou o sonho em alguma medida seria infantilidade agora.

Assim, estar perto da farda era uma realidade minha. E desejar “combater o mal” (o que não foi um termo claro, durante boa parte da minha vida) foi constante da minha infância e juventude, como foi para boa parte que cresceu em lares comuns da zona leste paulistana, fazendo e vendo as mesmas coisas que eu. Eu não lembro de alguém que não brincava de “polícia e ladrão”, e todos os amigos odiavam ser da equipe de “ladrões” (então, todos revezavam para que ninguém fosse “o mau”, por muito tempo).

Assim, falar sobre a Polícia é um pouco como falar sobre Kevin (salvadas as devidas proporções, já que não dei à luz a PMESP): É lidar com o incomodo e até a dor de ter de reconhecer que há algo profundamente errado (no entorno e) com aquilo que eu sempre quis tão bem. Também não posso dizer que sou neutro ao tema, como demonstra o meu histórico familiar. Mas, farei meu melhor, aqui, para apresentar um material tão neutro quanto posso me forçar a ser ao fazê-lo.

Para que este não seja um texto cem por cento enfadonho, eu vou mesclar fatos e pesquisas com minha própria história, e contar o causo de como quase fui militar; mas, deixei passar. Talvez, ao invés de 100%, eu atinja 200% no índice “mas que lixo!” da opinião pública (que se digna a ler esse fim-de-mundo em forma de blog), mas, hey!… Eu, ao menos, tentei…

Antes de tudo, uma discussão sobre terminologia

“Negro”, “Preto” ou “Afro-brasileiro”?

Essa é uma discussão que, sozinha, merecia um artigo exclusivo.

O racismo (não o crime, pois, “racismo” é crime específico, tipificado no diploma 7.716/89 e consiste, grosso modo, no ato de impedir alguém de fazer algo [exemplos: Acessar um restaurante, obter um emprego…], por conta da cor de pele, etnia, religião(…)) é parte do constructo social e é, portanto, estrutural no Brasil.

Por ser estrutural, não poderia deixar de se fazer presente na língua, a forma mais típica para cometer a injúria qualificada (não “agravada”, nem “majorada” – são coisas distintas) por fatores raciais. Aqui, sim, o crime mais frequente na sociedade brasileira. Art. 140, §3º/CP.

Ao longo do artigo, eu decidi por usar a terminologia do IBGE, e chamar a cor e o povo de “preta” e “pretos”, respectivamente. E eu faço isso, contrariando até o que me foi ensinado dada a questão histórica no Brasil.

Nos EUA, “nigger” (que, literalmente, é o nosso “negro”, mas soa por lá como “pretinho”, com significado de inferiorização) é termo altamente ofensivo à comunidade de ascendência proeminente africana de lá. O termo comum é “black people” (literalmente, pessoas pretas). E após os vários confrontos das décadas de 60 em diante, os diversos movimentos sociais tentaram combater o senso de inferiorização, incentivando e promovendo a ideia de orgulho das raízes africanas (como não citar “Black ‘n’ Proud” de James Brown?), usando um termo que já existia antes mesmo da independência americana: “African-American”; embora ele só tenha “pegado” no começo dos anos 1990. Por aqui, temos algumas publicações, entidades e pessoas que dão preferência ao “Afro-brasileiro”, também buscando essa valorização da raiz desta parcela do povo.

Vou começar dizendo porque eu jamais vou adotar “afro-brasileiro” como termo “certo” para determinar os brasileiros de pele escura: Porque eles são brasileiros. Não afro-brasileiros. Assim como eu não sou luso-espano-ibero-sergipano-(coloque aqui o que quiser)-brasileiro. Assim como minha noiva não é nipo-brasileira. Ela nasceu aqui, então é brasileira. Como todo o resto de nós.

Os negros/pretos (ainda mantenho certa divergência aqui) que nasceram no Brasil são brasileiros. Não são afro-brasileiros. E por isso, eu nunca vou adotar o termo “afro-brasileiro”. Se o pai ou a mãe de um sujeito tiver nascido em algum país da África, podemos conversar sobre o uso, mas ainda assim, se ele adotou a cidadania brasileira, para mim ele é brasileiro, ponto.
Estas pessoas são meus conterrâneos, meus compatriotas, e não vou tratá-los (nem para o bem, nem para o mal) como “povo apartado”, só por terem uma raiz genética diferente da minha. Se nasceram aqui, são tão brasileiros como eu. E eu sou tão brasileiro quanto eles. Jus Solis para todos.

Aliás, essa construção tem sido pervertida nas últimas décadas, exatamente onde começou: Nos EUA. O que começou como valorização da “raça negra” americana vem sendo capturado por supremacistas brancos como uma forma de dizer que “há americanos e semi-americanos”. Então, nos EUA, a conversa de que Fulano é “african-american”, e que Sicrano é “asian-american”, e que Beltrana é “latin-american”, e até os índios ganharam o “native-americans”, tem ganhado a função de delimitar claramente “quem é quem no jogo”… Os “true americans” são chamados tão somente de… “Americans”. E isso não é bom para uma comunidade que quer superar o racismo, definitivamente. Aliás, muito dos que se auto-denominam “african-american”, mal sabem que não são…(link corrigido)

Assim, algo que começou como uma tentativa de recuperar o orgulho de uma raiz que sempre foi inferiorizada e estigmatizada no Ocidente de matriz europeia, hoje é usado para lembrar, veladamente (por ora), que há os “semi-americanos” e os “americanos por inteiro”. E eu não vou colaborar para que o mesmo aconteça com o Brasil, um país de sociedade já tão segregacionista, tão feita de guetos e grupos, tão egoísta. Abraçar essas terminologias vai no oposto do que eu sonho para este país: O dia em que vamos parar de brigar organizados em gangues comungando dos mesmos arquétipos; e passaremos a brigar por todos nós, juntos.

É por motivo extremamente parecido que não chamo “favela” de “comunidade“. Enquanto eu acho que os moradores da favela não têm que ter vergonha de sua situação, visto que a maior parte não teve seu direito constitucional à moradia respeitado pelo Estado, eu também penso que “comunidade” tenta normalizar uma situação que jamais poderia ser normal. Aquele modelo de habitação não é digno, e não deve ser normalizado, nem por quem mora lá, nem por quem está fora, sob o risco de todos se darem por satisfeitos com aquela vergonha nacional para o Estado e para a sociedade que permitem, de mãos dadas, que nossos compatriotas sigam morando naquelas condições.

Resta, então, o problema entre “preto” e “negro”. Os termos são, historicamente, o inverso do caso “black” e “nigger”, nos EUA. Historicamente, “preto” foi usado, no Brasil, como ofensa. A infame expressão “serviço de preto” não seria refraseada como “serviço de negro”. Assim, sinto que estou fazendo “algo errado” ao chamar alguém que tem a pele da cor preta de “preto”. Mas, também preciso me lembrar que, originalmente, “negro” era um termo pejorativo quando foi usado por aqui, no início da escravidão na nossa história .

O costume é fator determinante para uma língua viva como o Português e não posso ignorar que todos estamos acostumados com “negro” como a forma “correta” de nominar as pessoas com pele escura.

Esquecendo o aspecto histórico, o IBGE (e todas as demais instituições que fazem estudos demográficos) “acertadamente” (de um prisma linguístico e “frio”) fala em “pretos e pardos”. E “preto” é tecnicamente perfeito como nome (substantivo) da cor de pele; porque “negro” é um adjetivo e não o nome de uma cor. Eu sou branco (dentro do Brasil, claro) e Fulano é preto. Perfeito.
Porque se Fulano é “negro”, então eu preciso ser “alvo”… E isso seria bem bizarro.

Assim, fico dividido entre abraçar, desmistificar e corrigir um erro histórico, adotando o termo “preto” para pessoas com alta melanina e uma raiz genética mais ancorada em povos africanos do que a minha; ou, posso manter o “negro” que a própria comunidade brasileira abraçou em sua cultura (exemplos básicos: Raça Negra, Negritude Jr., e por aí vai), além de tantos poetas e pensadores que usaram o termo “negro” em poemas e contos enaltecendo o sofrido povo africano escravizado, ainda nas épocas de colônia do Brasil… O termo, sinceramente, não importa por si… O seu uso e entonação determinam a ofensa, a meu ver.

Por fim, vamos à história da “raça negra”: Não existe “raça negra”. Ponto. A raça é uma só: Raça humana. O DNA de pretos, brancos, asiáticos, latinos, europeus(…) é idêntico, exceção pelas partes em que se determinam cor dos olhos, tipo de cabelo, cor de pele, altura(…). Mas, somos á mesma espécie. A mesma raça. E nossos filhotinhos (quando frutos da miscigenação) 100% funcionais (biologicamente falando) são a maior prova empírica desse fato.

Eu vou tentar (mas, confesso me sentir um pouco desconfortável) adotar o termo “preto” ao longo do texto. O objetivo é naturalizar o uso, e combater o tom pejorativo. Veremos se vai dar certo.

A fundação

Há um problema de escopo. A atividade policial não é uniforme, nem mesmo em um Estado falsamente federativo como o nosso Brasil (onde há baixa independência dos estados-membros). Alguns locais partem de uma polícia metropolitana em sua forma de atuar, enquanto outros apostam numa polícia comunitária (fundada no profundo conhecimento de um bairro ou parte dele), e as regiões da dimensão de São Paulo acabam adotando um misto de experiências e roteiros para tentar chegar num denominador comum; mas, na prática, “policiamento” é sempre um tema de difícil concepção e mais difícil (ainda) implementação e gestão. Sempre desemboca no controle de um cidadão sobre outro e isto é sempre conflituoso.

Algumas pessoas, ao comentar “Segurança Pública” (que não é só “polícia”, espero que você saiba disso), acabam falando em tom professoral sobre o que não entendem em absoluto; o que não é novidade em nenhum tema, depois da Internet.
Como exemplo desse completo despreparo, cito o fato de que combater a criminalidade de roubo a celulares em nada tem a ver com combater crimes contra a vida (o homicídio sendo o mais comum), ou o tráfico de drogas; só para citar alguns exemplos.
Porém, grande parte dos que se propõem ao debate, incluindo alguns “especialistas”, em meios de comunicação, nunca deixa claro sobre o que está tratando ao falar em “Segurança Pública”.
O problema é a falta de supressão à atividade criminosa? É a baixa qualidade investigativa? É o alto número de homicídios? Ou é o roubo de cargas? Cada um desses temas tem um universo solo de conceitos, fatores, problemas, e não podem ser tratados da mesma forma; se você quer que der certo… Claro

Todos querem mais segurança e isso faz todo sentido, óbvio, mas, segurança contra o que? Nosso patrimônio é resultado, por vezes, de uma vida de trabalho duro. Mas, a morte é o único evento na existência humana para o qual não temos remédio (ainda). E se você mora no Brasil, onde os números anuais de mortes violentas são piores do que os do Iraque pós-2003 (sem exageros, só pesquisar; já tratei disso no passado, mas antes deste blog), “morte violenta” é algo que deveria te preocupar, como cidadão.
Para a maioria dos cidadãos, se fosse possível, cada rua de São Paulo (e do país) teria um tanque de guerra com scanners térmicos e batedores de plantão. O fato de que isso custaria uma fortuna aos cofres e, consequentemente, aos contribuintes (nós), é coletivamente ignorado, todavia.

No fim, a maioria de nós acaba achando que “Segurança Pública” é como um item de prateleira de mercado… Se você quer mais dela é só “comprar mais”… Mais policias, mais carros, mais armas, mais tudo. Obviamente, esse é um entendimento equivocado do tema.

Para caminhar para algum lugar, é preciso se definir o “conjunto-problema”, pois, ao discutir genericamente, acabamos presos em generalizações ou suavizações, que explicam pouco ou nada.

A Polícia que melhor conheço é, obviamente, a Paulista.

A organização da polícia brasileira é complexa (novidade por aqui [dica: sarcasmo]).

Temos a polícia judiciária (Polícia Civil), responsável, originariamente, por alimentar os processos da Justiça Brasileira contra os cidadãos que infringem a lei; temos a polícia ostensiva (Polícia Militar), originariamente, cuidando do espaço público e tentando prevenir/suprimir a atividade criminosa, à priori, pela própria presença; e, temos a polícia de jurisdição nacional/federal, a Polícia Federal, que é uma polícia proeminentemente judiciária (focada nos crimes contra a União e os interestaduais), mas que também tem ações ostensivas nas fronteias (especialmente em portos, aeroportos, entrepostos em fronteiras secas…) e com operações táticas visando coibir e atacar o contrabando internacional dos mais variados tipos e naturezas, além de ações contra associações criminosas nacionais e transnacionais. Ainda temos GCMs, IBAMA, PRF, Agentes da RFB e tantas outras organizações com poder de polícia… Mas, fiquemos assim…

Focarei na polícia que tem o maior número de queixas por violência policial: A PM.

A PMESP tem sua origem nas primeiras décadas do Brasil Império, período que começa com a Independência de Portugal, em 1822, e termina com a Proclamação da República em 1889 (via um golpe contra o então Imperador, Pedro II; este período pós-império, que veio a ser chamado de “República Velha”, e que termina na Revolução de 1930 (outro golpe, agora, contra o Presidente Washington Luis e, também, o eleito Presidente Julio Prestes que jamais chegou a tomar posse, tendo seu cargo entregue a Getúlio Vargas pela conspiração mineira-gaúcha-paraibana)… Revolução de 30 que motivou a Revolução de 1932, que comemoramos no último 9 de julho, em São Paulo, e foi contra um governo de métodos ditatoriais de Getúlio, cobrando a elaboração da nova Constituição [a anterior, de 1891, foi extinta pelo regime de Getúlio], finalmente promulgada em 1934)…

Parece-me que a primeira lição a aprender aqui é que, na nossa história, a Polícia nunca dependeu da estabilidade institucional do Império, da República, ou de seja lá qual fosse o sistema político, para existir. Embora a Polícia exista para manter um regime legal que uma dada sociedade edificou, durante todos os golpes e mudanças, a Polícia brasileira ficou do lado que parecia “ter mais corpo” (o lado vitorioso).

Sua missão, bem distante do “servir e proteger” – que é um conceito absolutamente moderno de Polícia (e mundialmente inexistente no grosso do século XIX para trás) – era muito mais ligada à ideia de atender aos anseios governistas de suprimir qualquer incidente desinteressante às metas do governante. E embora isso não seja uma exclusividade da Polícia brasileira, o que parece ter havido por aqui é que ela, enquanto instituição, jamais evoluiu de “Guarda a serviço do ‘dono’ do país/estado”, para um modelo de instituição atemporal e apolítica; este último adjetivo, utilizado no sentido de que ela exista e tenha uma missão que não depende da política momentânea de alguém que veio para o Poder, mas vai passar, como todos os outros; pois, ela, a Polícia, não passa e não pode agir ao sabor dos tempos.

O modelo de policiamento ostensivo que temos no Brasil é fruto da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro.

Dom João VI cria, em 1809, a “Divisão Militar da Guarda Real de Polícia”, copiando o modelo lisboense para seu novo lar fluminense; tal divisão seria o embrião, mais tarde, da Polícia Militar Fluminense. O modelo de Lisboa e de Porto, que adotaram por lá a “Guarda Real de Polícia”, também não é inédito. Pelo contrário, é fortemente inspirado na francesa Gendarmaria (uma reformada Marechausée [formação primordial de marechais que protegiam o território francês] com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, às portas da revolução francesa – e todos seus efeitos sociais), e que protegia os comerciantes e delegações nas estradas Reais francesas contra saqueadores e bárbaros – sendo uma das primeiras formações no Velho Mundo com homens armados por ordem Real, especialmente para a função de proteger uma dada sociedade (Gens d`Armes, de onde vem “Gendarmaria”, significa, literalmente, “Homens armados”).

Com Independência da colônia brasileira, em 1822, a Guarda Real se desorganizou (já que a formação da Guarda era esmagadoramente de portugueses, fiéis ao trono). A Regência Provisória organiza, então, em 1831, o corpo de Guarda Municipal Provisória, convertida, pouco depois, para “Corpo de Guardas Municipais Permanentes da Corte” por força de decreto imperial, sob a Regência de Feijó (sim; aquele Regente); lei que também autorizava o mesmo nas demais províncias do Império brasileiro. Estava pavimentado o caminho para a Força Pública Paulista.

Já no fim de 1831, a Assembleia Provincial de São Paulo, sob a tutela do Presidente da Província, Brigadeiro (Rafael) Tobias Aguiar (o mesmo que empresta as iniciais às companhias do 1º Batalhão de Choque, a ROTA – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) funda o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, com cem praças à pé e trinta praças a cavalo. “Os 130 de 31”, diriam os aficionados por história militar nacional…

Em 1871, com o advento do “Inquérito Policial” como parte essencial da separação entre “Polícia e Justiça”, separa-se aquela Guarda Permanente em 3: Brigada Policial, Corpo de Guardas Cívicos, e Corpo de Guardas Cívicos do Interior. Muitas outras divisões e junções ocorreriam até que, em 1970, a Força Pública (que reagrupou a tripla divisão, já citada) se fundiria com a Guarda Civil, originando a denominação atual de “Polícia Militar” que conhecemos. Houve mais mudanças, mas são menos relevantes ao enredo.

A segunda lição, aqui, é que a origem da “Polícia Militar” não tem a ver com o golpe de 64, a truculência, a barbárie, e tudo o que se sucedeu nos últimos terríveis 20 anos de ditadura do século XX brasileiro. Sua origem militar remonta à sua essência de Guarda Real, ainda em épocas de Império.
Não estou tentando “tapar o Sol com a peneira” aqui, e dizer que o militarismo os torna mais humanos, pois, o militarismo é, essencialmente, o adestramento do “bicho-homem” em algo que suporte condições desumanas, como requisito para que este possa restaurar uma dada ordem (boa ou má), pela força e pela violência, em momentos de ruína social.

Mas, isso é tema para mais tarde. O que me importa, aqui, é dizer que eu não entendo que a Polícia Militar é violenta por descender da polícia da Ditadura; ela esteve lá, enquanto Polícia do Estado Totalitário, e tem seus episódios de vergonha pelo terror estatal que ajudou a perpetrar (como também deveriam ter vergonha os terroristas pró-comunismo, organizados em grupos como o MR-8, COLINA, MOLIPO(…), e todas as formações paramilitares em prol de regimes ditatoriais aos moldes do soviético e chinês, naquela época).

A violência não é uma característica exclusiva das Polícias Militares brasileiras, ou das ostensivas mundo a fora. Porém, o fato de que é a Polícia Militar a encarregada de fazer o patrulhamento ostensivo a torna em permanente contato com a população, e aí é onde a violência policial mostra sua pior face: Nas ruas e becos escuros de um país com séculos de atraso em sua infraestrutura e dignificação da moradia (ainda que esta esteja no art. 6º da Constituição de 88, como direito de todos nós), problema que, de modo algum, é exclusivo de São Paulo. Este estado é o 2º melhor (dados de 2016), atrás apenas do Distrito Federal, no IDSM(índice de desenvolvimento sustentável para municípios) da FGV, com nota “geral” em 5,71 e obtendo a maior nota para a composição “habitação” (5,73) do mesmo índice. O terceiro mais bem qualificado no IDSM, o Rio Grande do Sul, vem com nota geral em 5,55 e habitação em 5,40…

Quando temos medo de quem deveria nos proteger…

Uma das coisas que mais me entristece nesse assunto é ter de dar substancial razão à crítica daqueles que dizem que têm mais medo do highlight (para os mais antigos: o giroflex) do que do bandido.
Enquanto o exagero da fala não me escapa (e demonstrarei, na parte 2), eu admito que o agente policial contemporâneo tem agido com mais violência e imprevisibilidade do que em outros momentos.
Tempos atrás, eu faria pouco caso e até atacaria (no campo da discussão, claro) a pessoa que dissesse a frase de abertura desta seção. Usaria um velho bordão no qual eu sempre acreditei (mas, já não acredito mais):

“Quem tem problema com a Polícia, tem problema com a Lei”…

E eu sempre me considerei “do lado da lei”, então… Bem, voltaremos nisso, daqui a pouco.

Eu dou razão a quem tem medo porque, eu entendo que a atuação da PM na periferia é completamente distinta da atuação desta mesma PM em bairros de alto padrão. Logo, o local em que você mora, determina o tipo de tratamento e truculência que você sofrerá, e este é um fato.

Como não citar o patético vídeo protagonizado por um PM e um “novo rico”, em Alphaville?

Este vídeo é prova cabal de que se você mora numa periferia, será tratado de um jeito, e se mora em um bairro rico, será tratado de outro. E isso é tudo, menos Justiça.

E, se você é “pró-Polícia”, talvez me pergunte, já se exaltando, “e queria que o Policial fizesse o que?”.
Bem, ele tinha duas rotas:

a) Partir para cima do agressor, prende-lo à força, após este se negar a cumprir ordem Policial (legítima e legal, pois, trata-se de flagrante, e dispensa o mandado); ou
b) Chamar o reforço, cercar a residência, e esperar que o agressor ceda, pelo cansaço. O que é mais inteligente e menos arriscado do que a opção “a” (que segue válida, dentro do conceito do uso moderado e progressivo da força, constante nos manuais de qualquer Polícia do mundo.).

Agora, é mandatório notar que ele nunca cogitou a opção “c”, utilizada frequentemente nas periferias mais esquecidas de SP (ZS [Grajaú, Jardim Ângela] e ZN [Brasilândia] sabem bem do que falo, a seguir):
c) Invadir a casa, sem identificação no fardamento e cobrindo o rosto com touca-ninja para não ser reconhecido, com a arma na mão e apontado para o agressor, enquanto o parceiro usa munição de elastômero (“bala de borracha”), cassetete, ou spray-de-pimenta para derrubar o “marginal” no chão, para algemá-lo e encher ele de porrada na rota para a Delegacia, onde vai ser apontado no B.O. que o suspeito “caiu da escada”, ou “se debateu” (e se esse rico, nojento e desprezível, não age como marginal, eu já não sei o sentido das palavras). E isto é “o final feliz” na periferia, porque, dependendo da falta de humor do agente, a munição real será utilizada.
Se a mulher com a criança no colo falasse alguma coisa do tipo “deixa ele!”, espero que o agente considerasse tratá-la com o mesmo respeito que usa na períferia, com a mulher dos suspeitos e dizer “cala a porra da boca, sua vagabunda imunda”.

E tem um lado importante aqui: O cabo, na filmagem, é conhecido como alguém extremamente pacífico e paciente. E isso é ótimo para ele e para a comunidade que ele serve. E eu não queria que ele fosse o monstro do paragráfo anterior. O que me irrita é saber que se ele trabalhasse em outro bairro, dificilmente ele manteria esse perfil.
Assim que o policial é transferido para uma região nobre, vindo de uma periferia, ele já é advertido pelo “01” que “as coisas ali na área são diferentes”.

No fim do dia, eu realmente entendo quem diz ter medo da Polícia. Eu não tenho, eu a conheço bem, e eu ando em bairros relativamente seguros e tranquilos de São Paulo. Mas, para quem não teve escolha senão morar nas periferias, a realidade é muito distinta da minha. Eu vim de uma periferia e eu sei que as coisas mudam.

Outro ponto que não posso negar é o sentimento de impotência do cidadão comum. Se um bandido te faz mal, você disca 190.
Mas, para quem você disca se o “190” te faz mal? Para a Corregedoria? E você imagina que eles vão chegar em tempo de abordar os maus policiais em flagrante? Ou você vai sofrer do o trauma do abuso policial e terá de torcer para sair vivo dessa (o jovem Guilherme Guedes, de apenas 15 anos, não saiu do seu encontro com o Sargento da PM, Adriano de Campos), para, se não estiver morrendo de medo de represálias, fazer uma denuncia que provavelmente não dará resultado (você se lembra do número da viatura, ou do nome e ranking do policial?)? Sabemos as respostas.

A violência policial com fundo racial

A violência policial é um problema muito atual nas Américas (e eu estou fazendo um esforço enorme para ter um foco “pequeno”, porque não posso permitir um escopo tão grande como “a função da atividade policial, no mundo” – por uma questão de evitar absurdos, e não escrever sem fundamentação).

O caso Floyd, nos EUA, pode custar a corrida presidencial a Donald Trump, no fim deste ano. E enquanto o simpático Garotão-Laranja já vinha capengando depois de todas as cretinices que aprontou – como sugerir que acometidos pela COVID-19 considerassem injetar cloro nas veias; e sempre fazendo Escola, com seu pupilo (ou seria seu “puppy”?) brasileiro querendo competir pelo pódio da asneira – definitivamente, a morte de George Floyd foi o caminhão dos Bombeiros jogando gasolina ao invés de água, numa fogueira que já vinha ardendo muito bem, obrigado.

O caso Floyd não é um episódio isolado (quem dera…) e a violência policial, especialmente contra pretos, é tema recorrente na sociedade estado-unidense. Lembrando de outro preto, morto por enforcamento – tal como George Floyd – Eric Garner, em 2014, que também morreu “na forca policial” (eu disse forca, sem cedilha, mesmo).
E aqui, faço uma pausa, esquecendo toda a tragédia nessas mortes, para me apegar a um problema técnico: Os agentes policiais envolvidos foram tão mal treinados (ou maldosos; você escolhe) que mataram as vítimas através de sufocamento ( = falta de ar), quando as técnicas usadas são técnicas de estrangulamento.
Para quem não entende a diferença, técnicas de estrangulamento visam cortar a corrente sanguínea na região do pescoço através da pressão aplicada sobre as artérias, levando a vítima da técnica ao desmaio em pouquíssimos segundos. E não os ~9 minutos de asfixia para Floyd, ou as 11 vezes em que Eric Garner disse “I can’t breathe… Esses dois homens pretos morreram, literalmente, enforcados. A fonte da afirmação sobre a técnica sou eu mesmo, pois, eu treinei (não só) para isso, por alguns anos. A fonte sobre a natureza das mortes é pública. Basta procurar por “coroner’s report” + o nome das duas vítimas de execução policial.

Coincidência macabra: Ambos morreram avisando os agentes policiais, com as mesmíssimas palavras:” I can’t breathe” (“eu não consigo respirar”). É claro que é a frase óbvia a se dizer quando não se consegue inalar o ar [que é diferente de oxigênio, só pra constar, viu Datena…]); porém, é mais uma coincidência macabra da forma da violência policial especialmente contra a população preta nos EUA; isso é fato para mim. A agonia de morrer lentamente enquanto luta para tragar o ar é muito maior do que levar um tiro na nuca; e embora isso não seja um campeonato da morte mais horrível, eu sei qual dos dois fins eu detesto mais.

Outro detalhe que só piora tudo: No caso de Garner, a ocorrência se deu no Estado de Nova York, onde a Polícia havia banido o estrangulamento como técnica de retenção de suspeitos desde 1993.

Modo geral, eu entendo e defendo que a legitimidade de decidir se um(a) cidadã(o) é culpado(a) ou inocente cabe ao juiz (ou um júri), com base nas provas e testemunhos produzidos pela investigação policial, e apresentados através do Ministério Público; e não cabe a tarefa de condenar ou inocentar à opinião pública, à vizinhança, ao jornal, aos programas de auditório, e muito menos a um blog, escrito por um qualquer.
Isso tudo dito, como confiar que se “fez Justiça” quando esta se alimenta de inquéritos policiais feitos por colegas de profissão do acusado (que nem precisam ser amigos do acusado; basta pensarem que amanhã, podem ser eles no banco dos réus), e com juris quase sempre compostos, desproporcionalmente, por brancos? No caso de Garner, o policial foi inocentado. No caso de Floyd, parece-me que também será (os agentes tiveram a fiança, caríssima, paga por “crowdfunding“, o que significa que muita gente – que deve vir a compor o juri – concorda com a atitude dos policiais; e eles estão livres para sumir com provas e ameaçar testemunhas)… Igualmente, nos dois casos, os pretos jazem a 7 palmos de profundidade na terra. Pelo menos, o tratamento é homogêneo, não é mesmo?

Diferentemente dos EUA, onde apenas 13.4% dos mais de 350 milhões de habitantes são pretos, o Brasil tem uma demografia bem diferente: Dos seus quase 211 milhões de habitantes, meu país tem aproximadamente 51.14% de pardos e pretos.
Chama-me a atenção que na composição desta porcentagem, a maior parte se declare “parda” (43.42%), com uma minoria dizendo-se preta (7.52%).
Claro que isso tem forte reflexo da nossa miscigenação intrínseca, quase inexistente nos EUA – ou, no resto do mundo, para ser justo com o Brasil. Mas, também há o fato de que, na realidade, muitas pessoas querem ser “qualquer coisa” menos pretos (ou “negros”). O preconceito racial também dá suas caras através dos censos nacionais.

Então, poderíamos dizer que, no Brasil, a violência policial ocorre menos voltada à cor da pele? Não é tão simples assim.

O Atlas da violência – obra indispensável para quem quiser discutir, com qualidade, o tema “Segurança Pública” no Brasil – compilado pelo IPEA, nos mostra que dos 60.559 (faço questão de escrever por extenso: sessenta mil, quinhentos e cinquenta e nove) homicídios contra o sexo masculino, no ano de 2017, 46.217 (quarenta e seis mil, duzentos e dezessete) mortos eram homens pretos. Para mulheres, não melhora: 4.936 (quatro mil, novecentas e trinta e seis) mulheres mortas em 2017. 3.288 (três mil, duzentas e oitenta e oito) eram pretas.

Quer dizer que do universo de homens mortos de forma violenta, em todo o ano de 2017, nos trágicos números de guerra brasileiros, 76.32% eram pretos. No número das mulheres, das quase 5 mil, 66.61% eram pretas.

Se esses números não fazem soar nem um singelo alarme de que há algo perturbador acontecendo com os brasileiros de cor preta, eu lamento informar, mas você perdeu sua humanidade em algum lugar da sua história. Torço para que, um dia, você a reencontre. E não: Como falarei a seguir, não estou imputando o quadro somente à Polícia.

São Paulo tem números bem menores de homicídios (como o Sudeste como um todo; e faz sentido, dada a menor população [comparando com o país] e o maior IDH) e quando usamos métodos estatísticos de comparação, as proporções de mortos “não-pretos” vs. pretos melhoram bastante (no número geral, o Brasil tem 31,59 mortos por 100 mil habitantes, e São Paulo tem 10,27 mortos por 100 mil habitantes – quer dizer que a cada 100 mil brasileiros, quase 32 serão assassinados; e quase 10,5 a cada 100 mil paulistas):

Em São Paulo, dos 4.134 homens mortos por violência em 2017, 2.002 eram pretos. Significa que 48.43% dos mortos eram pretos. Mas não dá para “bater palmas” (nunca daria, só para deixar claro). Como demonstro a seguir, “pretos e pardos” representam, grosso modo, 30% da população paulista e são, praticamente, 50% das mortes violentas do Estado. A situação para esta cor de pele segue, portanto, perversa.

Para mulheres, o número é mais condizente em sua distribuição vs. demografia: Das 495 mulheres mortas por homicídio “simples”, em 2017, 166 eram negras (33.54%). Novamente: Este número deveria ser zero. Mas, ao menos, ser mulher e negra não aumenta o risco do homicídio sem qualificadoras (mas, aumenta outros riscos como da violência doméstica, feminicídio; e não é meu foco, hoje).

No entanto, é óbvio para mim, mas surpreendente para outros, que a PM não responde pelo total desses números de mortes. Na realidade, como veremos a seguir, em São Paulo, a cada 3 mortes, uma é causada pela Polícia Militar. Assim, de fato, ser preto no Brasil, é correr muito mais risco de morte, mesmo no Sudeste, onde a coisa está melhor.

Mas, esta não é uma violência causada somente pelo braço armado do Estado contra os pretos. Há uma guerra entre facções e criminosos, matando mais pretos do que brancos (porque há mais pretos em regiões perigosas, do que brancos) e a PM é apenas a menor parte disso. Não significa “passar pano” e dizer que a Polícia mata pouco, ao matar um terço dos mortos por violência, no meu Estado.
Idealmente, ela deveria matar zero; ela não é paga para matar, mas para garantir a Lei Brasileira, e a Lei Brasileira diz, via sua Lei Maior, que a vida é um direito inviolável (caput do art. 5º/CF).

Contudo, também significa dizer que a violência entre os moradores de periferia (onde a maioria é preta ou parda), mata mais pretos do que o braço punitivo do Estado mata. O maior inimigo do preto é a violência das gangues na comunidade em que vive, estatisticamente falando.
A Polícia vem em segundo lugar. Mesmo que este fato incomode alguns que procuram, só e somente só o viés de confirmação de suas crenças e preconceitos (no caso, contra a Polícia). E claro: A violência epidêmica dessas regiões é culpa, sim, do Estado (mas não da Polícia, que só vai lá quando todo o resto falhou; a saber: Família, moradia digna, educação de qualidade, oportunidade de emprego digno e de rendimento compatível com o custo de vida…).

Aqui, não tem espaço para opinião: Os números são esses, o IPEA merece todo o respeito, e se você não respeita a seriedade da instituição e de seus números (excluindo eventuais equívocos que eu tenha cometido ao compilar os resultados, óbvio), o problema e a cegueira são só seus e não do IPEA (ou meus). Pode parecer truculência gratuita com a opinião alheia, mas eu já disse que não vou mais tolerar os intolerantes, e negar estatísticas do IPEA (acreditado por inúmeras instituições nacionais e estrangeiras) é como negar a própria realidade.

Por que eu queria ser Militar?

Eu queria ser Militar. Não tinha dúvidas durante toda a minha adolescência. Preparei-me para isso, por anos.

Eu tentei – e fui um fracasso – ingressar na AFA, em Pirassununga: 10 vagas para piloto, para os COMARes do Brasil todo (só em São Paulo, o Anhembi estava lotado de candidatos em suas arquibancadas). Bem… Eu me achava preparado… Mas, não era tão bom assim… O nível da prova não deixa muito a desejar na comparação ao que eles exigem de um cadete ingressante no ITA… As questões de física (matéria em que sempre fui bem, no Ensino Médio) me davam a impressão de que eu já era um piloto treinado. E na prova de inglês, analisamos, sintaticamente, a oração “Ave Maria”; em inglês… Arcaico… E isso não é piada da minha parte.

Ciente das minhas limitações e ciente de que eu não tinha chance contra os filhos de militares de carreira da FAB, estudando em colégios preparatórios de alto nível desde o início da vida (enquanto eu vinha sempre de escolas periféricas), percebi que essa janela estava fechada desde o dia em que nasci.

Mas, existia uma segunda chance para o sonho da farda. Se eu não poderia estar entre os melhores da FAB, eu poderia estar entre os melhores da PMESP. “A barra baixaria”, mas, como explico a seguir, só um pouco.

Assim, tracei o plano e calculei onde eu chegaria, o mais rápido possível: Eu estaria na 2ª Companhia do 4º Batalhão de Policiamento de Choque de São Paulo; que abriga os grupos de elite da PMESP.
Sendo a 1ª companhia, o COE (Comando & Operações Especiais), e a 2ª companhia, o GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais). A primeira, especializada em operações em áreas florestais e “selvagens” do estado; a segunda, em operações especiais em área urbana.

Claro, eu tinha um plano B: Se minha nota em Barro Branco não fosse suficiente, eu aceitava ficar no GRPAe, grupamento responsável pelos “Águias”.

Como se pode ver, sempre tive metas simples. Sonhos contidos e de fácil completude. Yeah, right

Ser policial, para mim, era uma questão, àquela altura, de excelência e vocação.

Excelência porque eu não me imaginava patrulhando ruas, diariamente. Eu queria estar nos grupos que solucionavam o “insolucionável” (perdão pelo neologismo). E não é fazer pouco caso com quem patrulha ruas, porque, é óbvio que este é o trabalho mais importante de qualquer Polícia que quer evitar o crime. A violência do cotidiano não é a do tipo que precisa de tropas de elite. Mas, o que eu queria fazer comigo mesmo era me submeter ao rigor absoluto de um dos treinamentos diários e permanentes, mais difíceis do mundo.

Eu queria estar “pronto para a Guerra”, por 30 anos da minha vida, mesmo que a Guerra jamais viesse. Tente se lembrar das últimas três vezes em que você viu o GATE trabalhando. Vou falar a última vez que lembro de vulto do GATE na mídia: O caso Eloá. E foi uma tragédia. Tudo que poderia dar errado “no teatro de operações especiais”, deu. E os culpados são os membros daquele grupo que eu queria integrar, não obstante eu entenda a argumentação de que a mídia muito atrapalhou. Mas, sinceramente, pensando com mentalidade de militar: “Desculpas são para quem não tem competência”. Assim eu pensava, quando me imaginava operando num grupamento de Táticas Especiais. Eu treinaria ao ponto de estar sempre pronto para o inesperado, o absurdo, ou inconcebível…

Ler esse último parágrafo, tantos anos depois, é um pouco constrangedor; sou obrigado a confessar.
Um dos homens mais brilhantes em termos de registros militares, o atirador de elite, Chris Kyle, um Navy Seal, membro da elite (da elite) dos Estados Unidos, foi morto ao confiar em um colega de farda ensandecido.
Para o Rodrigo de ~18 anos, faltou ao Kyle prever o imprevisível. Para o Rodrigo de 34, a vida é pura contingência e a exceção é, de fato, quando ela segue seus planos. Você prevê e planeja para tanto quanto pode, mas a regra é que a vida sempre pode mais do que você pensa ou planeja. Para o bem e para o mal.

Aliás, o GATE surge de um incidente similar ao de Eloá, em fevereiro de 1987, quando a pequena Tabata (com apenas 3 meses) é feita refém por ex-estudantes do ITA, fora de si, (gente muito inteligente, ironicamente; e não os temíveis marginais do tráfico de drogas que pairam no imaginário coletivo), ameaçam matá-la, em Mogi das Cruzes. O teatro de operações termina com os criminosos mortos e a menina salva, apesar de um ferimento de faca causado pelos criminosos. Depois disso, o GATE é considerado uma necessidade indiscutível.

Bem, eu queria ser parte desta Elite. Precisão, controle sobre o corpo, sobre a máquina, sobre as emoções, sobre a situação… E atividade policial de elite era a minha rota escolhida. Esqueça as forças especiais federais. Várias estão sucateadas pelo desprestígio do próprio Comando que está mais preocupado em investir naquilo em que pode faturar (seja faturamento político ou mesmo monetário).

O GATE – e, em alguma medida, o COE – possui equipamentos muito melhores do que boa parte das Forças Especiais brasileiras. É uma tropa menor, limitada quanto à jurisdição, e no estado mais rico da nação. É até óbvio que seja mais bem equipada, no comparativo.

Aliás, entrar no GATE é como entrar na Engenharia da NASA: No mundo, só outros 6 cursos de formação de Policias Especiais são considerados tão difíceis quanto o do GATE: BOPE (no RJ), GIGN(França), GSG9(Alemanha), SWAT(especialmente a mais antiga, de L.A.), LE RAID(França), OMON(Rússia). Chamo a atenção de que dois dos sete cursos estão no BR (GATE e BOPE). Isso também fala do tipo de violência que se espera combater.

E, então, a vocação: Acho importante discutir o caráter um tanto quanto religioso da palavra “vocação”.

Vocação” descende do termo em latim, “vocare”, que significa “chamar”. Portanto, quem tem vocação, “atende ao chamado”. Ninguém diz que você está pronto para aquilo. Você simplesmente sabe que está. Você simplesmente sabe que aquele é o seu chamamento; o seu lugar…

A vocação de ser Padre, de ser Professor, de ser Médico, de ser Policial… Perceba: É totalmente possível se habilitar professor fazendo um curso online de 2 ou 3 anos. Isso nunca fará de você um Professor vocacionado. O mesmo para as outras profissões que requerem vocação. Nem todas requerem. Mas, em boa medida, é fácil notar quando as pessoas têm vocação para uma área ou não. Aquele Professor fazendo milagres em uma escola em frangalhos (o que é uma realidade lastimável e comum, acrescento), na periferia de algum canto abandonado deste país; ele (ou ela) tem vocação.

E eu sentia a vocação. Eu sentia o chamado para perseguir uma perfeição quase desumana, me submeter a uma carga brutal de treinos e torturas psicológicas (porque fazem parte do treinamento), visando me tornar pronto para o trabalho que poucos podem realizar. Se fosse preciso perder o dedo para salvar a mão, é o que eu faria. Se meu colega de farda se tornasse uma ameaça, no meio da operação, eu faria o que fosse preciso para proteger o teatro de operações que me foi ordenado garantir.

Dou a você o direito de rir. Vai na fé. Eu ri ao reler o que escrevi. Mas, isso, aos 34 anos. Dos 11 aos 21 anos, isso foi uma certeza tão cristalina quanto a absoluta necessidade de inalar ar (e não “oxigênio”, relembro). Ainda tive uma recaída aos 27 anos. Mas, “quis a Contingência” encerrar essa fase para sempre (acertei praticamente todas as questões objetivas, mas, misteriosamente, minha redação teve a nota zerada – alegaram extravio de minha parte).

Se você me conhece ao vivo, hoje, deve ser ainda mais engraçado: “Como essa rolha de poço achou que seria parte da elite da polícia paulista?”… Entendo a crítica.
Mas, aos 20, eu era outra pessoa. Cheguei a atingir 15 barras pronadas e 40 abdominais-remador, em 1 minuto, cada. Corria, sem sofrer, os 3km em 12 minutos, e só desapontava na corrida de 50 metros: 8 segundos. Como eu disse, hoje eu me canso só de olhar para esses valores. Mas, esses eram meus números, ~15 anos atrás. A menor pontuação seria a corrida de 50 metros. No resto, eu ficaria com 80 ou 100 pontos (o máximo). E a parte escrita não era uma piada (na época, ainda era a FUVEST a fazer a admissão em Barro Branco e a VUNESP nos concursos de Praça) e a relação candidato-vaga para a Academia era absurda (“dava pau” em Medicina na USP, só para constar).
Mas, eu acreditava, sinceramente, que eu conseguiria ficar entre os 160. E, para minha meta, a nota de entrada não importava.
O que importava era a classificação na saída. Quanto mais perto do topo, melhor. O primeiro escolhe para onde vai, de acordo com as vagas disponíveis. E, depois, o segundo. E, então, o terceiro… Eu podia entrar em 160°, não me importava. Lá dentro, eu seria o Diabo. Esse era o plano…

Uma Polícia treinada para proteger ou para matar?

Vamos manter o escopo da análise em São Paulo.

São Paulo é um país. Tudo bem: Não é… Mas, poderia ser. Com seus mais de 44 milhões de habitantes, meu estado de origem “deixa no chinelo” muitos países conhecidos da Europa. Suécia (~10.2), Portugal (~10.28 mi), Bélgica (~11.46mi), Holanda (~17.28 mi). E briga com a Espanha (~46.9mi). Assim, considerar que a população de SP o habilita à categoria de país, não é exagero.

Em extensão territorial, a briga fica ainda melhor: Com seus quase ~248 mil km², o estado é maior que o Reino Unido inteiro (243 mil km²). E só para te lembrar: O Reino Unido contém a Grã-Bretanha, mais a Irlanda do Norte (que fica numa ilha à esquerda da anterior). E a Grã-Bretanha contém a Inglaterra, a Escócia e o País de Gales… Esse é o tamanho de SP.

A Polícia Militar do Estado de São Paulo é, atualmente, formada por mais ou menos 100 mil homens e mulheres, no entanto, o efetivo nas ruas é da ordem de ~80 mil policiais. O resto opera o administrativo da Força Pública; do RH ao treinamento, passando por centros de formação etc.. E não estou considerando os afastados do serviço por inúmeras razões.

Aproximadamente 64% são brancos. O que não está em desacordo com a demografia Paulista e não tem nada de errado (embora o jornalista tente dar este viés). Em São Paulo, “pretos e pardos” somavam, no Censo 2010, 30.5% dos 42 milhões de habitantes. Os brancos, por outro lado, atingiam 67.9% da população do estado. Em outras palavras, podemos até dizer que a distribuição de “etnias” dentro do efetivo policial reflete a realidade demográfica do estado.

Já, quando o assunto é gênero, a PMESP continua muito distante da realidade demográfica. Num levantamento de 2016, dentre os 100 mil policiais militares, não mais do que 15% eram do sexo feminino. E nada indica que houve mudança substancial nesse percentual. O estado de SP, no entanto, tem 51.33% de mulheres, para seus mais de 44 milhões de habitantes, hoje. Considerando o número de Coronéis na ativa (cerca de 60), apenas 3 são mulheres, de acordo com o relatório da própria PM, em 2011; o que também diz muito sobre o número de mulheres ingressando na Força.

creditos: PMESP ®2011
créditos: PMESP ®2011

69% dos policias nunca fizeram um curso superior (no universo de mulheres, 57% têm nível superior antes do ingresso na PM), além do próprio curso de formação policial que, hoje, é tido como Superior tecnólogo em Segurança Pública (grau concedido aos Praças [Soldado, Cabo, Sargento, Subtenente]), num curso integral que costuma durar 1 ano, a depender do momento da Secretaria de segurança pública – SSP (“momento” = pressa).

Por outro lado, Barro Branco, a Academia da PM Paulista, forma os Oficiais (Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel, Coronel), no grau de bacharelado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública. A carga integral do curso (com o primeiro ano em regime de internato e outros três anos) é suficiente para que o recém-formado em Barro Branco possa obter o bacharelado em Direito, cursando apenas mais um ano de estudos em uma Instituição de Ensino Superior comum. Não me recordo da fonte, mas, me lembro que o mesmo valia para o bacharelado em Administração.

Assim, é possível notar alguns abismos “logo na largada”: A formação dos Oficiais da PMESP é incomparável com a formação dada aos Praças. Os Oficiais saem com um repertório humano e acadêmico absurdamente superior ao dos Praças, ainda que haja os Oficiais medíocres, que apenas passam raspando pelas provas internas. Mesmo assim, há muita distância da formação recebida pelo melhor Praça para o Oficial minimamente aplicado.

O salário também. Enquanto o Soldado 2ª classe tem o salário-base em R$3.000 reais, o salário-base do 2º tenente (o primeiro ranking logo após os 4 anos de Academia) é na casa dos R$6.700. E pasme: São Paulo não tem, nem de longe, o melhor salário para suas Polícias. Só para humilhar com a pior “das minhas armas”, no Distrito Federal, Soldados 2ª classe da PM ganham o equivalente a 50% do salário de Policiais Federais (que está na casa dos R$11 mil) e vêm brigando, ao lado dos Policiais Civis, para equipararem o salário em 100% (“Todos são iguais perante a lei”… Certo… Só que não…), afirmando que eles patrulham a mesma população que a PF, por estarem no DF. Agora, basta Bolsonaro assinar para que isso possa ocorrer.

A questão é que, uma vez “na rua”, a atividade policial não se equaciona por essas diferenças de formação e salário. Pelo contrário: É óbvio que a proporção de Praças é muito maior do que a de Oficiais (como seria a proporção “funcionário/chefe”, em qualquer empresa). No entanto, esses indivíduos, preparados ou não, bem-remunerados ou não, atendem às ocorrências do “país” que é São Paulo, do mesmo modo. A sua experiência como cidadão (ou cidadã), ao ser abordado por uma viatura com Oficial presente pode vir a ser bem diferente da experiência com o veículo formado somente por Praças. E não tratemos das exceções, mas sim da regra, por aqui.

E é claro que cargos e salários não são justificativas para a deformação de caráter. E é claro que há Oficiais cometendo crimes, mesmo sendo relativamente bem pagos. E é claro que há Praças realizando um exemplar serviço de segurança pública à população paulista e visitantes do estado, respeitando a lei e os valores humanistas, como homens cheios de diplomas e títulos jamais o farão.

Mas, remeto-me à questão apresentada por um antigo blog da Folha, que me inspirou a fazer Direito e que, infelizmente, deixou de publicar conteúdo novo. O blog se chama “Para entender direito”. Era feito por profissionais da área Jurídica e voltado a treinar os jornalistas a entenderem “as regras do jogo” para prevenir que estes publicassem (muitos) absurdos, em matéria de Justiça e Direito. Pois bem, este blog, nos idos de 2000, publicou uma matéria falando sobre a questão da violência policial, histórica e, em algum grau, crônica, na nossa sociedade. Já nos “finalmentes“, o artigo assim dizia: “Se pagar bem o policial não é certeza de que este agirá dentro da lei, pagá-lo mal é certeza do incentivo à corrupção e ao recrutamento de baixa qualidade”.

Pense bem nisso, agora: Se você tem “tutano” nessa sua cabeça, o suficiente para ganhar bem mais que um soldado, ou, até mesmo, ganhar mais do que um tenente, qual é a probabilidade de você vestir uma farda, trabalhar em uma organização de valores rígidos e dogmas, por vezes, sem propósito real?
E que tal vestir um colete a prova de balas em uma viatura que não tem ar-condicionado, no verão paulista de Ribeirão Preto? Blindagem da viatura? Você está louco. Poucas viaturas, destinadas a grupamentos de choque (como a ROTA) devem começar a ter blindagem parcial no futuro, mas a licitação, com a crise econômica, já foi suspensa – sabe-se lá quando retomarão.

E, que tal enfrentar a organização criminosa mais perigosa do país, com armamentos assustadores, como fuzis e metralhadoras anticarro (calibres FN 5.7×28, por exemplo) e antiaéreas (calibres .30 e .50)? E mísseis (como o Stinger que estavam negociando, ou aquele aprendido em 2005)? Bem, se você me disser que você quer essa vida, mesmo assim… Eu acho que você é mais louco do que eu era.

Porque, diferente do “eu, jovem”, você assumiu que sabe da sua competência para ganhar mais do que qualquer cargo inicial da Polícia Militar paulista. Além de ter seus fins de semana (ou quase todos), as madrugadas e tudo fora das 40 ou 44h semanais, só para você. E, ainda assim, você prefere a organização anacrônica, cheia de ritos “religiosos” sem justificativa prática, e que vai te colocar na linha de frente do arsenal que sabemos que o crime tem (e fico pensando sobre o que não sabemos)…

Como você imagina que são treinados os policiais que passaram para o cargo de soldado segunda classe, com salario inicial por volta dos 3 mil reais/mês e recrutados das camadas da população com menor instrução formal e, geralmente, da mesma periferia em que a maior parte das pessoas que sempre foram de classe média, temem passar perto?

Você imagina que, numa dada semana do curso de formação, eles têm uma longa reflexão sobre a atividade policial, sobre a necessidade de lidar com uma sociedade conflagrada, ignorante e com conceitos sociais rudimentares, com tensões sociais históricas, de uma perversidade ainda maior, justamente contra aqueles tidos mais fracos (as crianças, os idosos, as mulheres), e um descaso sistemático e histórico do Estado de Direito?

Ou, talvez, você imagine que eles recebam uma grande mesa redonda para discutir porquê o Estado brasileiro deixa a favela ser criada, crescer, crescer mais, até explodir em ódio quando um morador de lá é baleado pela Polícia (sendo criminoso, ou não), ao invés de garantir que o “déficit habitacional” (termo polêmico) seja de ZERO? Dica “de grátis”: Sempre foi possível zerar o déficit. Não acredite em quem te diz o contrário. Mas não é tema pra agora.

Ou, ainda, talvez você imagine que eles discutam, por semanas e meses, o porquê de um Estado que cobra tantos impostos e encargos só usar o braço armado que eles agora farão parte para oprimir aqueles que se insurgem, sem jamais entregar a todos eles (os que se insurgem e os próprios polícias, que também viveram e cresceram na periferia) o que ordena a Constituição Federal e tudo o que emana dela; texto legal que eles jurarão defender, ao receber a farda pela primeira vez…

Se você cogitou “sim” para qualquer parte dos parágrafos acima, eu só tenho uma pergunta para você: Sua mãe sabe que você usa entorpecentes?

Os policiais, no curso de 12 meses (já cogitaram fazer em 8, quando calcularam mal as baixas por aposentadoria, afastamento por problemas psiquiátricos etc.), aprendem:

  • Sobre conduta militar (o temido e famigerado RDPM – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar – Lei complementar 893/2001).
  • Sobre a Hierarquia e a Disciplina como os únicos valores inquestionáveis. Quebrar a hierarquia ou cometer um erro grave de indisciplina é garantia de exoneração. A prisão em Romão Gomes (o estabelecimento carcerário para PMs, em São Paulo) dependerá de quase nada além de um “sim”. “Ampla defesa” e “Devido Processo Legal” são temas ainda estranhos na Corporação (mas, melhorou, mesmo que timidamente, na última década).
  • Sobre como passar o uniforme, com vincos na calça e o nível certo de lustre na bota (não estou brincando).
  • Algum tempo (mas bem menos do que um civil pode imaginar) manejando armas de fogo, típicas da operação. Mas não todas: Diferentemente do crime organizado que ensina o moleque de 12 anos a usar um Fuzil, o nível de armamento ensinado na PM depende do seu ranking e lotação. O básico é a Pistola .40 e a “Calibre 12” que “tem fama”, mas não se compara ao poder de fogo de fuzis e submetralhadoras.
  • Um pouco “sobre lei”. Se der um terço do tempo de curso, pode bater palma.

No resto do tempo, o treinamento passa por “criar casca” nos recrutas, força-los a trabalhos desprezíveis à atividade policial (como arrancar grama com a mão, para limpar um jardim imenso), ficar em pé em posição de sentido por uma hora inteira, embaixo de Sol a pino, e outras idiotices que EM NADA contribuem com a formação de um futuro policial de alto nível para a sociedade).

Nesse tempo, eles não são treinados para “atirar para matar” como algumas fontes civis sugerem – o método de tiro que eles treinam na academia é o método Giraldi, e este não é feito para aumentar a letalidade, mas para garantir a baixa margem de erro do alvo (escolhendo as áreas maiores do corpo) e garantir o rápido cessar da agressão que se repele.

A PM não é hermética à Sociedade

No futebol, toda vez que cenas de violência entre torcidas surgem, os comentaristas dos canais que assisto se apressam a dizer (e o dizem, acertadamente, para mim) que o futebol não é um mundo à parte da sociedade na qual ele está inserido. Assim, a violência que explode nos estádios não deveria surpreender tanto o expectador atento, já que vivemos em uma sociedade violenta e conflagrada, o tempo todo. E se você supõe que isso é uma impressão equívocada, sugiro voltar a analisar o Atlas da Violência do IPEA com o devido apreço.

Do mesmo modo, eu costumo dizer que a PM é tão violenta quanto a sociedade que a mantém. Mantém com impostos, com políticas e diretrizes; mas principalmente, mantém com mão de obra.

Um dos lemas dos PMs é “Paisano é bom, mas tem muito”. Paisano = Eu e você. Além do erro de português (porque a interlocução adjetiva correta é “à paisana”, e “paisano” é substantivo para o nativo de algum lugar [vs. um turista, por exemplo]), o que se revela é um senso, mesmo que carregado de humor (o animus jocandi, no empolado latim jurídico), de superioridade da tropa com relação aos civis; civis que os PMs juraram proteger quando decidiram se tornar Policiais, ainda que nem todos se recordem bem disso.

O motivo dessa superioridade advém, primeiro, do fator enraizado na sociedade brasileira de que “militares são melhores do que o resto do povo” por motivos e razões que não cabem agora, mas que abordarei, mais tarde.

O segundo motivo é a impaciência da tropa com o conjunto de fatores que fazem com que sejam acionados para separar brigas familiares, especialmente entre marido e mulher e, mais tarde, na delegacia, presenciam a mulher tentado salvar o agressor do processo. Outro ponto crítico é o sentimento de injustiça, após uma ou duas horas de perseguição (eles usam o termo “acompanhamento”, pois, não podem fazer de tudo para perseguir o suspeito) e, logrando êxito em prender o suspeito em flagrante, vê-lo sair da delegacia após preencher um termo circunstanciado (o famoso TC), por vezes, antes mesmo da liberação do próprio policial (que tem uma grande burocrácia pela frente).

Os tramites em um flagrante consomem, sem qualquer exagero, de 2h a 8h do tempo de um policial, a depender das circunstâncias. Para o PM, isso inclui o tempo de ser recepcionado na delegacia civil, entregar o suspeito, narrar sua versão e apresentar provas e, depois, no batalhão, fazer o BOPM (Boletim da PM), que não é interligado ao BO feito pela Polícia Civil.

Um tramite para uma ocorrência de agressão leva de 2h a 3h. Se for um flagrante de tráfico de drogas, o tempo passa facilmente das 6h de processo. E se o Policial Militar, após 12 horas de atividade, faz um flagrante na última hora do dia de trabalho, essas 2 a 8 horas entram na conta, de graça – Hora extra? Você só pode estar brincando.

Esse sentimento de impunidade, misturado ao sentimento de que o cidadão aciona a Polícia, faz ela se envolver em questões e picuinhas familiares (por vezes, a PM é acionada apenas para “assustar” o outro lado) para, depois, ver a parte reclamante desistir da ação, (quando o policial já tomou arranhadas, garfadas, e todos os outros objetos atirados), atingindo ~16 horas de trabalho, literalmente à toa, tornam o “paisano” um “cliente” dos mais problemáticos e dos mais odiados, especialmente para os PMs há muito tempo na profissão.
O paisano é visto como um elemento ruidoso, indisciplinado (especialmente, se comparado à carga de disciplina militar), inocente (pejorativamente falando), que cai em golpes e armações rudimentares e que requerem grande estupidez por parte da vítima, e que envolve a PM para fazer chantagem ao outro, mas não para ver a Justiça legal efetivamente ser cumprida.

A formação dada aos Praças não é dirigida a formar “agentes assassinos”, como a sociedade brasileira insiste em afirmar por meio de pseudo-intelectuais (porque, se são mesmo intelectuais, têm que ao menos considerar o que considero aqui [não necessariamente com a mesma conclusão, já que não me suponho dono da verdade], e não simplesmente afirmar que o treinamento visa o óbito dos suspeitos que eles enfrentam) e porta-vozes nas mídias das mais diferentes matizes.

Mas, a maioria jamais se debruçou, sem paixões ou clubismos, sobre o ambiente tóxico onde esses Polícias trabalham, e a condição terrível e inerente a ele. Todos se apressam (e eu faço coro com estes) para dizer que muitos dos criminosos são fruto do ambiente em que crescem e vivem, e que com estrutura, apoio familiar, social e do Estado, além de oportunidades para lidarem com o que está errado, a maior parte não seria criminosa. Eu fico enraivecido de não ver a mesma ótica, benevolente e principiológica com os Policias, seu ambiente tóxico, sua falta de apoio social, estatal, e a falta de mecanismos para que eles possam lidar com o que está errado. E acredite: TEM MUITA COISA ERRADA dentro da Polícia Militar.

Também, me parece equivocado dizer que o militarismo cria uma mentalidade assassina, por si só; muito embora, eu conceda, de pronto que ajudar a pacificar as relações, ele não ajuda; ou seja… Se não faz mal, bem é o que não faz. O militarismo endurece o cidadão, o deixa pouco sensível à natureza falha dos seres humanos e, principalmente, o militarismo prega que os fins justificam os meios, e conquistar o objetivo é mais importante do que a ética (ou a falta dela) envolvida na manobra – e esse é o maior problema quando pensamos no policiamento em um Estado de Direito (onde os fins jamais justificam os meios).

Por outro lado, o militarismo mantém na linha uma multidão de 100 mil homens e mulheres que, não fosse o modelo, provavelmente fariam greve com enorme frequência, por melhores condições. E sim, a greve é ilegal para agentes armados (militares ou não), porém, enquanto os civis apenas respondem ao processo comum, os militares enfrentam os crimes militares de motim e revolta, previstos no RDPM, com penas bem mais duras e sem todo o aparato legal que o civil encontrará em seu favor.

Por fim, o que fica nítido para mim é que 50% do problema do serviço policial e sua inerente falta de qualidade cívica, jaz no recrutamento de baixa qualidade e assim o é, em larga medida, pois, o pagamento é totalmente incompatível com o risco e com a natureza da atividade policial, motivando boa parte daqueles que não detém os atributos que esperamos para o exercício da atividade policial.

O desrespeito deles pelos civis, devido à dureza da formação militar que exige deles uma inflexibilidade superior ao mediano, faz com que os civis problemáticos, e que são seus maiores “clientes” (o abuso de álcool, as brigas em família, de vizinho contra vizinho – e não o combate a criminosos armados), removam outra parte da boa-vontade dos policiais. O sentimento de injustiça ao lidar com o suspeito em flagrante que deixa a delegacia antes deles, leva o resto do espírito de “fazer o melhor” embora.

Pode soar elitista e eu aceito a crítica de bom grado, porque eu a encararia assim, tempos atrás. Mas a verdade, para mim, é que estamos recrutando o grosso da Polícia Militar no mesmo lugar e faixa de inteligência (para o serviço policial) que o crime organizado se abastece. A diferença é que ao invés do lucro do tráfico, se abraçaram a algum sonho de criança, ou idealismo (como os que eu tinha).

Também, me incomoda muito a compreensão e o “abraço” de intelectuais e movimentos diversos aos criminosos, sob a argumentação de que faltaram oportunidades e estrutura à maior parte dos criminosos; fatos com os quais, sim, eu concordo. Mas também falta estrutura e apoio aos Polícias que também vêm – em franca maioria – das mesmas periferias esquecidas por todos, e isso quase sempre não está no discurso de quem ataca a Polícia. No fim, a tragédia da PM é a mesma tragédia do crime, e há apenas o pobre matando outro pobre; com ou sem farda. Os verdadeiros vilões estão em outra liga.

Trabalhar na Polícia exige vocação. E vocação vem de sonhos e ideiais. Mas sonhos e ideiais não aguentam, por muito tempo, o que eles vivem nas ruas…

Em breve Um dia, a parte 2…

Sobre o verdadeiro vírus

Tem quem ache que o pior vírus, no momento, é o Coronavírus… Mas, isso, só até conhecer o nosso presidente (em minúscula, mesmo)…

(créditos da imagem: Aroeira, 2020 – Publicada em https://jorgalistaslivres.org)

O Brasil enfrenta, em paralelo ao resto do mundo, uma segunda epidemia. A primeira é causada pelo SARS-CoV-2, e todo o planeta luta contra ele, buscando por respostas – mais ou menos – em conjunto. A outra é uma epidemia de estupidez e “descivilização” (como cunhou o Professor suíço, Manuel Eisner, ao analisar a violência no Brasil); porém, esse combate é bem mais complicado do que criar uma vacina para a COVID-19.

De repente, todos sabem muito sobre tudo…

Bem, faz um tempão que não escrevo por aqui. Precisamente, 150 dias…

O motivo, como sempre, é a vida: Muita coisa para fazer, pouco tempo para realizar. Mudança na carreira, faculdade pegando fogo, matérias encavaladas para acompanhar… E aí… Pah!!! COVID-19

E teve tanta coisa que eu queria falar… Mas, sinceramente, acabei por concluir que era momento de falar menos e ouvir mais. Dar espaço para as autoridades, diminuir o ruído de fontes disponíveis… Sou grão de areia, eu sei, mas fiz minha parte e me calei.

Nas primeiras semanas de COVID-19, tínhamos especialistas em Virologia das mais variadas matizes e formatos. Muitos, até hoje, não sabem a diferença entre um vírus e uma bactéria (dica: praticamente tudo; é bem mais fácil dizer no que se parecem), mas, estavam lá, falando com grande propriedade da função da máscara de pano como filtro antiviral, fórmulas caseiras para matar o vírus, incluindo vinagre (?!?!?!)…
Bem, ainda tem quem ache que vinagre “limpa” a salada… Outros falaram que o calor tropical nos protegeria. Se fizer 56 graus lá fora (temperatura em que o vírus “morre” – fonte), sua preocupação passará a ser outra, garanto…

Restou me calar para não ser mais um louco no show de horrores que foi viver os primeiros dias da pandemia de Coronavírus, misturada com a epidemia de estupidez e desinformação que sempre vivemos por aqui. E, sinceramente, esse é o ponto mais importante em buscar educação: Ter autoconhecimento suficiente para saber sobre os limites do seu conhecimento, e poupar os outros e a si de falar grandes atrocidades.

Como disse Bertrand Russell:

O problema do mundo de hoje é que as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas, e as pessoas idiotas estão cheias de certezas…

E, por Deus, como há idiotas nesse país. É como uma convenção que nunca acabou, porque o idiota-mor que organizou, esqueceu de pôr uma data de término.

Bem, para te adicionar algo novo, como eu sempre tento fazer quando escrevo, vou buscar apresentar um pedacinho do que é a Virologia para, depois, propor algumas ilações com o tema principal. Você não vai sair pronto para sustentar um debate na área, mas vai ter alguma referência e, se quiser, até um material extra para ler e, a partir daí, falar com um pouco mais de fundamento sobre o mundo dos vírus.

Vamos perguntar a quem sabe:

O material no qual me baseio é o excelente guia da Fiocruz, de ~90 páginas, disponível aqui. Sua leitura é muito mais profunda e detalhista do que eu farei por aqui, mas convido a todos que se interessam a le-lô na integra. O material tem linguagem de fácil acesso, requerendo conhecimentos básicos em biologia e química do Ensino Médio. Nesse tema, se alguém sabe do que fala, esse “alguém” é a Fundação Oswaldo Cruz.

Em Virologia, área de especialização da Microbiologia, o estudo dos vírus se dá por escopos como:

  • Taxonomia & Estrutura viral
    • É o escopo que classifica (~“dá nomes”) aos entes virais, e estuda sua estrutura químico-físico-biológica. Por exemplo, a classificação se dá pela presença de moléculas de RNA ou DNA (somente uma família de vírus [mimividae] possui ambas), pela polaridade da fita RNA, pela fita dupla ou simples de DNA, pela presença ou ausência de envelope proteico protegendo o capsídeo (que protege o ácido nucleico), e por aí vai.
  • Replicação viral
    • Escopo que estuda as funções enzimáticas empregadas pelo vírus para se replicar (o que, grosseiramente, seria equivalente à sua reprodução). Vírus não “fazem sexo”, nem podem se multiplicar por meiose ou mitose porque, não, eles não são uma célula, como todas as bactérias são [e todas são unicelulares]). Vírus sequer têm metabolismo próprio (grosso modo: “Capacidade de produzir energia vital”) precisando sequestrar a estrutura celular (complexo de Golgi, mitocôndrias, ribossomos…) do hospedeiro para este fim. Por este motivo, até hoje não há consenso científico se vírus são seres vivos. A palavra “vírus” aliás, vem do latim para “veneno” ou “toxina”.
  • Patogênese viral
    • Estuda a capacidade de um dado vírus de causar alterações clínicas no hospedeiro, como febre, tosse, vermelhidão em tecido da derme etc.. Algumas infecções virais são assintomáticas, pois, o agressor não consegue afetar significativamente a estrutura infectada, de um ponto de vista físico, químico e/ou fisiológico (aliás, é o que acontece com a maioria das crianças que se contaminam com SARS-CoV-2: Elas não apresentam sintomas e são, por este motivo, um perigo aos grupos de risco [idosos, diabéticos, obesos, pessoas com quadro cardiorrespiratório crônico…]).
  • Imunologia viral
    • A imunologia cuidará de entender como o sistema imunológico do hospedeiro reage ao invasor, como diagnosticar a presença do agressor em exames laboratoriais, quais medicamentos ajudam o sistema imunológico (em geral, pela imobilização enzimática do agente patológico, ou pelo fortalecimento de alguma estrutura que o agressor se aproveita para contaminar a célula hospedeira), e quais medicamentos não têm qualquer relevância (no caso da COVID-19 de cara, antibióticos; porque antibióticos visam atuar no metabolismo [alguma parte dele] das células do agressor e, como já citei, vírus não têm células!), ou se são mais perigosos que a doença em si (como, por exemplo, os baseados em Cloroquina, pois, esta aumenta consideravelmente o risco de complicações cardíacas; uma área-alvo na patogênese típica da COVID-19), e daí por diante.
  • Epidemiologia
    • A Epidemiologia é importante alicerce para a Vigilância Epidemiológica, parte das obrigações de qualquer Ministério da Saúde, visando garantir a segurança sanitária da sociedade. Esse escopo ajuda no entendimento do potencial de contaminação de um dado agente viral (necessidade de “vetores” [animais, em geral, artrópodes], período de incubação, mortalidade, patogenicidade etc.); igualmente, ajuda no planejamento de calendários de vacinação, identificação de medidas públicas para atacar o contágio, identificação de comportamentos de risco, profilaxia recomendada, e assim vai.

Vírus possuem uma capacidade de recombinação e mutação sem igual, podendo mudar apenas um cromossomo em seu ácido nucleico, “dando à luz” a um agente que pode ter características bem distintas e até “adotar” partes do DNA hospedeiro ou de outros vírus que estão atuando concomitantemente; e isso pode resultar em um nova cepa (linhagem) de vírus que pode ser mais ou menos eficiente em contaminar, resistir ao tratamento, além de poder aumentar a patogênese do agente (fonte – em “Evolução dos vírus”). Foi o que ocorreu no caso da gripe suína, onde o vírus influenza A se encontrou com o vírus da gripe aviária em células suínas, recombinando seu código com o outro patógeno, se tornando ainda mais agressivo para nossa espécie. Nota: Isso tudo não é “pensado”… É simples efeito da seleção natural, como bem explicado por Darwin.

Com o SARS-CoV-2, em algum momento (entre dezembro e fevereiro) e lugar na Europa, uma mutação ocorreu e mudou uma simples base nucleica: Uma Guanina (G) por uma Adenina (A), na posição 23.403 (o SARS-CoV-2 possui 30 mil pares de cromossomos), tornando a “Spike” (sua proteína de acoplamento às células humanas, pelo receptor ACE2) muito mais eficiente. Em outras palavras, com a mutação, o Coronavírus se tornou mais contagioso e e pode ter dificultado a produção de uma vacina única (fonte).

Por fim, me parece que não custa dizer o óbvio: Vírus e bactérias não têm “intenção”. Eles não pensam, não tem estrutura nervosa (o vírus tem muito menos estrutura do que a bactéria), e não são “maus” ou “bons”. São como um fato: Eles apenas existem.

O que o vírus causa pode ser bom ou ruim e, aliás, inúmeros são os indícios da importância dos vírus para a espécie humana, inclusive em sua evolução, sendo que podemos ter evoluído para o ponto em que estamos, em parte, graças a eles.
Igualmente, é aceito pela comunidade científica que nossas mitocôndrias (a “usina de força” das nossas células) devem ter sido bactérias que viviam de maneira simbiótica dentro de nós e que, em algum momento, migraram para o citoplasma, se fixando permanentemente à citologia humana (fonte).
Em resumo, é o humano que tenta emprestar conceitos morais e éticos ao mundo biológico. Os vírus e bactérias não são bons ou maus. Eles existem e interagem. O resultado pode ser bom (e.g.: Nossas mitocôndrias, ou os vírus que infectam e matam bactérias no trato intestinal, garantindo o equilíbrio da flora), mau (e.g.: Ebola, Coronavírus), ou neutro (quando não causam nenhuma patogenia). (fonte)

As terapias gênicas são, em grande parte, estruturadas em cima da ideia de reescrever as partes do vírus que fazem mal, e utilizá-lo para “infectar” seu corpo com aquilo que ele precisa. Seriam, no limiar da técnica, capazes de curar Hemofilia ou Diabetes Mellitus, por exemplo, ao reescrever nas células do fígado e pâncreas (respectivamente), os genes que “dão problema” (de maneira bem grosseira, tudo bem?). (fonte)

Bem… Agora que temos o mínimo de contexto para seguir, vamos em frente.

Sobre a necessidade de sermos intolerantes

Karl Popper, filósofo nascido alemão, em 1902, e inglês por escolha, sintetizou o conceito mais aceito do que é Ciência, até hoje. Mais especificamente, ele sintetizou o que faz de uma teoria, ciência, assim dizendo:

Uma teoria científica é um modelo matemático que descreve e codifica as observações que fazemos. Assim, uma boa teoria deverá descrever uma vasta série de fenômenos com base em alguns postulados simples como também deverá ser capaz de fazer previsões claras, as quais poderão ser testadas.

Assim, podemos entender o que faz de uma teoria, ciência, e o que não é ciência. Se não consegue descrever os fenômenos através de um modelo matemático (Força = Massa*Aceleração) ou postulado claro (“crime” é Ato Típico, Antijurídico, cometido por Agente Culpável); se a teoria não consegue prever claramente boa parte dos resultados destes mesmos fenômenos, no futuro; tal teoria pode ser teoria da conspiração, teoria de boteco, teoria de Whatsapp… Mas, não é teoria científica. Teoria também não é sinônimo de “opinião”!!! Pelo amor de todos os santos… Mas, isto fica para outro dia…

Também, é de Popper o Paradoxo da Tolerância (fonte):

A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles. — Nessa formulação, não insinuo, por exemplo, que devamos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública, suprimi-las seria, certamente, imprudente. Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; pode ser que eles não estejam preparados para nos encontrar nos níveis dos argumentos racionais, mas comecemos por denunciar todos os argumentos; eles podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas. Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, ao direito de não tolerar o intolerante.

As palavras atingem minha compreensão do mundo como bombas. É duro pensar que estou vivendo os dias da minha vida às portas de ver realizado o Mal do paradoxo de Popper (o fim da tolerância). Para que preservemos a Tolerância como valor e a Democracia como regime de Estado, precisaremos nos tornar intolerantes com os intolerantes.

Para quem me conhece “ao vivo”, suponho ser fácil perceber que sou totalmente contrário à ideia de censura e repressão da opinião alheia. Eu acredito – no caso geral – na ideia sintetizada da filosofia de Voltaire:

Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.

A frase, erroneamente atribuída ao filósofo é, na verdade, de autoria de sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall (1868 – 1939), sendo, contudo, um brilhante resumo da linha liberal (nada a ver com liberalismo econômico) de pensamento de Voltaire, contra o Estado Absolutista com o qual conviveu. (fonte)

Isso dito, não há qualquer conflito nessa ideia com o paradoxo postulado por Popper. Aliás, Popper é bem claro ao dizer:

não insinuo (…) que devamos sempre suprimir (…) filosofias intolerantes; desde que possamos combatê-las com argumentos racionais e mantê-las em xeque frente a opinião pública (…)

Logo, há um pressuposto: Se os argumentos baseados em racionalidade permitem fazer com que os integrantes da sociedade questionem filosofias intolerantes, mantê-las na discussão pública é vacina mais do que desejada contra o alastramento dessas mesmas ideias.

Contudo, Popper também prescreve a exceção:

Mas devemo-nos reservar o direito de suprimi-las, se necessário, mesmo que pela força; (…) (pois) eles (os que propagam as ideias intolerantes) podem proibir seus seguidores de ouvir os argumentos racionais, posto que são enganadores, e ensiná-los a responder aos argumentos com punhos e pistolas

Assim, é chegada a hora de todos nós (que acreditamos numa sociedade que tolera a diferença, que respeita a dissidência do pensamento, que se baliza pela Lei para compatibilizar a convivência e que busca incessantemente os princípios (positivamente) utópicos de igualdade e fraternidade na sociedade) nos tornamos intolerantes com os intolerantes. Sob o risco de permitimos que a tolerância seja exterminada.

Hoje, estou no dia de desmontar atribuições errôneas… Diferentemente do que muitos dizem, este – a seguir – não é um ditado alemão, mas uma frase, até onde obtive informação, de autoria do Chris Rock (o comediante estado-unidense) – (fonte):

Se 10 caras acham que é ok passar um tempo com um nazista, eles se tornam 11 nazistas.

Depois da frase de 2017, alguém, na Alemanha, deu uma roupagem mais formal e usou o exemplo dos 10 à mesa com 1 nazista… Enfim… Este não é, de verdade, meu ponto.

Meu ponto é que toda vez que nós rimos com simpatia para alguém falando atrocidades e defendendo tortura e massacre daqueles que pensam diferente, que são diferentes, ou que simplesmente não dizem “amém” para aquilo que o boçal vocifera, nós não apenas garantimos a perpetuação da barbárie, como nos tornamos mais bárbaros, também.

Por isso, é hora de ser intolerante com gente intolerante: Ou eles discutem seu ponto de vista dentro de um grau civilizatório mínimo, respeitando noções gerais de debate civilizado, e se abstendo de expedientes falaciosos (como atacar o autor do argumento, e não o argumento em si) ou calam a boca e morrem gritando somente para os loucos e bárbaros como eles mesmos, até o ponto de ficarem isolados da sociedade civilizada, como merecem aqueles que querem destroçar o próximo e tornar o mundo um lugar de supremacistas e egocêntricos.

Como bem disse o filosofo Heidegger, mais tarde, inspirando fala similar do Doutor Martin Luther King:

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.

A História, no entanto, não perde o dom da ironia: Heidegger, alemão, foi filiado ao partido Nazista desde 1933, embora tenha se tornado um crítico do regime já durante a 2ª Grande Guerra.

Como podemos ver, a necessidade da intolerância com os intolerantes parte do risco de que a discussão não mais seja racional, e que os intolerantes se imponham por força bruta, e massacre dos seus opositores, à revelia da validade de suas ideias.

E clamo que todos nós, seres civilizados, deixemos de emitir “notas de repúdio veemente”… Não tem nada mais inócuo e patético, do que uma sociedade e órgãos de um Estado Democrático de Direito que, depois de levar seguidas cusparadas na cara, emitem “notas de repúdio”… Tais notas são motivo de riso entre os animais irracionais do outro lado dessa guerra. Precisamos, como Popper disse, ser intolerantes, se preciso, com o uso da força Estatal (porque nós, sim e, de fato, estamos ao lado do Estado Democrático de Direito), processando, legalmente, e encarcerando os elementos que atentam contra a vida civilizada e balizada pela Lei. Mas, eu não sou bobo, e também sei que o “braço forte” do Estado está sendo corrompido, dia após dia… Bom… Outro tema, outro post.

O verdadeiro (e mais perigoso) vírus

O verdadeiro e mais perigoso vírus, atuando no Brasil, é o vírus bolsonarista. Como agora sabemos o básico de Virologia, faremos a análise desse vírus dentro das lentes científicas da Microbiologia – num óbvio, mas, eficaz, penso eu – exercício de analogia e sarcasmo, é claro.

Taxonomia & Estrutural Viral

O vírus bolsonarista ou vírus do bolsonarismo vem da família bolsonariae, e sua origem remonta à boçalidade, à estupidez e ignorância do espécime medíocre; daí, tamanha similaridade na fonética dos termos, sendo a nova grafia mero acidente de transcrição histórico (aviso: isto não é um fato; mas teria tudo para ser).
É um vírus oportunista (como advertido anteriormente), que se aproveita da vulnerabilidade do hospedeiro – a sociedade brasileira – e essa vulnerabilidade vem da nossa completa descrença e desrespeito pelo sistema político criado pelas elites nacionais e, por uma questão de recorte histórico, sedimentado nos últimos ~100 anos de história nacional. Mais especificamente, com início da Era Vargas em 1930, passando pela promulgação da segunda Constituição, de 1934 (que fundou várias bases do que chamamos de “democracia” atualmente, como o voto secreto e obrigatório aos 18 anos, o voto feminino, nacionalização das riquezas naturais, bancos e surgimento de outras estatais, e por aí vai…) e, mais tarde, já na Ditadura do Estado Novo (1937 a 1946), autoritário e anticomunista, também moldado por Vargas, que tinha afeição declarada ao Fascismo do ditador italiano, Benito Mussolini.
Vargas é chamado de “pai dos pobres” por seu “departamento de imprensa” (DIP) – na realidade, um gabinete de Propaganda – e o nome até que “pega”, por ser considerado o Patrono dos Trabalhadores Brasileiros (por exemplo: Foi ao fim de sua ditadura que surgiu a nossa CLT). Não é de se espantar, destarte, que admirado por tantos, e com medidas tão populares (mas, também, populistas), seu autoritarismo e repúdio à democracia, enquanto forma de dirimir os conflitos na gestão da coisa pública, não seja lá de grande proeminência em sua biografia de domínio popular. Modo geral, lembramos tão somente do lado frondoso do homem “que cuidou de quem luta dia e noite pelo pão”, e tendemos a minimizar que, antes de 64, a Ditadura já ocorrera por suas mãos…

Este sistema político hodierno, posto à nossa face, emula uma democracia, mas, não chega a ser uma, de fato, porque diante dos anseios e problemas da população comum e sem status ou fama, tal sistema político se nega a realizar qualquer mudança sincera e profunda nas “regras básicas do jogo”. Quando muito, orquestra um espalhafatoso espetáculo de luzes e som, com a intenção de mesmerizar a todos e causar grande estardalhaço; mas, como num truque de mágica, onde o segredo é distrair a plateia para que ela não note o que você faz com as mãos, nossos mágicos políticos terminam sempre por retornar todos os atores e mecanismos para os lugares onde sempre estiveram. Sim Salabim!

O grande segredo é não haver mistério algum…

…diria conhecido compositor

Diante da desesperança e da descrença completa, vários organismos da sociedade – ou seja, seus cidadãos; nós… – ficaram vulneráveis aos mecanismos de sequestro – especialmente, o sequestro intelectual – impostos pelo vírus bolsonarista.

Replicação Viral

A replicação viral do bolsonarismo é centralmente baseada em mecanismos de desinformação (as famosas fake news). O mecanismo é conhecido de longa data pelos Cientistas (políticos), e como propagou Ésquilo – e não um senador estado-unidense (estou num dia de checagem de autorias…) (fonte) – dramaturgo grego:

Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade.

A desinformação favorece a família bolsonariae, pois, em uma Era de “pós-verdade” (termo cunhado, em 1992, pelo dramaturgo Steve Tesich), a informação – enquanto compreensão ordenada de fatos – não tem mais credibilidade por si só. Nessa nova Era, é possível “informar” sem aduzir qualquer fato. Mas, para qualquer um com imunidade ao sistema de ataque da família bolsonariae (família de vírus, claro), é óbvio que os fatos importam e que “verdadenão é algo quedepende da visão de quem julga”.
Existe certo e errado, existe fato e ficção, e “fato” não se confunde com “opinião”. E é claro que veículos de informação tradicionais não são isentos de distorção, mas, para isso temos mais de uma fonte de informação, e elas atuam verificando umas às outras, num eterno exercício de vigilância recíproca.

Como bem disse o sagaz Millôr Fernandes:

Jornalismo é oposição. O resto é armazém de secos e molhados

Ou seja: O melhor indício de que um(a) jornalista está cumprindo com seu papel Constitucional de vigiar “os poderes” (na verdade, as funções do Poder [que é sempre Uno]) da República, é quando o(a) jornalista é odiado(a) por todos os lados e ideologias. Se um lado sempre bate palma para uma fonte de notícias, sendo este lado situação ou oposição, melhor desconsiderar a opinião dessa fonte, daqui por diante.

Depois da desinformação, e da relativização da verdade, outro mecanismo de replicação utilizado pelo vírus bolsonarista é ligado à ignorância e truculência dos organismos que ele contamina. Quanto mais radical e mais alienado da realidade nacional de desafios, desigualdades, racismos, preconceitos históricos e jamais solucionados pelo Estado-de-faz-de-conta que é a República das Bananas – bioma do hospedeiro-alvo do bolsonarismo: A sociedade brasileira – e quanto mais ignorante do fato de viver em uma sociedade fundada, não na igualdade – com supostamente ordena a Lei Maior – mas, sim, nos privilégios de certos grupos sobre outros, mais eficiente é a acoplagem do vírus bolsonarista às células do organismo agredido, facilitando a replicação do vírus.

Tão logo acoplado, o patógeno sequestra a capacidade de raciocínio, e altera a ordem entre fatos e versões, incapacitando o organismo (o cidadão) de ver com clareza a ordem dos eventos, as relações de causalidade e efeito, e afetando a habilidade de pôr os acontecimentos em uma perspectiva clara e óbvia para qualquer organismo ainda não infectado. Deste ponto em diante, o organismo, tomado pelo agressor viral, passa a ser contaminante para todos ao seu redor, difundindo as mesmas mentiras e ilusões delirantes, fundadas em absurdos completamente esvaziados de lógica e de bom senso; todos esses elementos, fundamentais para a continuidade da infecção e replicação viral bolsonarista.

Portanto, o nosso conhecimento da replicação viral da família bolsonariae, aponta para o fato de que o agressor biológico se beneficia da ignorância de longa data, sempre incentivada pelas condições do bioma (crônico investimento irracional e errático na estrutura da educação pública, alienação proposital e incentivada [“nessa casa não se discute futebol, religião, nem política!”], Coronelismo [o eleitor tal qual gado em um curral, esperando as ordens de seu senhor], Sebastianismo [a crença de que precisamos de uma figura mítica e salvadora para nos livrar de todo o mal], Clientelismo [o eleitor como um cliente do político, a ser atendido e satisfeito, nunca tratado como parte capaz e responsabilizável na construção das políticas e espaços públicos]; todas estas, características históricas em nossa relação com a política nacional).

Patogênese viral

Os sintomas clínicos do organismo contaminado são evidentes, se manifestando com intensidade moderada, a priori, mas ficando extremamente fortes quando na presença de outros organismos infectados. Isto sugere que a carga viral do bolsonarismo cresce em progressão geométrica na presença de 2 ou mais infectados no mesmo espaço, físico ou virtual. Estudos mais detalhados precisarão ser realizados para que se determine se o vírus bolsonarista é “airborne”, ou seja, transmissível pelo ar. Até que estudos conclusivos sejam realizados, sugere-se o afastamento de pelo menos 10 metros, (ou 2 conexões de distância em redes sociais) de qualquer infectado.

Os sintomas típicos são:

  • Clamor por intervenção militar, com alguma variação sugerindo que isso seria “Constitucional” (possivelmente, devido aos delírios induzidos pela forte febre que acompanha o quadro);
  • O uso da camisa da seleção brasileira de Futebol, com o brasão da CBF; entidade que os infectados imaginam ser um símbolo de honestidade e que representa os valores da causa;
  • A embaraçosa relativização dos danos graves e atos criminosos cometidos pelo Pai da família bolsonariae (família de vírus, claro) e todas as demais cepas do bolsonarismo; família esta que está espalhada em outros cargos da política nacional, já em grau de pandemia, contaminando outras partes da fauna que coexiste com nosso hospedeiro (a sociedade), como Polícias e Forças Armadas – mecanismo importantíssimo utilizado pelo vírus na supressão da imunidade inata do hospedeiro, sendo vetor de transmissão perigosíssimo, e que merecerá estudo em separado;
  • O rapto da bandeira nacional Brasileira, como se fosse um símbolo só disponível aos infectados, sendo que a mesma é estranhamente apresentada ao lado de outras bandeiras, com mesmo destaque (quando não, menor do que as demais, ou até mesmo ausente), de nações como Estados Unidos da América e/ou Israel (fica evidente o sintoma de confusão mental causado pelo bolsonarismo: O organismo contaminado se julga mais patriota que os demais, mas se manifesta ostentando bandeiras estrangeiras, num raríssimo caso de esquizofrenia patriótica viral);
  • O uso de falácias como “E o Lula? E o PT?”, “Os cientistas/ONU/NASA/IBGE são de esquerda!”, ou “Morra, comunista!”, quando enfrentados com dados e fatos que não podem ser vencidos pela via da inteligência e racionalidade, mas, tão somente pela força;
  • Agudo desarranjo intestinal reverso, invertendo violentamente os movimentos peristálticos, e fazendo com que o organismo infectado regurgite as próprias fezes enquanto fala; um dos sintomas mais assustadores e chocantes que já se presenciou na história moderna da Virologia.

Enquanto temos conhecimentos de outros sintomas, estes podem ser confundidos com os sintomas causados por outro patógeno (bem mais moderado e infinitamente menos danoso, devemos acrescentar), já que o bolsonarismo não é o único vírus de matriz populista a se aproveitar dos mecanismos de infecção e características de vulnerabilidade da nossa sociedade.

Os sintomas apresentados, acima, de todo modo, são extremamente comuns no organismo infectado com o vírus da família bolsonariae, servindo de baliza para o diagnóstico diferencial clínico e descarte de outras doenças possíveis (anencefalia em idade avançada, possessão demoníaca patriótica, entre outras).

Imunologia Viral

Os organismos que resistem ao bolsonarismo e todas as suas variantes, – sejam elas a estupidez, a ignorância, a ideia alucinógena de superioridade baseada em fato algum, a produção e propagação de desinformação(…) – apresentam algumas características relativamente comuns ao grupo de organismo com imunidade congênita presente:

  • Educação e respeito pelo próximo, ainda que diante de discordância de grande porte;
  • Capacidade, acima da média, de separar “fato” e “opinião”;
  • Consciência inequívoca de que ditaduras sempre dão certo porque mentem o tempo todo, e nunca permitem que seus opositores sobrevivam;
  • Educação moral e formal para entender a realidade por um prisma não-fantasioso e não-mágico (e.g.: não, armar o brasileiro em seu atual grau de civilidade e respeito ao próximo, não é uma prioridade de um governo de gente normal);
  • Profunda descrença em “salvadores da pátria” e “figuras míticas”, por terem consciência de que pessoas não salvam um país, mas instituições fortes e que não podem ser facilmente raptadas por golpistas e estelionatários são a verdadeira chave do sucesso das grandes nações;
  • Consciência plena de que o bem mais importante que alguém possui é a própria vida e que, subtraído tal bem, este é insubstituível e, daí em diante, nada mais importa; nem sociedade, nem lei, nem economia, nem igualdade, nem merda nenhuma.

Epidemiologia

Depois de um relatório tão perturbador, nossa pesquisa nos leva à boas e más notícias.
A boa notícia é que o R-zero do bolsonarismo apresenta forte descenso. O número de novos contaminados vem em franca queda, e o vírus começa a demonstrar característica de nicho, atacando somente regiões e populações naturalmente propensas à ignorância e truculência, sendo que já vemos um certo platô de contaminados em cerca de 30% da população. Considerando os números anteriores, essa parece uma reação animadora e que nos dá alguma esperança de convalescença do hospedeiro – a sociedade brasileira. O prognóstico, se mantidas as atuais variáveis, é muito positivo, com recuperação mais tardia a ocorrer em janeiro de 2023. Convém, porém, observar os sintomas até outubro de 2022.

Pois,

O preço da liberdade é a eterna vigilância…

…como disse Thomas Jefferson.
Outra boa notícia é que os organismos sobreviventes e curados passaram a recobrar a capacidade cognitiva depois da fase rara de “coma de olhos abertos” que enfrentaram. São comuns os relatos de volta da percepção da realidade, o fim dos delírios, e surpreendentemente, muitos admitem que passaram a reconhecer que militares não são melhores, nem piores do que o resto da sociedade. Afirmaram, ainda, que militares são pessoas comuns, que usam farda, tem um preparo específico, mas, não tem nenhuma qualidade adicional por causa disso. Prognóstico animador, dado o retorno da habilidade de constatar o óbvio!
As más notícias ficam com a piora aguda do quadro de saúde da democracia. Este sistema é dependente direto do hospedeiro – a sociedade – e se o hospedeiro adoece, a democracia também. É confusão comum nos recém-iniciados em biologia política (só para constar, isso não existe…) pensar que a democracia faz a sociedade, mas é o exato oposto. Da mesma forma que um pedaço de papel não obriga ninguém a ficar em casa, um país não pode ser democrático se seu povo não quiser que seja, e é tolice pensar diferente.

A profilaxia recomendada diante desta epidemia é lavar sempre as mãos e não acreditar em nada que você receba por Whatsapp, Instagram, Facebook, Twitter… Procure se manter próximo a mais de um (idealmente, pelo menos 3 [três]) veículo de informação tradicional, como forma de validar a informação recebida em mais de uma fonte. Nunca confie em canais de comunicação oficiais do governo, porque eles não fazem notícia, fazem Propaganda; e a diferença entre os dois tipos de comunicação é brutal.

Também, é política de prevenção recomendada, ser intolerante com os infectados exibindo sintomas de intolerância. Não é preciso descer ao nível de baixeza e desumanidade deles, mas basta não continuar a conviver com esse tipo de infectado, dado que as chances de cura deles são baixíssimas, enquanto as chances de que você acabe contaminado são enormes.

O esquema de vacinação para se prevenir contra o vírus é até simples: Doses cavalares de realidade obtida por fontes confiáveis e jamais por redes sociais; procurar os fatos antes das opiniões; não se permitir guiar por pessoas que despejam ódio e retratam compatriotas como seres inferiores, seja porque são mulheres, gays, negros, ou “comunistas”; exercício da capacidade de análise crítica, sem jamais aceitar soluções simples ou milagrosas para problemas complexos e de longa data; a solução virá pela decantação das instituições, e não pela força estúpida de projetos mentecaptos de ditaduras e supressão de direitos.

Eu, pessoalmente, fui além da sugestão e adotei a intolerância para com os intolerantes, como me pediu Karl Popper, e estou em lockdown contra bolsonaristas trogloditas e ignorantes, mantendo o contato somente com aqueles que ainda apresentam alguma racionalidade – na esperança de ajudá-los a vencer a doença com a qual se deixaram contaminar.

Todo cuidado é pouco, pois, se eu vacilar, posso acabar sentado à mesa com outros dez incautos e que não querem se posicionar com clareza em favor da democracia, e contra o fascismo crescente, por medo de “perder a amizade”; e aí, vem um bolsonarista estúpido, senta-se conosco e, pronto: Agora somos onze bolsonaristas estúpidos, defecando pela boca, num piscar de olhos.

Um dos mais tristes fins que alguém pode ter…

Sobre o PenTest Bolsonarista

Um post para todos que andam dizendo “já passou” …

Ao escolher uma faculdade ligada à Tecnologia da Informação, uma das coisas que acontece com você é que, automaticamente, você passa a entender sobre redes, programação, formatação de sistemas, vírus de computador, micro-ondas, recarga de cartucho de impressoras, e como arrumar o celular dos seus familiares (“nossa, tá muito lento e apareceu esse aplicativo aí que eu não instalei”)…

Ah! Acontece outra coisa também: Para qualquer pessoa de fora da área, se você abre um prompt de comando e digita “ipconfig /all”, pronto… “Cara, você é hacker?”. Claro! Quem não é?

Sim meus caros amigos, somos todos hackers na informática. A primeira aula na faculdade é “invadindo perfis de Facebook da ex-namorada”. E é “da ex”, e não “do ex”, porque uma coisa mais rara do que aluno de informática em forma, é mulher na sala de aula (o que considero um assunto triste, mas fica para outro dia).

Bem, como somos todos hackers, todos nós sabemos o que é um PenTest. Mas, eu vou dar uma colher de chá e falar com propriedade sobre algo que faço todo dia. Ou seja, vou falar sobre “coisas de hacker”. Em termos mais técnicos, falarei em “Segurança da Informação”.

Na disciplina de Segurança da Informação, na qual sou extremamente versado (eu espero que vocês já tenham notado o sarcasmo), “PenTest” é um conceito que, para além da abreviação, significa “Penetration Test”. Em resumo, com um sistema da informação exposto, mesmo que somente a um público interno, é importante saber se pessoas não autorizadas são capazes de extrair dele, informações e dados aos quais tais pessoas jamais deveriam ter acesso.

E (eu sigo supondo que minha audiência não é da área), talvez, sua primeira pergunta seja “mas, se o sistema foi bem feito, só acessa que tem usuário e senha (credenciais), não é?”.
Méh…. Mais ou menos… Mais ou menos…

O problema com o desenvolvimento de sistemas (o que nós, que sabemos sobre impressoras e micro-ondas, dominamos muito bem) é que, de maneira geral, os programadores (aqueles que fazem o programa, ou “app”) fazem o código “para dar certo”.
E aqui, você dirá “what-the-p$rra?! E não deveria ser sempre assim?”.
Você ainda não visualizou o problema…

O problema é que se eu sou “teu chefe” (o analista de negócios, o PjM [Project Manager], o P.O. [Product Owner], ou só o cara te pagando, mesmo) e te digo “quero que você me faça uma calculadora que some, subtraia, divida e multiplique”, você, como programador, mas, mais ainda, como ser humano, se prepara para construir algo que “some, subtraia, divida e multiplique”…
Se você for mais espertinho, você fará outras perguntas como “de que modo o usuário entrará com os números a serem operados nessa calculadora?”, e outras perguntas que te ajudarão a fechar o escopo do programa a ser desenvolvido.

Ocorre que… Em uma sala de programadores júnior, e para todos vocês que não sabem como recarregar um cartucho enquanto invadem o sistema de mísseis da OTAN (como eu sei), a maioria das pessoas não fará perguntas cruciais como “quem deve ter acesso à calculadora e que tipo de autenticação usaremos para garantir?”, ou “os dados devem ser criptografados durante os cálculos e no armazenamento de longo prazo? ”, ou “que tipo de tolerância à falha essa arquitetura deve possuir?”… Essas são perguntas que só quem já passou das primeiras “300 horas de voo” deve imaginar…

E aí, sua calculadora fofinha que soma “result = varA + varB;” e faz um “printf (result);”, recebe do usuário a ordem para soma de varA = 3 e varB = o (ó de “óleo”, não “zero”).
Kabum! … Lá se vai o seu programa tentando somar um número com uma letra. Algo tão bobo quebrou seu programa… Imagina quando a questão é fazer um programa seguro do tipo “só vai entrar quem deve”… São tantas possibilidades… Tantas coisas feitas de maneira legitima e sincera e que podem se tornar exploráveis por alguém mal-intencionado…

Em resumo, você já viu que dizer “ué, só entra quem tem credenciais” não resolve o problema real de Segurança da Informação. Torne as coisas muito mais complicadas do que somar duas variáveis e exibir o resultado na tela, e os problemas e preocupações acompanham a mesma regra exponencial de possibilidades.

Esqueça o petróleo. A riqueza do mundo está nos dados

E até o mais bobo dos hackers sabe disso…

E porque a riqueza do mundo não é mais material, mas, sim, de informação (quem detém e manipula mais disso é mais rico que os outros), a maioria das gigantes empresas já entendeu que não dá para tratar sistemas da informação de forma muito diferente da sala-cofre do banco onde fica a bufunfa.

Assim nasce, nas áreas de TI, a disciplina de Segurança da Informação (SI), originalmente preocupada com ataques externos, até que percebemos que a franca maioria dos ataques começa de dentro para fora (fonte). Seja com ajuda intencional ou não dos colaboradores (empregados) da empresa atacada.

Surge, nas empresas de grande porte, a ideia de ter times de hackers contratados para combater hackers hostis à empresa.

Depois de um tempo, já não é suficiente “sentar e esperar”, e a Segurança da Informação passa a ter que se antecipar aos ataques. A SI da empresa tem que pensar como o agressor agiria… O que ele faria, o que ele exploraria… É claro que existem os truques básicos, e é claro que tem empresa pecando no que chamaríamos de “nível 0” de maturidade de SI (como não colar sua senha em um PostIt no teclado). Mas, o mesmo mal que afeta o programador (que programa “pra dar certo”) acontece com o time de SI da empresa… Gente acostumada a defender, com o tempo, esquece como atacar.

Constrói-se, então, o conceito de “blue & red teams”. São dois times de profissionais contratados pela empresa. Um de atacantes e outros de defensores. E são ambos ligados à SI, mas, a parte divertida da coisa é que um não conhece o dia-a-dia do outro, e o time azul nunca sabe quando o time vermelho está invadindo, ou quando a invasão é real. Isso cria uma mentalidade de “não-relaxamento” o que é, modo geral, positivo para a eficiência das medidas de segurança.

Na esteira disso, surgem consultorias especializadas em vender “PenTests” ou “Penetration Tests”… São consultorias formadas (pelo menos, no princípio) por hackers e pessoas com bom conhecimento de SI, e que vão tentar invadir um designado sistema da empresa para apresentar um relatório depois, indicando o quão seguro é o sistema explorado.

Não existe sistema totalmente Seguro

O único sistema eletrônico 100% à prova de invasão é aquele fora da tomada…

Lembra da nossa calculadora? Ela falhou porque não projetamos ela para impedir qualquer entrada que não fosse um número. Também, dando um passo adiante, deveríamos proibir que divisões por zero ocorressem (já que a divisão por zero é uma indeterminação)… Enfim, há sempre espaço para melhora.

Agora, uma calculadora como essa, feita em linguagem de programação C (“C” é o nome da linguagem), deve chegar a 15 ou 20 linhas de código (como esse texto, podemos contar o tamanho de um programa em linhas, em funções e de várias outras formas). De maneira agressivamente simplista, essas linhas explicam para os circuitos do computador como lidar com os valores que você digita no seu teclado e que espera operar matematicamente (já que é isso que uma calculadora faz).

O tamanho do programa varia com o tamanho das necessidades (aqui, 4 operações elementares), e com a habilidade do programador (programadores mais experientes e talentosos saberão fazer um mesmo programa, quanto às funções esperadas pelo usuário, com menos linhas do que um programador iniciante) …

Agora, vamos para um exemplo real:

Um navegador de internet como o Mozilla FireFox, tem mais de 28 MILHÕES de linhas de código (LOC: Lines of Code), e é composto por mais de 40 linguagens de programação diferentes (fonte).

E, por mais que eu saiba que qualquer navegador moderno é a nova área de trabalho dos dias de hoje (pense bem: o que você faz no seu PC/notebook que não é feito via seu navegador? [Chrome, Edge, Firefox…]), a realidade é que o navegador é “só um programa” que precisa de um sistema operacional inteiro por baixo dele para poder ser executado…

Para se ter mais uma ideia de dimensão das coisas, o coração de um sistema Linux moderno tem, por padrão, 15 milhões de LOCs (fonte)… E o Kernel é “só” a parte que faz o sistema ficar pronto para mandar no hardware da sua máquina (processador, memória RAM, disco, rede[…]), sem falar de interface com usuário (mouse, teclado, monitor, impressora), interface gráfica (seu desktop), programas-padrão de um sistema operacional, acessórios e periféricos…Ou seja: O tamanho total de um sistema operacional moderno atinge, sem um esforço enorme, a marca da centena de milhões de linhas de código. E como eu já disse… Não é apenas uma linguagem de programação… São dezenas. Cada qual com seus trejeitos, vantagens e desvantagens. Cada qual com suas habilidades e vulnerabilidades… Como as línguas faladas pelos homens…

E, se uma calculadora de 15 ou 20 LOCs já teve problemas… Você, agora, entende o porquê não existe um sistema 100% à prova de falhas. Algum dia, alguém vai esbarrar em uma linha “escrita para dar certo”, mas, que permite que MUITA COISA ERRADA aconteça através dela… E não é como se faltasse linha; concordamos, certo?

A evolução da SI, e os problemas éticos decorrentes

Porque onde tem gente…

Bem, eu já te disse que petróleo é fichinha, comparado ao valor financeiro em forma de dados que uma empresa pode acumular, certo?

Eu também já disse que a SI se tornou uma disciplina necessária para guardar o tesouro da empresa, tal qual o banco (Itaú, Bradesco etc.) guarda a sala-cofre com a grana…

Se eu te dissesse que sei como invadir sua sala-cofre (virtual ou real), mas, que estou disposto a te ensinar como se proteger dessa invasão e se, inclusive, eu te desse uma amostra da gravidade dessa situação (por exemplo, te mostrando que sei o que e quanto você guarda lá dentro), quanto você pagaria para eu te ensinar a se proteger do que fiz?

Infelizmente, esse foi o caminho “de negócios” de parte das “consultorias” (que, nesse caso, mais se assemelham ao modelo dos mafiosos sicilianos da Cosa Nostra, ao vender proteção contra eles mesmos para os comerciantes) … E, assim, essas “consultorias” passaram a fazer invasões “preemptivas”, sem qualquer pedido ou contrato com a empresa-alvo. Quando conseguiam invadir algo, enviavam um contato comercial para a empresa, mostrando que invadiram, mas, invadiram pela nobre causa de despertar a empresa atacada para os riscos que ela correria se o ataque fosse feito por gente “mal intencionada” (porque, claro, eles estavam ali para dar de graça o “como corrigir o problema”… [not!]).

E assim, o mundo é cada vez mais conectado e mais inclusivo quando o assunto é “Internet” e, por causa disso mesmo, cada vez mais perigoso e hostil para todos. Dados e informações são riquezas maiores do que petróleo (fonte), existem e circulam de maneira abundante pela Internet, e pela natureza conectada do mundo atual, precisam interconectar diversos sistemas, em várias partes do mundo. E tudo isso significa oportunidade. Para o bem e para o mal.

Proteger esses dados tão bem quanto se possa é o novo meio de “se criar um banco” (e ficar rico como quem criou os originais). Quem protege melhor, ganha mais. Mas, para proteger melhor, você precisa de um time altamente treinado e constantemente desafiado. Daí, os “red & blue teams”.

O problema surge quando, bem… Seu blue team não é lá “aqueles coco” (saudações, Aloisio!), dorme no ponto, baixa a guarda por achar que o ataque é falso (vindo do red team), mas o ataque é real… Ou quando o seu red team é mais do que bom… É feito de pessoas realmente perigosas. Acontece nas melhores empresas, e nos processos seletivos menos criteriosos…

Se você pensar bem, é o tipo de gestão de pessoas mais maluco do mundo… Você precisa contratar gente competente, acima da média, realmente capaz de causar dano ao patrimônio, e convencê-los a trabalhar pra você, te ajudando a prevenir invasões à sala-cofre… E quando eles invadem, você precisa ter confiança de que eles não farão nada de mal com o que encontraram lá dentro… Melhor recrutar bem… E pagar ainda melhor…

  • Eu preciso dizer que é um pouco fantasiosa a forma como descrevo as coisas… É óbvio que o bom gerente do time de SI não sai por aí contratando hacker em sala de bate-papo do UOL. Mas, a intenção sempre é manter o texto acessível e destacar os perigos de quando você toma as coisas por garantidas… Porque como disse Richard McKenna:

“The way you get killed around machinery is to take things for granted”.

  • Em bom português (adaptado): “O jeito para morrer lidando com uma máquina (ou sistema), é tomar por certo o incerto”.

E não é sempre assim que se morre, Sr. McKenna? 😉

É sempre fácil acabar morto quando você dá as coisas por certas… Especialmente ao lidar com os perigos da vida… Ou dos sistemas…

Tudo pode ser abordado por uma mentalidade de sistemas

Até porque você(nós) toma(mos) tudo por certo e não dá(mos) o devido valor…

Computadores (desde as dezenas deles embarcados em um avião, passando pelo controle a bordo de um míssil, até o notebook ou o smartphone no seu bolso) são máquinas.

Máquinas são sistemas.

Falamos de parte das características dos sistemas no post passado. Outra parte vai por aqui…

Um programa é uma rotina lógica que é compilada e vira o tal “exe” que você utiliza (como nossa calculadora inicial) – estou sendo grosseiro, claro. A junção de vários programas que interagem entre si, dá origem a um sistema.

E sistemas são, de maneira genérica, partes que interagem entre si e resultam em um propósito comum à existência de todas elas. Para que um sistema funcione, ele precisa trocar informação. A informação precisa ser protegida, não só de acesso indevido, mas de corrupções, interrupções, e outras formas que possam impedir que um dado programa do sistema tome as atitudes que deve tomar, diante da informação que ele deveria ter recebido.

Todo vírus de computador moderno é concebido com medidas para tentar impedir que o programa antivírus receba informação (indícios) de que há uma infecção em andamento. E só para te garantir: Um vírus de computador não é nada mais, nada menos, que um programa. Como a nossa calculadora… Só que ao invés de somar, o programador o fez para danificar ou invadir o sistema onde ele for executado.

A guerra é travada no campo de quem consegue interceptar mais informações: O vírus ou o antivírus. Quem souber mais, vence. O antivírus joga com a vantagem de ser “do time da casa” e ter acesso privilegiado a todo tipo de informação de várias partes do sistema. Os demais programas, se possível, o ajudarão com informação.
Mas, acontece que o programador do vírus fará de tudo para que o vírus também se pareça com algo originário do sistema e, portanto, “também de casa”.

É um jogo de “gato e rato”. Nós corrigimos algo. Eles inventam algo novo. Nós fechamos uma porta. Eles acham um cadeado mal fechado.

Não é porque é divertido brincar disso. É porque é impossível se proteger absolutamente enquanto se mantém conectado. E os sistemas são colossais. Dezenas (e até uma centena) de milhões de linhas de código tentando trabalhar em conjunto, como já te mostrei.
Conectar-se é, também, se vulnerabilizar. Você precisa abrir portas. Vale pra Internet e vale pra vida.

Conhecimento não é, necessariamente, Poder

Mas é o caminho mais óbvio para ele…

Em “Game of Thrones” (HBO), há uma discussão entre duas personagens relevantes no jogo político, em que a primeira diz “conhecimento é poder”, e a outra personagem diz “Não. Poder é poder” e põe meia dúzia de gorilas, cada qual com a espada no pescoço do pobre coitado que trucou a outra, anteriormente.
Acontece que a segunda estava errada (a série mostra isso). Conhecimento é mesmo o que gera poder.

Para seguir nos exemplos Pop, umas das publicidades mais geniais que vi, veio da série “House of cards” (Netflix), enquanto eu estava em viagem de trabalho em Brasília (DF). Ao chegar no aeroporto de BSB, um cartaz usava uma frase célebre do personagem central: “Nessa cidade, um erro que quase todo mundo comete é escolher dinheiro antes do poder”, com a foto de Francis (Kevin Spacey) ao lado.
A frase já é forte o bastante, sozinha, mas colocá-la no hall de chegada de BSB foi o que mais marcou para mim. Eu vi. E os políticos também. Assim como os jornalistas. Afinal, “todo mundo” chega e “todo mundo” sai do Distrito Federal, semanalmente, por ali.

Para fechar no ramo Pop, em “Chernobyl” (HBO), em uma das reuniões tensas entre o então Secretário Geral do Partido Comunista (Mikhail Gorbachev) e seu gabinete de crise, o Secretário se queixa de ter que pedir desculpas para aliados, mas, também para os inimigos da então União Soviética. E uma das frases que ele diz é “nosso poder vem da percepção do nosso poder”. Ou seja… Poder, ao menos na política, não é algo totalmente real. Ele depende um bocado de quanto os demais percebem (ou acreditam) que você detém dele.

O que acho interessante de todas essas três citações é que, no fundo, fica provado que seja lá o que é o “poder”, ele descende do conhecimento. Quem sabe mais, pode mais. Se você conhece as pessoas certas, se você conhece os processos, os mecanismos, os meandros… Se você conhece gente que já tem poder, que já tem influência. Se você sabe como manipular isso tudo ao favor do que você almeja (sendo o que você almeja legitimo ou não)…

No fundo, conhecimento sempre foi sinônimo de poder. Não quer dizer que todos que detém conhecimento têm poder. Porque eles podem não saber como usar o conhecimento que têm. Ou podem não querer usá-lo, por autoimposição de limites e de valores éticos e de controles morais ou mesmo coercitivos por parte da Lei e do Estado. Ainda assim, não muda nada: Saber é o caminho para o Poder.

Democracias são sistemas

E, para mim, o governo Bolsonaro é “a consultoria siciliana” fazendo um PenTest na nossa Democrácia…

Sociedades e Ditaduras também são sistemas…

E todos os sistemas podem ser atacados por quem souber mais a respeito deles.

Para muitos apoiadores de Bolsonaro, episódios como o do ex-secretário Roberto Alvim são meras “falhas de trajetória”. “Descuido”. “Deslize”. “Bola fora”. “Acontece”.

“Ele escolheu alguém e esse alguém passou dos limites. Já foi demitido. Fim.”…

Se fosse tão simples, eu estaria dormindo bem nos últimos dias…

Na seção anterior, eu disse que o governo Bolsonaro é a “consultoria siciliana”. Aquela que “testa” o sistema da empresa, sem a empresa pedir.

Originalmente, eu ia dizer que o governo Bolsonaro era o “Red Team that went rogue”, terminologia conhecida na área de SI… Ou seja, “o Red Team que foi pro lado negro”. Eu voltei atrás de usar isso. Porque o Red Team, originalmente, trabalha para sua empresa…

Se a empresa do Bolsonaro é o Brasil, e se o Brasil pediu para ele testar a Democracia, ele testaria, acharia as falhas e brechas, e reportaria o que o Blue Team não fez, mas poderia ter feito, para melhoramos o sistema testado.

Se fosse um Red team que se corrompeu, teria começado certo, com as intenções certas, mas teria se perdido no caminho; por dinheiro, por más influências, ou qualquer coisa do gênero.

Ocorre que, para mim, a cada dia que passa, é mais evidente que o propósito de Bolsonaro (mas, mais do que o propósito dele, o propósito de quem o pôs lá [e você é bem inocente se pensa que estou falando do eleitor dele]) sempre foi esse: De testar o que ninguém pediu para testar.

De tentar invadir o que ninguém queria que fosse invadido.

Fica só a dúvida se quem o pôs lá, entende o risco de que ele – Bolsonaro – não obedeça ao combinado, e não se limite a nada, a não ser ao próprio senso obscuro…

Para entender porquê suspeito disso, você tem que saber como o Brasil surgiu

Mas, claro: Ninguém tem tempo para estudar história básica do lugar onde vive, então, vamos ao crash course:

Acho que um problema na compreensão de todos nós sobre a realidade histórica de como o Brasil virou República e de como chegamos à Democracia, é que fantasiamos muito a ideia de que essas conquistas ocorreram através de luta e sangue, numa disputa até o último homem pela “alma do que é o Brasil atual”…

Ocorre que não foi nada disso.

Historicamente, o Brasil só mudou através de acordos. Nós deixamos de ser colônia com um acordo entre as elites que mandavam no Brasil e nas Capitanias Hereditárias – sabe o Coronelismo típico do norte do Brasil? Então você conhece parte dos herdeiros das Capitanias – e a Coroa portuguesa (em 1822) e, depois, viramos República (acabando com o Império e a sucessão por sangue) com uma tapetada da nova elite agrária brasileira (fincada no eixo São Paulo x Minas) contra o Imperador (o que se sumarizou em 1889) e, só depois, viramos uma Democracia quando a elite brasileira permitiu que parte de sua população votasse diretamente para presidente, em 1894, contando com apenas ~350 mil eleitores e voto censitário – disponível para quem tem posses (e, portanto, não universal, como hoje) (fonte).

Quer saber como voltamos a ser democráticos depois do Golpe de 1964? Com apoio das elites, especialmente, as que controlavam empreiteiras e a mídia, ambas originalmente apoiadoras do Golpe e, mais tarde, descontentes com o governo militar que ajudaram a instalar (fonte).

Então, se por algum momento você já pensou que algo “disruptivo” (neologismo, para o texto ficar mais chique) ocorreu em solo brasileiro simplesmente por “sangue, ideais e glória”, sinto muito ter de estragar sua visão.

O Brasil é fundado como um grande latifúndio. Uma terra para a exploração. E quem mandava no latifúndio era quem ocupava o posto de senhor da produção (a despeito do tipo dela). E isso nunca mudou na constituição do que é o Poder, no Brasil.

Acho que a ilusão de que “o povo está no controle” que vemos por aqui, vem muito da nossa alta exposição (quase sempre, Hollywoodianizada [tente pronunciar isso rápido, 3 vezes]) ao que foi a história dos EUA. Ocorre que lá, diferente daqui, a colonização tinha o central objetivo de fundar uma nação nova, longe do que seus fundadores consideravam a tirania do império britânico (não que, em larga medida, não fossem eles mesmos tiranos terríveis, como comprovaram – ao preço da existência – os nativos de lá).

Brasileiros ao invés de “brasilianos”

E isso explica parte da nossa relação com este lugar…

Já, o Brasil sempre foi um lugar de onde tirar riquezas e mandar para o império português que, antes que você ouse menosprezar, foi nada menos do que o império ultramarino (ou “global”) mais poderoso do período alto da Grandes Navegações, controlando nada menos do que 14 colônias ao mesmo tempo (fonte).

O Brasil carrega de forma tão forte no DNA, a coisa de “terra para se extrair”, e aonde nada se deve investir ou edificar que, diferente de outros povos como, colombianos, mexicanos ou mesmo americanos, nós nos chamamos “brasileiros”.

Ocorre que em linguística portuguesa, o sufixo “ano” destina-se usualmente à nacionalidade de um indivíduo. Já, o sufixo “eiro” é normalmente usado para profissões e ocupações como, carroceiro, barqueiro, cabeleireiro, padeiro, marceneiro…

Assim, “brasileiros” eram os homens que, ao longo da primeira fase da ocupação pelo império português em Pindorama (o primeiro nome da terra que vocês conhecem como “Brasil”), retiravam pau-Brasil daqui para mandar para a Coroa e sua corte.

Ou seja: O que conhecemos como nosso gentílico é, na verdade, o nome original da profissão de quem entrou para extrair e devastar, e quase fez sumir com o recurso natural que, mais tarde, deu nome a uma “nação por acidente”; nação sempre brincando com o risco de se extinguir, pela fúria da própria sanha extrativista (o extrativismo pode até não ser mais tão palpável, mas segue na mentalidade “retire tudo que possa daqui, tão rápido quanto puder”) de cada filho deste solo que és mãe gentil…

Nação por acidente” porque nunca foi a intenção dos colonizadores que isto aqui se tornasse um país. Não fosse a necessidade estratégica de proteger a Coroa, ante o avanço Napoleônico, – estratégia que, antes que você despreze, foi formalmente elogiada pelo próprio Bonaparte – a família real jamais teria pisado aqui e o boom civilizatório que se instalou no Rio de Janeiro e, mais tarde, contagiou o resto do país, jamais teria se iniciado – pelo menos, não com a força e forma como se deu.

Nosso passado não determina nosso futuro

Mas ignorá-lo é de uma burrice descomunal…

Eu tenho a certeza, por posicionamento moral e ideológico, de que todos podem mudar. Se sua história começou de forma ruim, torta ou mesmo acidental, nada disso significa que sua existência precisa ser ruim, torta ou mero acidente. Em resumo, não creio em “destino” e não creio em “caminho sem volta”. Meu entendimento de mundo simplesmente não me permite ver as coisas por este prisma.

Se o Brasil é “uma nação por acidente” e uma República Democrática porque os poderosos assim permitiram, isso não significa que esse lugar não pode ser uma Democracia verdadeira, plena, e em que o povo em sua totalidade, e não oligarquicamente, decide os passos seguintes do país, e com a qual ninguém brinca ou manipula isoladamente. Mas, isso não é mágico. Não vai acontecer porque “tudo que eu quiser, um cara lá de cima vai me dar”… Aliás, se eu esperar “o cara lá de cima” resolver o Brasil, ferrou! Porque, na fila, tem o continente africano inteiro, que está esperando a ajuda há mais tempo, e é bem mais necessitado.
Brincadeiras maldosas à parte, estou tentando dizer o mais óbvio dos óbvios: O Brasil é o que suas elites poderosas permitem que ele seja e, assim que essas elites cansam do que está em curso, elas fazem o que sempre fizeram: Mudam as regras do jogo, com ou sem uso de força bruta. Tanto faz. Elas não se importam de usar a força. Mas se der para parecer que foi “do povo, pelo povo, para o povo”, tanto melhor. Não por ética, mas pela encheção de saco internacional que a força bruta gera.

E é por não reconhecermos o passado que tomamos por garantido e damos pouco valor ao risco de que nada é em prol de você, que não pertence a nenhuma das elites fundadoras desse lugar…

Esqueça a bobagem de classe média vs. classe pobre. Esqueça “burguês”, e esqueça “esquerdista”… Para essas elites que estou citando, somos todos a mesma coisa: Engrenagens e peças de reposição. Se algumas estragarem o andamento da máquina e do sistema que essas elites idealizaram e sempre mantiveram no curso, elas arrancam as peças “defeituosas”, removem as ameaças, e recomeçam a máquina, tudo de novo.

Bolsonaro é parte desse reset. Ele foi escolhido por elites agrárias e por elites financeiras, e suportado por parte da elite descontente com a hegemonia atual de certa família na imprensa nacional (de vez em quando, as famílias que pertencem à uma dada elite ficam bravas com a hegemonia de outra família naquele segmento; é o que acontece no cenário da imprensa brasileira, hoje).

A elite industrial e financeira fez Bolsonaro adotar Paulo Guedes porque a agenda dele vai ao encontro das necessidades atuais dessas elites de competir com o resto do mundo.

“Rodrigo, pelo amor de Deus, que viagem é essa? Parece papo de conspiração, conversa de sindicalista… Esquerdista…”

Garanto: Não tenho nenhuma simpatia pela proposta de Marx para os problemas do mundo, não concordo com o aparelhamento político dentro de sindicatos que deixam de defender seus associados da real agressão nas Empresas, pra eleger deputado, prefeito(…), e nunca vou chamar ninguém de “companheiro/a”, para ganhar votos ou aplausos…

Isso dito, nada na minha discordância faz com que eu me cegue para a solidez do diagnóstico que alguns desses agentes criticados fizeram e fazem. Eu posso não concordar com “o tratamento prescrito” (e, de fato, não concordo), mas o diagnóstico está certo sim:

O Brasil é um país em que a História prova, por via factual, que sua idealização foi sempre a de terra a ser explorada, e que aqueles que receberam ordens do império para explorá-lo, continuam comandando o jogo através dos tempos e das gerações. Desde a independência, poucas novas famílias surgiram nos seios dessas oligarquias que comandam “o show”. Vou citar algumas áreas onde essas elites residem:

Temos elites que comandam a extração de minérios.

Temos elites que comandam a produção agropecuária.

Temos elites que comandam os bancos.

Temos elites que comandam as indústrias.

Temos elites que comandam a imprensa.

Temos elites que comandam a justiça e o braço punitivo do Estado (Forças armadas, polícias).

E todas essas elites são amigas entre si e se conhecem muito bem. E todas elas comandam como o show chamado “Brasil” é conduzido. E quando elas cansam de brincar de alguma coisa com o resto de nós, que não temos sobrenomes de sangue azul, elas usam todo seu poder e influência para “resetar o jogo”.

“Rodrigo, então, você está sugerindo que não existem elites nos EUA, por exemplo? É um problema só nosso?”

Mas, que tipo de idiota você acha que eu sou???

É claro que existem famílias no comando de várias áreas fundamentais à vitalidade e poderio em cada país do globo (é um globo. Aceitem).

Fica para outro dia e para outro post, mas é exatamente por saber que elites comandando o jogo existem em todos os lugares, que jamais concordarei com a visão liberal da Economia, especialmente pautada na ideia de que a regulação estatal é inimiga do “fair play” de oportunidades, e de que a desigualdade do mundo pode ser resolvida via “meritocracia” (spoiler de post futuro: Se você tem esse tipo de acúmulo de poder, passado de geração em geração, “meritocracia” não pode existir de forma plena e plural, senão em condições muito específicas de avaliação; e aí, deixa de ser meritocracia, de fato)…

Mas, como Bolsonaro entra nisso tudo?

Ele é útil, mas, ele também é instável…

Quem “soltou o cão da coleira”, esperava que ele mordesse uns traseiros que andavam muito ousados e, em seguida, esperavam retorná-lo à coleira. Ele poderia brincar com o sistema, mas sem quebrar…

Acontece que Bolsonaro tem suas próprias ideias de ”certo e errado” e não é muito afeito à hierarquia e obediência não…

“Oi? Você está falando que um capitão reformado do Exército Brasileiro, não é afeito a hierarquia e obediência?”…

Bem, você já respondeu, se pensou assim: Atenhamo-nos, ao “reformado”.

O Brasil é um país em que todos são iguais perante a Lei (CF/88, Art. 5º, Caput). E é por isso que quando Juízes roubam e corrompem (Nicolau dos Santos Neto, já ouviu falar?) eles são punidos com aposentadoria integral (cassada década depois, sem devolução do que foi pago, só pra dar o “cala boca” em quem reclamava desse absurdo que continua acontecendo aos montes), e é por isso que Oficiais das Forças Armadas acabam reformados (aposentados) quando atentam contra a própria instituição… Porque esse é um país em que todos são iguais perante a Lei…

Bolsonaro foi “reformado” porque, não tendo seus desejos salariais atendidos pelos superiores, publicou plano de como atentar contra o próprio Exército Brasileiro (fonte). Ele dirá que foi inocentado do processo, e é claro que foi: Porque, como todos são iguais perante a Lei, no Brasil, Oficiais do Exército não “botam pra quebrar” contra outros Oficiais do Exército. Se Bolsonaro fosse Praça (Soldado, Cabo, Sargento), teria morrido em algum porão pelo que fez, da mesma forma que ele sempre deseja para “os comunistas” (seja lá quem são esses “comunistas”; talvez, eu mesmo seja um, sem saber).

Por não ser alguém que respeita hierarquia e não se sente obrigado a obedecer a lei (nem mesmo a lei marcial, mais rígida e que se aplica ao militar), ao soltar Bolsonaro da coleira de onde ele jamais deveria ter sido solto, seus novos donos (que bancaram sua candidatura com todas as armas disponíveis, incluindo o financiamento milionário de Fake News [fonte]) esqueceram de verificar o óbvio: Ele é um “cachorro louco”, com suas próprias ideias do que é certo e errado, e de quem é bom e de quem é mau.

E Bolsonaro (e seus escolhidos) vem fazendo um PenTest na Democracia

E você não deveria achar que é “sem querer”…

Finalmente, no clímax desta opinião (e é “opinião” porque não posso provar materialmente que Bolsonaro pensa como eu aponto que ele pensa; e eu não acho que minha opinião transforma hipóteses em fatos…), eu proponho que Bolsonaro, seus ministros, seus filhos, secretários, assessores, e todos aqueles que já participaram de algum ataque à nossa Constituição, à outras Instituições democráticas, à parte da Imprensa que não se alinhou (e que também é uma elite, mas é paradoxalmente necessária à Democracia) e etc.; estão todos participando em um PenTest do quanto a Democracia aguenta.

Quer dizer… Se a Democracia é um sistema, ela é só o Front-End (o sistema exposto). Por trás dela, há o Back-end (o sistema de suporte) que é a Sociedade…

Então, na verdade, quando Bolsonaro e seus partidários testam a Democracia brasileira, o que eles realmente estão testando são os limites do povo brasileiro…

O que eu realmente acho que Bolsonaro tenta descobrir é o quão difícil seria tomar o poder do Brasil para si, e quanta resistência popular, social, institucional, e sistemática, ele realmente teria se tentasse fazer isso…

Então ele tenta calar a mídia que não “fecha com ele” (não porque a mídia é boazinha, mas porque ela não confia mais que ele “vai jogar o jogo dentro das regras”). E se batemos palma para o cala-boca dele (ou se a maioria bate palma), ele sabe que calar a mídia não será difícil.

Depois, alguém a serviço dele diz que fechar STF e Congresso é fácil de fazer. Só precisa de um soldado e um cabo… E as pessoas aplaudem de novo. E eles medem se os aplausos são mais altos do que as vaias. Se são, mais um ponto pró-invasão…

Depois, alguém brinca com direitos e garantias, aqui e ali, e, na verdade, tudo parece muito ao acaso, muito desconectado…
E se as vaias superam os aplausos, aí, surge alguém do governo para pôr panos quentes e calar as bocas críticas… E eles dizem “não… Já passou, foi um tropeço, foi um descuido, um exagero…. Acabou gente! Circulando… Não tem mais nada para ver aqui” …

Mas, se você ousar ser um pouco menos crente… Um pouco menos “cordeirinho”… Se você ousar pensar que esses ataques são sistemáticos, coordenados, e não ocasionais ou acidentais, e miram as várias áreas que compõem um sistema que representa uma sociedade em regime democrático…

Então você vai ser capaz de supor o que eu suponho:

Que Bolsonaro está fazendo um PenTest que ninguém o contratou para fazer. Queriam que ele brincasse com o sistema, mas que parasse antes de quebrar. Mas, ninguém sabe ao certo se ele vai parar.

E, como eu, você também vai começar a suspeitar de que quando Bolsonaro estiver convencido de que é possível “invadir o sistema”, só Deus sabe o que ele vai fazer com o poder adquirido sobre ele.

Teoria da Conspiração, sim. Em algum grau, pensar como penso aqui, exige uma dose de imaginação, já que PROVAS não são tão fáceis de conseguir, e jornalismo investigativo não é minha profissão. Mas, só estou ousando pensar além da mensagem oficial de que tudo não passa de “mal-entendido”. De “fala fora do contexto”. De “excesso”.

Ou “coincidência”… Imagino o tamanho do esforço do Cosmos para fazer um Secretário de Cultura tocar Wagner, enquanto repete quase que textualmente o ideólogo-mor do Nazismo… O Cosmos precisou alinhar uns 100 planetas para essa coincidência ser viável.

E ainda que eu esteja errado (e, não duvide caro[a] leitor[a]: Torço a cada segundo pra errar feio nisso aqui), e que seja, mesmo, tudo apenas uma grande pataquada de incompetentes e inaptos, escolhidos a dedo pelo sujeito eleito pelo voto popular de gente que pensa só com o fígado… O estrago desses discursos não poder ser menosprezado, ainda assim.

Se Bolsonaro não é mesmo a favor de discursos Nazistas (e não apenas “porque os judeus ficam de mimimi” [termo que ele adora utilizar], mas porque é filosoficamente contra), o fato é que seu discurso virulento, raivoso e segregacionista, dá o reforço moral para gente lunática sair dos porões onde estava trancada com toda sua loucura e perversidade.
Se Bolsonaro não apoia realmente o espancamento de gays e lésbicas, seu discurso de que estes são “menos que gente” reforça, no coração de gente bestial, “o direito divino” de resolver o que Deus não parece se importar. Porque se Deus é tão poderoso, e gays o enojam tanto, ele poderia matá-los com o simples comando da palavra, ou até proibi-los de existir, fazendo com que todos nascessem sempre héteros, não? (E sim, isso é uma provocação para quem se irrita mais do que Deus parece se irritar com os problemas privados da vida sexual alheia).

Enfim: Se Bolsonaro não é o Demônio que suas falas e atos demonstram, no mínimo, ele avaliza, com direito à chancela presidencial da República Federativa do Brasil, todo tipo de mal e danação que todo ser humano, realmente de bem, repudia como: Por exemplo, matar alguém que pensa diferente de mim, ou que ama alguém que eu não amaria.

E esse penúltimo parágrafo é o melhor cenário. Eu garanto

O pior, eu expus ao longo do texto inteiro…

Mas, sumarizo: Bolsonaro está testando o quão vulnerável é o sistema democrático brasileiro. E nem seus donos (que o tiraram da coleira), nem seus eleitores; mas só Deus sabe o que ele fará quando descobrir as vulnerabilidades desse sistema.

E não existe sistema totalmente seguro…

Sobre Perdas & Danos

Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Art. 927, Código Civil de 2002.

Este vai ser um daqueles…

Começo, de cara, com um “disclaimer”, para gastar minha cota de inglês desnecessário e, também, para te avisar de que você, talvez, queira calibrar o que vai ler.

Mas, calibrar como?
Bem, imagine um segmento de reta com dois pontos extremos entre si, numa graduação centesimal de 1 a 100, sendo que à extrema esquerda, temos o otimismo, e à extrema direita, o pessimismo. O que você vai ler deve estar, em sua forma in natura, muito próximo da marcação de “70”, ou até mesmo “80”, já perto do fim do lado direito deste segmento proposto.

E, aqui, temos um duplo exercício: Um exercício simplório de geometria, misturado com um exercício avançado de disposição da liberdade. Cabe a você, caro(a) leitor(a), decidir se o que digo está muito distante da realidade porque é deveras pessimista, ou se está muito longe da verdade porque ainda não é pessimista o suficiente.

Você também pode concluir por uma terceira via: O texto atinge o patamar de “realidade”, pois, ele tem o pessimismo que a realidade circunstancial pede. Mas, se este for seu caminho, você escolheu olhar para a questão por um ângulo pessimista, já que no exercício original, eu propus que minhas palavras tenderão à extrema-direita do segmento; na altura da marcação em que se lê “70” ou “80”, em um segmento com graduação centesimal de 1 a 100.

Todos os modelos estão errados

Mas, alguns são úteis…

Quem dera a frase fosse minha. O autor (para alguns, apenas o difusor) dela, o estatístico britânico George Box, a cunhou diante de um desafio estatístico que lhe foi destacado. Eu já falei dele por aqui. Eu lembro. Lembro de tudo que escrevi. Isso é, muitas vezes, uma maldição, já que me ajuda a pensar em quanta coisa eu já disse e quantas delas eu queria poder ter dito melhor, diferente, ou nem ter dito. Estou fugindo do tópico. Voltando, porque “recordar é viver” (que também não é minha) e na raiz da palavra “recordar” achamos “repassar através do coração”. Como este é um texto emotivo, segue:

George Box a popularizou depois de perceber que o problema com as fórmulas e representações, não só no campo da Estatística, mas, também, nas Ciências de modo geral, se dava porque um modelo só pode representar um certo tanto de dados, variáveis e informações. Não importa o quão agressivo seja o teu esforço em coletar tantos dados e aperfeiçoar tanto quanto possível suas fórmulas e equações, elas são, naturalmente, só uma tentativa de representar uma pequena parte da Realidade e jamais Ela por inteiro (com letra maiúscula, como se fosse uma entidade).

Como modelo, eu adotei o Pessimismo

E isso já me causou todo tipo de problemas…

Todo mundo que convive comigo sabe que eu raramente considero que tudo vai dar certo “de largada”. E essa é uma decisão racional de como encarar o mundo e tudo o que reside nele.

Para a maioria dos brasileiros, o Otimismo é quase uma marca registrada da “brasilidade”, ou, do que é ser brasileiro. Assim, o fato de eu ser aberta e conscientemente pessimista causa uma certa surpresa, quase sempre seguida de uma certa rejeição porque, como já dito, ser otimista é uma marca do que é ser brasileiro, e ser pessimista é uma negação de boa parte da brasilidade.

Isso tudo já foi tema de algumas sessões de terapia, claro, porque, modo geral, as pessoas ao meu redor sempre esperam que eu seja mais otimista. Ainda que eu conseguisse, eu não escolheria ser, enfim. Não é quem eu sou, nem o caminho pelo qual eu percorri. A conclusão, junto à minha psicóloga, foi de que meu pessimismo não é um problema. Nas palavras dela, eu tenho uma percepção acentuadamente analítica das situações e, por inúmeras experiências passadas, e por lembrar delas, eu tendo a não crer nos melhores resultados, porque, bem… Porque os melhores resultados não são a regra, nunca. Prova?

Em Probabilidade, um ramo da Matemática, sabemos que em um jogo de 6 números escolhidos entre 1 e 60, temos uma chance de sucesso, contra 50.063.859 (cinquenta milhões, sessenta e três mil, oitocentos e cinquenta e nove) de fracasso. Estou falando da Mega-Sena, claro, mas, aplique o mesmo modelo (lembrando que todos estão errados, mas, alguns são úteis) e você verá que o Otimismo “à brasileira”, como seu irmão, o Pessimismo extremo, é uma distorção da Distribuição Normal de eventos em uma dada série. Em resumo, o jeito otimista do brasileiro é um problema porque não nos revoltamos com o que está errado, sempre contando que na nossa vez vai dar certo (embora a probabilidade diga o exato oposto). E, claro, se você perguntar para o último ganhador da Mega-Sena, dane-se as probabilidades: Ele jogaria todos os dias da vida dele (porque, óbvio, para ele a probabilidade foi “a uma”, e não as 50.063.859 que todo o resto de nós experiencia durante a vida toda).

Voltando ao meu divã, minha psicóloga e eu concluímos que meu pessimismo ainda não é um problema. Ele é acentuado, claro, construído às custas da pilha de experiências que eu vivi, e do resultado das minhas tentativas, mas, nas palavras dela (de novo): O pessimismo só se torna um problema quando você deixa de tentar por temor das probabilidades contra si ou contra o intento. De outra forma: Enquanto meu pessimismo não me impedir de tentar, ele apenas me fará ter menos amigos e menos simpatia. Em troca disso, ele também me ajuda a prever o que a maioria não conta que possa acontecer. Desse modo, se eu for inteligente o suficiente, posso usar isto a meu favor. Basta prever os riscos que os outros negligenciam, e preparar planos para cada cenário de falha. Não neutraliza o resultado final da probabilidade (a Mega continua resultando em uma chance “pró” em mais de 50 milhões “contra”), mas me faz contar menos e menos com o “final feliz automático”, e mais com a diversificação de planos e caminhos para atingir as metas que tenho.

Mas, eu posso justificar racionalmente o Pessimismo como uma forma inteligente de encarar as situações. É o que faço a seguir.

Todo sistema é entrópico

Melhor dizendo: Todo sistema real é entrópico…

A Entropia é uma propriedade originária do ramo da Termodinâmica, e determina o grau de desordem de um dado sistema. Essa desordem não deve ser confundida com “bagunça”. O exemplo clássico é o cenário do pote com dois grupos de bolas, cada um de uma cor, preenchendo 2/3 do pote. O terço restante está vazio. No estado inicial, as bolas azuis estão no fundo do pote, e as vermelhas por cima das azuis, totalmente separadas. Então, tampamos o pote (portanto, esse sistema é, agora, hermético) e balançamos um pouco. As bolas vão se misturar. E depois, balançamos mais um pouco. Elas se misturam mais. A Entropia é a medida de quanta desordem há no sistema atual, desde a situação inicial dele. O que ocorre é que, não importa o quanto balancemos o pote, ele nunca mais voltará à situação inicial.

É por causa disto que, com a tecnologia que temos, e respeitando as leis da Termodinâmica, nunca conseguiremos criar um sistema moto-perpétuo. Um sistema em que um gerador alimente um motor, e este alimente de volta o gerador, está fadado a desligar, não importa o quão eficiente seja o gerador ou o motor. Todos estão sujeitos a perder energia na forma de calor, e a entropia do sistema garante que nada voltará à forma original. Portanto, é impossível conservar a energia original (no exemplo, a rotação do eixo do motor) e convertê-la de maneira ordenada para outra forma de energia (como a energia elétrica do gerador) sem que este processo gere um desvio considerável de energia na forma térmica.

E assim é com todos os sistemas. Não importa o quanto cuidemos do nosso corpo, a perda de vitalidade ocorre ao longo da vida. Não importa o quanto cuidemos de uma máquina, o destino dela é parar de funcionar pelo desgaste. Mesmo em sistemas financeiros, onde o acúmulo de capital sempre alavanca o crescimento deste mesmo capital, a regra tende a permanecer: Para manter o poder de compra de um dólar estado-unidense de 1860, o consumidor norte-americano precisa desembolsar 30,99 dólares atuais (fonte). E estamos falando de uma economia que, com erros e depressões, deu mais certo do que errado ao longo dos últimos dois séculos. Em outros sistemas financeiros, a perda é mais evidente, embora sistemas financeiros não se comportem como sistemas termodinâmicos. No primeiro caso, as coisas valem o que acreditamos que elas valem. No segundo caso, não importa a opinião, os sistemas vão gerar calor e desgastar. Ainda assim, o primeiro se comporta, muitas vezes, como o segundo.

E tudo isso para demonstrar que a escolha pelo Pessimismo é uma escolha lógica. Na natureza, e mesmo nos sistemas artificiais (em grande parte), a Entropia está presente, e todos os sistemas tendem à decadência. No campo da Probabilidade, a Distribuição Normal de eventos, tanto contra, quanto a favor de uma dada situação, demonstra que a situação ótima é tão remota quanto a pior, e o que resta são situações que podem ser boas ou não, mas, se só uma situação lhe serve (como no caso da Mega-Sena, ou em outras situações decisivas com apenas um desfecho bom), as chances estão todas contra.

Assim, eu contrario a brasilidade. Eu contrario um dos traços mais marcantes do meu povo: Contar com o melhor. E, com isso, não faço tantos amigos, nem sou tão popular quanto poderia ser se adotasse um estilo altamente positivo e otimista (quem sabe, com falas de coach e um coque samurai) em relação ao desenrolar das coisas e dos atos da minha existência. Curiosamente, isso me agrada. Viver em função do que os outros esperam de você é sempre um enorme desgaste (porque os sistemas, como eu já disse, sofrem com a entropia, e as relações humanas não escapam disso). Manter relações com base em otimismo requer um enorme dispêndio energético para repor o que se perde com a entropia delas.

Eu não terei a vaga de gerente de vendas. Isso é certo. Ele precisa vender sonhos, e eu não acredito neles por essência do meu pensamento. Também, deve ser difícil me tornar um político de destaque. Meu povo conta com gente que venda um otimismo enorme, e raramente meu povo reage bem a pessoas com uma visão cética da realidade. Ainda assim, a Escola Cética tem representantes em todos os campos da política, em vários momentos históricos, e – contraditoriamente o bastante – há alguma esperança para um pessimista como eu.

Ter uma abordagem pessimista, se basear numa análise pessimista da realidade, de maneira nenhuma me impede de ter metas, planos e até sonhos. Apenas me coloca numa situação de não empolgar ninguém com o que tenho a dizer. Eu não consigo, modo geral, dizer para as pessoas que tudo vai acabar bem enquanto elas estão amarradas na linha do trem de carga. O que consigo fazer, por outro lado, é dizer a elas que se decidiram enfrentar bandidos ferroviários, o melhor a se fazer é andar por aí com facas e canivetes e, se possível, ter alguém escondido para cortar as cordas na hora derradeira. Não é tão motivador. Sei disso. Mas, me trouxe até aqui, e onde outros tropeçaram, eu prosperei. Por outro lado, minha análise me diz que não vou tão longe quanto quem pula por cima de precipícios do mesmo modo que pula da calçada para a rua, por sobre o meio-fio. Estou em paz com isso, todavia.

A antiga cultura chinesa (seja no Confucionismo ou no Taoismo, ou mesmo antes dessas Escolas) sempre ensinou que o equilíbrio é a mais importante virtude de alguém sábio. Mais importante do que ser muito otimista ou muito pessimista, muito prático ou muito teórico, muito sonhador ou muito cético. E assim, o que tento fazer é me cercar de pessoas que “calibrem” esse modelo de análise do mundo que tenho, de tal modo que eu tenda ao equilíbrio, mesmo que de forma externa e imperfeita. Trazer esse balanço para dentro de mim ocorreria de forma artificial e não é quem eu sou, portanto, esse tem me parecido o melhor remédio contra um eventual desequilíbrio tendente ao pessimismo extremo.

Mas, não é só sobre mim que eu quero falar. Já falei o que você precisa saber para entender “de onde vim”, e como eu vejo a situação a ser exposta em seguida.

Meus amigos foram embora

De novo…

Todos os anos, nos últimos tempos, o Daniel e a Heloísa têm feito um sacrifício árduo. Saem de suas casas, ao Norte, e vem para o Brasil. Isso tem alto custo. Moraram no México. Agora, moram nos EUA.

Eu me lembro bem de quando foram de vez. O Daniel me ligou no meio de uma semana comum e sem qualquer ocorrência de grande vulto, e disse que precisava conversar comigo e de alguns conselhos.

Somos amigos desde os meus 15. Já passamos por todo tipo de história. Momentos de profunda depressão, e de grande alegria. As bandas de rock, as desventuras amorosas. Os churrascos, as festas, as roubadas. Atravessar parte do litoral paulista sem plano e sem renda, o “sal de forno”, a noite na rodoviária. O cursinho, o ingresso na faculdade pública, o abandono de certos planos e sonhos. O começo da carreira, mais desilusão, e a fase da ascensão. Cada um viveu isso em um dado momento, e contou com e para o outro.
Foi, sem sombra de dúvidas, uma amizade que definiu bastante como um e o outro cresceram e lidaram com uma fase turbulenta e delineadora do que é a vida humana. “Foi”, mas continua sendo, claro. “Foi”, porque a distância, o fuso e outras coisas tornam ela menos presente e menos constante. Mas, também continua sendo porque, sempre que podemos, estamos interagindo dentro dos limites impostos pela realidade. Além disso, depois dos 30, você não se transforma por completo, então, a amizade não se torna mais a parte que define como você vai ser. Você, no máximo, apara algumas arestas, fortalece conceitos e preconceitos, e vai ganhando experiência para preencher seu empirismo adiante.

O Daniel é um homem muito inteligente e, uma vez em uma multinacional, não demorou para começar a ganhar notoriedade, desafios e cargos maiores. Hoje, gerencia quem gerencia, e está cada vez mais perto do nível estratégico. E é bom dizer que, no meio disso, ainda houve uma demissão durante a crise, e foram buscá-lo quando a coisa normalizou. Não é preciso defender adiante, portanto, o nível diferenciado de profissional que ele sustenta.

O título dessa parte pode soar meio ofensivo a todos os outros amigos que ficaram (e os que ficaram são mais numerosos do que os que foram). Não é a intenção, e lamento se alguém se sentiu “menos amigo”; isso nunca foi a missão. Mas, eu precisava falar sobre perdas e danos.

Eu perco e sinto os danos, toda a vez que eles se vão. E isso ocorre, felizmente, uma vez por ano, nos últimos anos. É caro e doloroso para o Daniel e para a Heloísa. E para mim, é só doloroso. Mas, se isso é tudo o que podemos ter, pela realidade imposta, é melhor passar por isso do que não ter em absoluto. Óbvio.

Voltando para a conversa que tivemos antes do Daniel bater o martelo pelo plano de assumir um time no México, nós passamos pouco mais de duas horas avaliando o que sabíamos dos dois cenários. Aquele em que ele não fazia nada para sair daqui, e aquele em que ele “encarava o mundão”.

Eu juro: Eu procurei.

Procurei uma única razão para dizer “cara, é melhor sair dessa. Isso pode ser bom no curto prazo, mas não vai ser bom no médio e no longo”. Ou algo como “por mais tentador que seja, as oportunidades que você terá aqui serão mais recompensadoras do que qualquer aventura por lá”.

Acontece que eu não achei nada.

E eu tive que dizer “Daniel, eu lamento por nossa amizade e por tudo que fazemos juntos… Mas, não consigo achar uma só razão para você declinar esse convite”. E acho que ele disse algo como “É o que eu temia”, seguido de uma risada um pouco nervosa. Não havia alegria. Só razão e pessimismo.

Que o Dani e a Helô não me entendam mal: Eles e a Ruby (a companheira de quatro patas) estão muito bem. A vida tem sido leal com o esforço e com o sacrifício. Ele tem crescido mais e mais na empresa, e a Helô sempre elogia as experiências no México, e começa a ter novas experiências nos EUA, também. Tem a bagagem cultural, as línguas aprendidas, as vivências, as paisagens, os acessos aos bens de consumo de forma muito menos sofrida; enfim… Tem tudo isso.

Mas foi a razão e o pessimismo que nos fizeram perder o Dani e a Helô “para o mundo”. E eu posso dizer, sem medo de errar, que se eles tivessem um pouco mais do país que nasceram, não teriam ido. Um pouco mais de confiança. Um pouco mais de segurança. Um pouco mais de perspectiva. Um pouco mais de tudo. Porque quando eles decidiram fechar as malas, deixaram para trás a chance de conviver com todos os que faziam sua vida, até ali, tão preciosa. E ninguém abre mão disso “por pouco”.

Aqui, eu imagino que vão surgir filósofos à esquerda e à direita das correntes possíveis. Vão defender que um sonho requer sacrifícios. Outros dirão que eles não deixaram de fato, e que dá para amenizar a distância com tecnologia, enquanto outro fim de ano não chega. Haverá os que atacarão e apoiaram cada uma das escolhas na mesa. Ir. Não ir. Sacrifício. Raízes. Aventura. Família. Cada qual valoriza, na ordem em que aprendeu a valorizar, cada tipo de argumento. Para mim, são todos inúteis no caso concreto.

No caso concreto, só admito a resposta vinda do Daniel e da Heloísa. Eles sentiram na pele, eles pagaram e pagam o preço, e eles colhem os frutos, doces ou amargos, ou até agridoces… Mas, na falta deles, eu estava perto, participei, e ouvi quando o martelo foi batido. E o que não foi dito, mas estava lá, foi “Caramba… Então é isso mesmo? Vamos sair daqui? Vamos ter de sair…”.
Era um misto de decepção por não achar os motivos certos para dizer “não é a hora, não é pra mim, não é bom” … Com um misto de medo do desconhecido. Impulsionado pelo sonho quase omnipresente nas populações de países pobres de imigrar para lugares melhores, ou, para ser mais justo, “aparentemente melhores”, já que você pode ter uma vida boa no Brasil, e passar por apuros enormes ao morar na Finlândia; o que quero dizer com isso é que “melhor” depende absolutamente da resultante da tua experiência com o exterior, e não de indicadores mundialmente calibrados ou pesquisas de perspectiva nacional.

E acho que o lado preocupado do Daniel contou comigo para achar a razão inquestionável para não ir. Quero dizer: Quem me procura para esse tipo de assunto não pode nunca achar que vai ouvir algo como “nossa, vai ser demais, e você vai ver o mundo, e vai fazer outras amizades, e vai ser incrível”, ou “nossa, agora tenho uma casa pra ficar quando eu for naquele país” … Eu já disse: Se você me conhece há tempos, sabe que sou alguém com um modelo pessimista de análise, e que eu acredito na entropia dos sistemas. Se não me conhece, bastaria ter lido, com mais cuidado, o começo dessa publicação.

Para “azar” do lado preocupado do Daniel, meu modelo de análise não se corrompe para o lado que mais me agrada. Teria sido “fácil” (não moralmente fácil) manipular as situações, dados e perspectivas, e incitar os medos mais profundos do amigo, que já me ligou preocupado e aflito, e tudo para mantê-lo perto de mim e de todas as pessoas que compõem as nossas vidas, em comum ou não. O lado preocupado do Daniel talvez amasse a resposta “essa é uma péssima ideia”.

Não foi como decorreu. Analisamos o que estava na mesa. Analisamos a perspectiva do mercado brasileiro versus as expectativas que o Daniel tinha para a própria carreira. Analisamos o que ele esperava para a própria vida, para a vida a dois com a Heloísa, e o que ele queria proporcionar para si e para ela.
E sair do Brasil foi a decisão óbvia. Mesmo em 2014, quando tantos conterrâneos meus ainda achavam que o Brasil tinha entrado numa virtuosa crescente que nos levaria ao patamar de país que honraria a já trágica e eterna promessa de “país do futuro”. Trágica sim, porque, desde que isso foi prometido aos brasileiros, parece que todos nós que nascemos aqui, seguimos de braços cruzados esperando alguém (excluindo nós mesmos) fazer esse “país do futuro” acontecer.

E a lista não parou de crescer

E outros amigos e colegas seguem saindo…

Alguns eu conhecia bem, outros, eu cheguei a estar no casamento. Alguns, eu apenas gostava de trocar meia dúzia de palavras, mas, de todo modo, todos deixaram pessoas queridas aqui, como o Dani e a Helô.

Renato e Diego, esposas e filhos, foram para Lisboa.

O Rodrigo foi para Foster City, na California.

Antes deles, o Fernando já tinha ido para Vancouver.

O Paulão foi para Nova York.

O RodG já estava em Seattle.

O Leo Fagundes, esse iria para os EUA de qualquer jeito, em qualquer circunstância (legal, claro). Conheci poucas pessoas tão determinadas a morar lá.

Recentemente, o Mark, colega de trabalho na HP, voltou com a esposa brasileira para sua terra natal, a Holanda, depois de mais de uma década aqui.

Antes ainda, já havia outros colegas e amigos indo para o Texas, San Francisco, San Mateo, Seattle, Londres, Melbourne, Sidney, Helsinki…

A lista nunca desacelerou e, na verdade, depois de 2016, a lista apenas cresceu e ficou mais rápida, mais imprevisível. Gente com quem conversei um pouco antes e me disse que não tinha motivos para sair, saiu pouco depois da conversa. Senso de oportunidade, vai ver. Mas eu acho que não. Tem algo a mais.

Não há nada de errado em sair

Se pelos motivos certos…

Ora… O “motivo certo” não seria o motivo de cada um? Sim! E não…

A história da raça humana é também uma história de migração. Falar em “verdadeiro brasileiro”, ou “verdadeiro americano” é falar em povos indígenas, tão somente. E até mesmo eles (ou seria “principalmente eles”?) têm a constante movimentação pelo terreno como uma forma de permitir que a terra se regenere e permita um novo ciclo de consumo, mais tarde. Então, não: Não há, definitivamente, nada de errado em sair do seu país de origem e ir morar em outro lugar. Seus antepassados, todos eles, fizeram isso em algum momento; alguns, mais de uma vez. A Europa teve diversos impérios continentais com constante processo de migração dos seus povos. Nem mesmo a Europa setentrional/nórdica/escandinava pode se dizer isenta disso.

E os motivos para sair do país são sempre pessoais, é lógico. Se você nasceu em Londres e concluiu que o clima chuvoso não é pra você, você tem todo o direito de ir morar em Cape Town, ou mesmo na Austrália e, de quebra, não tem que reaprender um idioma inteiro, o que é muito bom pra você.

Então, o que eu construo, a seguir, não é uma crítica à vontade de mudar. Essa é, pra mim, sempre legítima e de justificativa de foro pessoal e não comparável.

Mas, o que se deu em parte relevante dos casos citados foi a exaustão da fé, da paciência, e a prosperidade do medo generalizado e da ansiedade quanto ao próprio futuro. E, sem qualquer intenção de justificar as escolhas de cada um (que são totalmente privadas e alheias a mim), a culpa por esses sentimentos e o esgotamento de parte deles é do meu país. Não das pessoas que se foram.

Parece não fazer sentido. Talvez, não faça mesmo. Mas toda vez que um conhecido parte do Brasil em busca de uma vida melhor, na minha cabeça fica a ideia: “Devemos desculpas a ele/ela/eles”.

Ninguém deveria ser expulso (ainda que de forma silenciosa) do país em que nasceu, mas, recentemente, o Brasil forçou, sistematicamente, aqueles com condições a sair daqui. Forçou com medidas estatais e forçou com atitudes do povo que ficou. E, claro, isso não agrada a quem ficou. Mas, eu já disse que não falo ou escrevo o que agrada mais. Eu falo e escrevo o que consigo constatar por meios objetivos, como estatísticas, bem como por meios empíricos, como uma conversa com quem está deixando este lugar para trás.

O Brasil se tornou um país hostil para pessoas inteligentes, com competência e talento acima da média, e todos os que tiverem a chance de sair devem acabar saindo, senão por ideologia (como eu, só por ora).

A pergunta lógica a seguir seria “por que?”. O “porquê” dessa questão tem muitas respostas possíveis, mas, se tentarmos manter critérios objetivos, evitando variações de humor e de ponto de vista, veremos que o Brasil tornou-se inóspito a quem contrariar qualquer parte do status quo. Mas, o ponto de pressão sobre aqueles que têm meios de sair parece ter chegado ao limite de alimentar o rompimento com a terra natal de maneira escalar.

Analisemos:

Ser miserável nos EUA ou aqui não é exatamente diferente. Em ambos os casos, você não tem o bastante para seguir vivendo, e sua existência é feita de dor, de ausência, e de exclusão.

Se você é rico (rico mesmo… Estou falando e alguém com mais de 10 milhões de dólares acumulados), tanto faz se você mora no Brasil ou nos EUA. A sua experiência de vida é de acesso pleno aos bens de consumo, saúde de primeiro nível, e você consegue o que quer em ambos os lugares. Poderíamos discutir que a segurança no Brasil é um problema, mesmo para os ricos, mas alguém com 10 milhões de dólares ou mais não terá muitos problemas com isso, mesmo aqui. Para balancear, devemos lembrar que nossa Justiça e Legislação favorecem constantemente os mais ricos, e que nosso clima é sempre regular, sem excessos ou catástrofes naturais como no território dos primos ricos do Norte. “All in all”, eu diria que não faz diferença onde você mora, com o poder aquisitivo alto.

Mas, se você está numa classe flutuante como a classe média… De origem nem tão pobre, nem tão rica, com o sonho constante de ascender, mas sempre diante do risco iminente de sucumbir… Nesse caso, o Brasil é um dos países mais hostis que você poderia morar. Você tem inteligência suficiente para crescer na vida, mas não o bastante para criar uma tecnologia nova e fundar uma empresa multimilionária. Com isso, empreender com pouco dinheiro te expõe a todo tipo de mazela que o Estado brasileiro é capaz de propor. Você ganha bem o bastante para ter seguro, mas não para blindar seu carro ou ter seguranças em casa. Você até que mora bem, mas corre riscos com enchentes e deslizamentos, e ainda depende do transporte público para manter a economia nos trilhos. Você tem acesso à saúde, mas só enquanto for empregado e tiver o convênio de bom porte que sua empresa banca… Se você está nesse grupo que nunca foi rico, mas está longe do real sentido da palavra “pobreza”, o Brasil é, de fato, um país muito hostil para seus planos e sonhos.

Eu sei o que alguns estão pensando: “Pobre classe média e seus problemas de branco”. Eu conheço esse pseudo-argumento. Acontece que a classe média é o assalariado deste país. E essa classe média que emprega a maior parte das pessoas em um país com constante desindustrialização e um aumento do ramo de serviços. É essa mesma classe-média que arca com a maior parte do custeio da máquina pública (incluindo os programas sociais), seja porque ela é numericamente relevante na demografia, seja porque o modelo fiscal brasileiro a esmaga entre os benefícios (legais e ilegais) aos mais ricos, e as isenções (justíssimas, destaco) aos mais pobres. Quando você se sente nesse rolo compressor e há uma saída para fora desse modelo, é mais do que óbvio que você vai tentar escapar.

Só para uma comparação objetiva:

O pior estado dos EUA, quanto ao IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano) é o Mississippi (fonte), com base em dados de 2017. O estado atingiu um IDH de 0.866, equivalente ao IDH médio da Polônia que, bem sabemos, não anda lá um lugar bacana de se viver, com seu governo autoritário e outros problemas sociais como uma população voltando a se apaixonar por contos de supremacia das raças, etc…. Ainda assim, o Alabama, quadragésimo nono na lista, atingiu o IDH de 0.882, equivalente ao IDH da Itália. Dali para cima, o IDH só melhora, e a comparação também. Alguns estados são comparáveis à Suíça e Noruega.

Já, no Brasil, o melhor estado é, obviamente, o mais desenvolvido, e estamos falando de São Paulo (fonte). Seu IDH-M é de 0.826. O pior Estado do Brasil, Alagoas, tem o IDH de 0.683. O melhor estado brasileiro tem o IDH 40 pontos menor que o pior estado americano. Se você morasse no Mississippi, estaria, ainda assim, melhor assistido nos itens “índice de educação”, “longevidade” e “renda”, todos abarcados pelo IDH-M, do que poderia estar em São Paulo. E, como eu já sustentei, isso faz diferença especialmente para você que não é nem rico, nem pobre, e que depende da capacidade final do seu poder de compra para ascender ou, ao menos, evitar o descenso.

O Brasil se tornou um pesadelo para pessoas capazes

E não há mal que não possa piorar…

Brain Drain” é um termo conhecido no exterior quando o tema discutido é a “fuga de cérebros” de um dado país. Em 2011, a Receita Federal informou que ~8 mil declararam saída definitiva do Brasil. Em 2014, o número subiu para ~12 mil. Já, no período passado, o número de declarações de saída definitiva foi de ~22 mil (fonte). E se estamos falando em saída definitiva na Receita, estamos falando de pessoas que emigraram legalmente e que foram para fora com visto certo e, possivelmente, empregos com qualificação satisfatória. Ou seja: A chance dessas pessoas voltarem é bem remota porque emigraram legalmente e com solidez. Também, porque o Brasil nunca melhorou de lá pra cá. Pelo contrário.

O ranking da respeitada IMD (International Institute for Management Development), da Suíça, colocava o Brasil, em 2009, na 14º colocação dos países com menor Brain Drain. Em 2018, o ranking colocou o país em 39º. Agora, o país ocupa a 3ª pior posição (fonte). Na América do Sul, só perde para a Venezuela, a primeira da região em “fuga de cérebros” (e onde o suicídio está ascendendo) (fonte). Cabe reforçar: O ranking só lista 63 países. E somos o 61º pior. Pior do que nós só Venezuela e Mongólia, respectivamente.

Claro: É um ranking parcial e não global. Mas, para a 9ª maior economia do mundo (e que já foi a 6ª, em meados de 2012) (fonte), figurar no fim da fila da retenção de talentos é a medida do fracasso. E tem gente comemorando: “Se não servem pra ajudar o Brasil, melhor irem embora mesmo” dizem os insanos que, cegos por um senso tresloucado de patriotismo, não entendem que sem as pessoas “certas” (certas = certas para ajudar no desenvolvimento de tecnologias, patentes, produtos e serviços que o mundo queira pagar caro por), toda terra é só um pedaço de terra. O pedaço de terra chamado Brasil, sem pessoas competentes, vale tanto quanto o fundo do mar ou a superfície da Lua valem, agora.

Como alguém da área de TI, me sinto mais do que confiante em demonstrar episódios dessa triste história brasileira:

O criador do HoloLens, tecnologia de Realidade Aumentada/Mixada da Microsoft, é o curitibano Alex Kipman. Recentemente, foi indicado ao prêmio “Inventor Europeu” do Instituto Europeu de Patentes, pelos feitos na área de pesquisa de AR/MR em que é líder (fonte).

Um sujeito importante (dentre outros, claro) nos projetos de Computação Quântica da Microsoft, depois do Google e atualmente da Amazon, é o mineiro Fernando Brandão. Ficou famoso com o anúncio da Google sobre o atingimento da Supremacia Quântica, projeto em que foi fundamental (fonte).

Eu teria vários outros nomes para citar, mas vou ficar nos dois, pelo tempo e pelo comprimento desse texto.

Gente que está lá fora, dando o que falar, positivamente (ao contrário da turma ministerial deste lugar). E poderia estar aqui, gerando patentes e conhecimento, que gerariam emprego e rios de dinheiro.

Por que não está? Claro que o Estado Brasileiro tem sua culpa nisso. Mas nosso povo – a grande massa que o compõe – também tem.

Sugiro procurar qualquer artigo em que um dos dois conversou sobre as chances de voltar para o país natal (ambos já disseram: nulas) e vá nos comentários. É a mesma animalidade de sempre. “Melhor nem voltar”, “É um favor! O Brasil não precisa de vocês!”, “Elite é um lixo, recebem tudo de bom e do melhor, e não sabem devolver nada”.
Se você tivesse um cérebro acima da média, um governo que odeia Ciência e Verdade científica, décadas de destruição dos sistemas de ensino e pesquisa (fato que não pode ficar só na conta do atual Governo, devo frisar, mas que vem sofrendo ainda mais com cortes e represálias demagógicas e ideológicas deste) e uma população igualmente animalesca, você ficaria aqui, diante de um convite para estar em um país que leva sua área de pesquisa a sério? Acho que sabemos a resposta. Os números mostram o mesmo.

A solução para o Brasil é Guarulhos

Mas espero – em vão – que, um dia, deixe de ser…

Uma das brincadeiras entre PFEs (o nome da posição que ocupo) é que a solução para o Brasil é Guarulhos. Ou seja: Ir embora do país, pelo maior aeroporto internacional da América do Sul.

E se você é um dos desesperados em sair daqui, tenho que te dizer que você quer muito trabalhar onde eu trabalho. As opções para sair com emprego são inúmeras e constantes. Literalmente, dezenas de vagas e lugares, o tempo todo.

Obviamente, você precisa de um binômio chamado “qualificação & sorte”. Qualificação para competir com o resto do mundo tentando. Sorte para ser política e economicamente viável para o dono da vaga trazê-lo para a terra dele. Mas, mesmo dependendo disso, acontece com muita frequência.

A real solução para o Brasil seria que a sociedade brasileira, que é composta por todos nós (e esqueçam Brasília por um tempo, por favor), deixasse de ter os traços que Durkheim chamou de “solidariedade mecânica” e migrasse para a “solidariedade orgânica”.
Durkheim já foi sucedido de todos os modos. É datado, fundou a Sociologia e, portanto, não a viu florescer como já ocorreu. Teve seus estudos e conceitos propostos postos à prova, diversas vezes, tendo em vista o quão rudimentar acabou se tornando com o tempo. E mesmo sendo tão “datado”, ainda explica o problema do Brasil tão bem.

Ele diria que a solidariedade mecânica está fortemente pautada na coerção imediata, violenta e punitiva, e que as ligações entre as pessoas não vão além de seus círculos sociais imediatos. Como homem europeu e branco, ele estava obviamente sugerindo que essa solidariedade mecânica se aplicasse às tribos e civilizações não industrializadas. Contudo, ao olhar o modelo de “civilização” e respeito que se desenrola no Brasil, eu vejo o que Durkheim propôs: Nos organizamos em tribos (a tribo dos que querem andar armados, a tribo dos que querem ridicularizar a religião, a tribo dos religiosos, a tribo dos médicos, a tribo dos motoristas de Uber, a tribo dos taxistas, a tribo dos juízes, a tribo dos políticos), e dentro dessas tribos, há um certo grau de respeito, ora por admiração, ora por medo. Para fora delas, não há respeito algum. É cada um por si… E a lei precisa ser altamente regulatória e punitiva, porque, sem esse comportamento do legislador, não sabemos, simplesmente, como nos respeitar. Então, como um bando de crianças (ou homens das cavernas) precisamos ser tratados pela figura do Estado.
Durkheim foi criticado por sua visão muito eurocêntrica do que representava o “progresso”, e de ter significado que não ser como a Europa era um sinal de simploriedade e atraso. Ele se referia aos povos nativos e/ou tribos africanas. Mas, se tivesse conhecido o caso do Brasil há tempo, sua imagem poderia ter sido menos arranhada com uma prova cabal…

E a pergunta que me persegue…

(Tanto quanto “você vai deixar a TI ao final da faculdade de Direito?”) é “por que você não deixa o Brasil?”…

A resposta já foi muito certa dentro de mim. Sete anos atrás eu diria algo como “eu ainda não tentei tudo que posso tentar nesse lugar. Quero tentar ajudar o Brasil a procurar outros rumos, para longe dos ciclos de sujeira e jogos de cartas marcadas que sempre ocorreram aqui”.

E aí, eu envelheci. Não só na idade, mas mental e emocionalmente.

Olho para os comentários (não só os virtuais, claro) dos meus conterrâneos, e duvido cada vez mais que esse lugar possa ser salvo.

As pessoas olham para a elegante Brasília como o centro de todos os problemas daqui. Eu olho para o grupo de Whatsapp da minha família. Eu olho para os cafés em que vou tomar uma dose com os amigos do trabalho. Olho para os meus clientes, meus colegas de trabalho. O noticiário local, regional, nacional.

São mentiras, preconceitos, ideias estapafúrdias, soluções simplistas para problemas muito complexos e profundos. Lugar comum. Senso comum. Slogans repletos de ufanismo, crendices, clubismo.
Pouco estudo, pouca Ciência, pouca sabedoria; muito achismo.
E, em cima disso, se faz o tecido social que forma “o grosso” do Brasil. É também em cima desse tecido que políticos populistas tentam capitalizar. E capitalizam.

Volte um pouco no tempo e veja como terminaram os homens e mulheres que tentaram abrir os olhos de sociedades cegas. Tomadas por crenças em seres mágicos, em valores absolutos, em ideologias partidárias e/ou religiosas.
Não se trata de “religiosos demais” ou “ateus demais”. Não estou falando sobre um país adoecido por “ser de esquerda” ou “ser de direita”. Estou falando do que ocorreu com gente que ousou enfrentar populações “certas demais” quanto ao que acreditavam ser “a verdade”.

O problema central é a paixão. Que eu também já tratei por aqui e tem o mesmo radical de “doença”. O povo brasileiro é um povo que se comporta ao sabor das emoções. E um povo assim é um povo destrutivo.
Claro: É o melhor povo para se ter amizades, tudo muito caloroso etc., mas, é um dos piores para criar um país pautado em inteligência e sabedoria. Porque, diante da verdade alicerçada em fatos e não em opiniões, ainda assim caem de joelhos agarrados em suas crenças e crendices. De que o mundo é melhor com Deus, de que o mundo é melhor sem Deus. De que o problema é a Esquerda. De que o problema é a Direita.
E não importa o que você faça, não importa o quão feroz você seja em demonstrar por meio de método, pesquisa, dados (escolha suas armas à vontade) os reais problemas do país (que não têm a ver com Direita ou Esquerda, Ateísmo ou Cristianismo, mas com a estrutura social, nos moldes propostos por Durkheim) ninguém te ouvirá e ninguém apoiará. Porque as paixões não deixam. E, no fim, embaralham fato com opinião.

Mas, principalmente, porque o maior do problema do Brasil mora (sempre morou, e sempre morará) no espelho mais próximo, é que eu tenho menos e menos certezas.
Nossa relação, uns com os outros é, em geral, tóxica e desleal.
E sempre há alguém mais forte e mais poderoso do que eu e você, e esse alguém sabe que ser tóxico e desleal é o jeito que as coisas são por aqui. E isso progride em escala geométrica até chegar, agora sim (e só agora), em Brasília. Não é o governo brasileiro que não presta, é a nossa relação social; o governo é mera consequência da sociedade, não o oposto. O jeito que lidamos uns com os outros no dia-a-dia. O senso forte de que cada um é cada um, e que ninguém é conterrâneo de ninguém. E mesmo quando esse tipo de valor surge (de que o outro é um compatriota) quase sempre surge para atender aos interesses privados e, tantas vezes, ilegais. Nunca (ou quase nunca) surge no sentido de “vou preservar isto que não me pertence, porque sei que pertence a Fulano, e Fulano é meu compatriota. Ele faria isso por mim. E eu farei isso por ele”.
Não tem nada a ver com “cidade grande” ou “cidade pequena”. Tem a ver com nossa alma nacional. O brasileiro parece ter levado muito a sério a ideia bíblica em Ezequiel de que “a salvação é individual”.

Levou-a tão a sério que se salva até quando não precisa se salvar de nada.
Salva-se da pobreza (que não o aflige) desviando milhares de reais de sistemas públicos. Salva-se da esperteza alheia sendo o mais esperto, primeiro. Vive se salvando de males que não sabe se sofrerá, sempre com a máxima “se eu não fizer, alguém vai fazer, então que eu faça antes que façam comigo”.

E quando tudo isso é posto em xeque, a defesa é sempre a mesma: “O outro fez igual, senão pior”, “O sistema é assim”, “Quando assumi, era até pior”, “Eu não sabia que estava prejudicando alguém”. Todo brasileiro é treinado para driblar, de forma extremamente sofisticada, a berlinda que é ter que admitir “eu prejudiquei alguém e o que fiz é errado, não importa em que ângulo eu analise minha ação”.

Toda sociedade tem problemas. Alguns são intoleráveis como “raça ariana” ou governos que obrigam todos a seguir um certo deus (seja ele Allah ou Jesus, tanto faz). Outros são menos problemáticos, como a falta de senso de humor, ou uma certa rigidez de etiqueta que tende a artificializar a convivência.

O problema brasileiro não é tão grave quanto uma teocracia (por ora), ou uma ideia de superioridade de uma raça ou povo por sobre os demais (também, por ora). Mas, o problema brasileiro é dos mais difíceis de se resolver porque ele está arraigado em nossa sociedade, e ele nos é ensinado desde crianças. “Você não pode deixar ninguém levar vantagem sobre você”, “Filho meu tem que ser esperto”, “Pirateio mesmo, isso não faz mal pra ninguém, eles já têm muito dinheiro”, “Se eu não pegar, outro vem e pega”. Sempre temos uma desculpa e somos apaixonados por elas. E a paixão é um traço fortíssimo do nosso povo. E a paixão nos cega, como uma doença (no grego, Pathos, que também vemos em “Patologia”).

O meu governo e o meu povo jamais dirão o que eu acho necessário.
Mas, pelo menos pra vocês, Daniel e Heloísa (e, na verdade, para todos os que saíram por perderem a esperança), eu mesmo digo: Espero que um dia vocês perdoem seu país pelo que ele fez com vocês e pelo que ele fez vocês abrirem mão, só para ter uma vida melhor, mesmo que só por um pouco. Vocês mereciam mais, e este lugar poderia ter sido mais. Tanto mais.

“Por que você não deixa o Brasil?”

Eu já soube a resposta “de cor” (que descende do francês “Savoir par coeur” e quer dizer, literalmente, “saber através do coração” – novamente, as emoções no comando).

Tenho me esquecido das razões da resposta atual, cada dia mais.

Dois pesos e duas medidas

Você sabe o que faz de “um quilo”, um quilo?

Bem, de largada, cabe dizer que “quilo” (e não “kilo” [do inglês, que respeitou a forma original em grego, de onde vem o “k”, sempre minúsculo]) é apenas fator multiplicativo por mil, como se definiu nos prefixos do SI (Sistema Internacional de Unidades).
O que, de fato, se mede são os gramas (sempre no masculino, já que no feminino passa a ser aquela que os jogadores de futebol pisam). Portanto, 1kg (um quilograma) é igual a mil gramas.

Tem jeito melhor de começar te lembrando do quanto sou chato (torço que você pense isso só quando lê por aqui)? E admito que tento impor um rigor maior do que a média para blogs desconhecidos, sempre pesquisando sobre o que escrevo por estas bandas, e tentando acertar em tudo; o que não se repete na convivência in loco comigo (ao que ouço a voz de todos dizendo “Graças aos Céus!”…).
Claro: Uma pessoa que busca esse tipo de rigor em todos os contatos e ocasiões, não é nada além de muito chata(o), insuportável, e desconectada(o) da necessária leveza para se viver bem em sociedade.

Tudo é questão de foro: Se estou participando de uma discussão em um foro técnico, eu exijo que a precisão técnica esteja presente na conversação. Até porque aprendemos, desde cedo, que algumas palavras, em foros específicos, adquirem conotações bem diferentes e distantes da acepção comum.

Para ficar num exemplo hiperbólico: “Os direitos reais sobre coisas móveis (…), só se adquirem com a tradição”. Se você tentar usar o significado comum na sentença anterior, nunca vai achar a explicação correta (de que contratos de compra e venda de bens móveis só são considerados finalizados, incluindo a transferência de direitos [outra fonte ainda tornaria a sentença pior: “o negócio jurídico só se aperfeiçoa”], quando da entrega efetiva do bem [entrega do bem = tradição]).
Já havia dito que era um exemplo absurdo (embora escrito no nosso ordenamento jurídico). Mas, não é assim tão diferente num foro de Medicina, de Tecnologia da Informação, etc….

Mas, voltemos ao começo:

Você sabe o que faz de um quilo(grama), um quilo(grama)?

Bem, até o mês de maio deste ano, um quilograma era definido por comparação com uma massa feita de uma liga de Platina-Irídio (massa que estampa a capa deste post). Essa massa ficava trancada num cofre na França, e é popularmente conhecida como “Le Grand K” (incoerência, já que o k deve ser minúsculo), sendo a definição de um quilograma, desde 1889. Mas, não mais.
Após 130 anos de serviços prestados, com várias cópias ao redor do mundo comparadas com o grande K (que é formalmente chamado de “IPK”) em ciclos de 40 anos, chegou a hora do senhor K se aposentar. Se nós tivermos a sorte de vivermos 130 anos, também poderemos nos aposentar, um dia (cutucada gratuita. Obrigado, de nada).

No lugar do grande K, adotou-se uma constante quântica chamada de “constante de Planck”. Essa mudança foi decidida num foro científico em 2018 que adotou a convenção que já define o que é um metro, bem como o que é um segundo. O Sistema Internacional de Unidades, com o apelido carinhoso de “mks” (metro, quilograma, segundo) é composto por essas três unidades de medida, dentre outras (Editado: Pesquisando mais, restou provado que o mks antecedeu o SI, e o SI herdou o mks, adicionando outras medidas)… Se as outras duas (metros e segundos) já haviam abandonado a medição com referência em um objeto (o metro, por exemplo, também usava uma barra de Platina-Irídio com 2 marcas para calibrar o que era um metro), era tempo do quilograma mudar também.
Conforme explicou a revista Época, as novas definições por constantes regram que “(…)um metro é a distância percorrida pela luz no vácuo no período de 1/299.792.458 segundo, e um segundo é a duração de 9.192.631.770 períodos de radiação correspondentes à transição entre os dois níveis do átomo de Césio 133”.

De mais a mais, o Grande K já não era tão grande: Constatou-se que, desde sua criação, o senhor K perdeu 40 microgramas em interações com o meio ambiente. Insignificante para a receita de bolo, inaceitável para ciência de ponta.

Com constantes como a de Planck governando o SI, esperamos que esses problemas de calibragem não venham a ocorrer tão cedo.

Dois pesos e duas medidas

Os jovenzinhos que leem o que escrevo aqui não têm nem ideia do que digo a seguir, mas, na minha infância, ir à feira incluía ver balanças como esta:

Balança antiga, com contra-pesos de ferro, usada em feiras livres, há tempos atrás.

Você, automaticamente, pensou “esse cara tem uns 60 anos”. No RG, pouco mais da metade disso; no corpo, tenho uns 80. Na maturidade, uns 12, 13…

Mas, pra que tudo isso? Para podermos discutir o problema por trás do ditado.

Não. O ditado não está errado. O certo é, mesmo, “dois pesos e duas medidas”.

Ao contrário do que você já pode ter lido por aí, não estão corretas as versões “um peso, duas medidas” ou ainda, “dois pesos, uma medida”.

O ditado, registrado em dicionários para estes fins, é, de fato, “dois pesos e duas medidas”.
O que esse ditado quer dizer – e muita gente que defende as outras versões não entendeu – é que as pessoas carregam consigo dois pesos (diferentes entre si), e duas medidas/réguas (também diferentes) para pesar e medir as situações da vida, quando, na verdade, deveriam ter apenas um peso e uma medida para todas as situações.

Difícil definir a origem exata do ditado (que existe em outras línguas, como a inglesa) e, por isso mesmo, fico com a explicação do Professor Sérgio Rodrigues de que o dito se refere a uma passagem bíblica.

Em Deuteronômio, capítulo 25, versículos 13 a 15, lê-se:

  1. Na tua bolsa não terás pesos diversos, um grande e um pequeno.

  2. Na tua casa não terás dois tipos de efa, um grande e um pequeno.

  3. Peso inteiro e justo terás; efa inteiro e justo terás; para que se prolonguem os teus dias na terra que te dará o Senhor teu Deus.

  • Efa” é uma palavra sinônima a “medida”.

Também, de um ponto de vista estritamente científico, está errado se referir à medição da Massa dos objetos (que se mede em quilogramas), como se fosse “Peso”. Na Física, “Peso” é medido em quilograma-força (kgf), e também pode ser medido em newton (N) ou dina (dyn). A fórmula geral determina a multiplicação da massa de um objeto (exemplo = pessoa de massa igual a 70kg), pela aceleração da gravidade (na Terra, 9,8m/s²) e se obtém o peso em kgf, por exemplo.

Rodrigo: Essa tortura tem um objetivo maior do que tornar minha segunda-feira um porre?

Até que tem, caro(a) leitor(a)… Até que tem…

O objetivo é dizer que se você e eu não temos dois pesos e duas medidas, é nossa obrigação discordar, reprovar e até repudiar a recente atitude do Jornalista, João Paulo Saconi, a serviço da revista Época, da editora Globo, que se disfarçou de cliente/paciente para contratar serviços da Psicóloga (que alega ser Coach, categoria do mundo contemporâneo que não quero nem discorrer, por ora), Heloisa Wolf Bolsonaro, esposa de Eduardo Bolsonaro (este último, filho do Presidente da República), com fins de produzir matéria para o periódico.

Por um mês, o repórter se declarou como um novo cliente e participou do curso fornecido pela profissional no modelo de “coaching”. Desta falsa relação entre a profissional e ele, o Jornalista publicou matéria que pode ser lida aqui. Não sugiro dar “ibope”, mas entendo ser importante permitir a leitura para que você possa concluir o que eu já conclui: A matéria é sensacionalista, sem qualquer interesse à Sociedade, etc.

Para começo de conversa, preciso dizer que não tenho dois pesos e duas medidas. Ou, melhor dizendo – relembrando da minha condição inescapavelmente humana – faço de tudo para não ter dois pesos e duas medidas. Se considero que os fins não justificam os meios para Bolsonaro e seus atos de governo, os fins seguem sem justificar os meios para a ambição do Jornalista que queria “pegar a nora do Presidente no flagra”.

Continuo com só um peso e uma medida, especialmente, quando me lembro da Lei. Nada a ver com a bobagem do “sigilo Profissional-Cliente/Paciente”, como tanta gente se apressou em dizer. O dever de sigilo (nos mesmos moldes que existem na Advocacia) é do Profissional, não do cliente/paciente. O que me faz lembrar da Lei é que a Constituição Federal elenca inúmeros direitos da Pessoa, além de liberdades para o exercício das Profissões, etc. É a mesma Constituição que prevê a Liberdade de Imprensa, claro. Nem me ocorreu pensar diferente disto.

Mas, nenhuma Liberdade é absoluta em um Estado Democrático de Direito.

Se houvesse liberdades e direitos absolutos, alguém derrubaria a casa em que moro pelo direito de “ir e vir”. Fica evidente que é bobagem tratar liberdades como “absolutas”. Todas elas respeitam certas regras e limites. Óbvio.

Mais do que isso, vou para a Lei específica. O Código de Ética do Jornalismo (disponível no site da FENAJ), aprovado em 2007, entre outros artigos, declara:

Art. 11 – O jornalista não pode divulgar informações:

(…)

III – obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração;

Chamo a atenção dos senhores para “salvo em casos de incontestável interesse público E quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração”.

O “incontestável interesse público” nas técnicas de Heloisa, enquanto profissional de Coaching, me parece insondável. Nada, em nenhum ponto da matéria, levantou-me a desconfiança de que houve ou poderia haver crime, especialmente, do tipo que lesa o Estado, a sociedade  ou o cidadão.

Num segundo momento, o artigo é claro ao dizer “não se pode fazer uso de identidades falsas(…), exceto quando esgotadas todas as outras possibilidades”. O Jornalista não se apresentou como sendo jornalista, muito menos informou à profissional requisitada de que se tratava de matéria jornalística a ser publicada, o real motivo de estar ali.
Antes disso tudo, ele poderia, por exemplo, ter tentado o contato formal com ela, explicando que sendo a próxima (provável) Embaixatriz (que é diferente de “Embaixadora”) do Brasil nos EUA, e como profissional Psicóloga, tudo o que ela tinha para dizer seria importante, e que ela deveria considerar como publicidade gratuita do seu método, caso topasse a entrevista – tudo isso, só por exemplo.

O código de ética não para por aí. Há outros dispositivos que demandam do Jornalista o respeito à dignidade das pessoas, não que precisasse citar, diante da Constituição, mas, o faz porque a categoria considerou fundamental repetir o que determina a Lei máxima.

Retrocedendo no código, com meus comentários entre parênteses:

Art. 6º – É dever do jornalista:

(…) incisos não relevantes à pauta, omitidos.

II – divulgar os fatos e as informações de interesse público; (repito: onde está o interesse público?)

IV – defender o livre exercício da profissão; (se defende o da categoria, não defende o da entrevistada?)

V – valorizar, honrar e dignificar a profissão; (ao ignorar a conduta antiética, ignora este inciso)

VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; (não tenho dúvidas de que houve desrespeito a todo o inciso)

X – defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito; (não preciso comentar)

XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias; (a profissional em Psicologia, Coach e, só por ocasião da vida, mulher do Congressista, não estaria protegida?)

XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza. (Heloisa pode ter a postura e pensamento avessos ao que acredito ser o melhor para a Política nacional, mas não devo aceitar sua perseguição por ser casada com quem é, ser Cristã, ser hetero, acreditar num governo conservador e até retrógrado nos costumes; como também não aceito a perseguição contra gays, ateus, políticos “de Esquerda”, etc.).

Algumas pessoas tentarão relativizar o que digo aqui porque odeiam Bolsonaro, o seu “clã” (palavra horrível para uma Democracia, mas é o que temos no momento) e quem se associar com eles.

Mas, eu não relativizo. Sou solidário à revolta de Heloisa e seus familiares, e desejo que ela não desista de processar o Jornalista e seu Jornal – porque numa revista ou jornal, texto algum é públicado sem o conhecimento do Chefe da Redação, diferentemente do meu blog fundo-de-quintal, onde toda a desgraça depende de só um clique – e que acione os órgãos de Ética para a denúncia do profissional em questão. Porque hoje é com ela, mas amanhã, pode ser comigo (como já disse em outro post).

E, principalmente, porque ainda que pudesse ser do meu interesse pessoal, político, de visão de mundo, o escárnio com a rotina profissional de Heloisa… Em uma Democracia, em tempos de paz, os fins não justificam os meios, nunca.

E eu não aceito trabalhar com dois pesos e duas medidas.


PS: Dia depois deste post, tomei conhecimento de nota com pedido de desculpas do Grupo Globo a Heloisa. Perceberam que erraram feio. Já é um bom começo.

O permanente silêncio dos bons

Está sendo uma semana muito dura…

No fim de semana, senti a necessidade de falar sobre Democracia e sobre nossa obrigação de não cruzar com a “cadela que está sempre no cio” e vem uivando, mais do que nunca, especialmente através de figuras que deveriam ser os mais ferrenhos defensores do sistema vigente, mas não são.

Um dia depois do post, o filho do Presidente (com letra maiúscula, só em respeito à instituição da Presidência da República) publicou um tweet onde explicou para sua tropa: O país não mudará conforme eles querem, via Democracia. A Democracia é, portanto, um empecilho para o filho do Presidente, democraticamente eleito, e que também é, ele próprio, ocupante de cargo eletivo na Câmara de Vereadores Carioca.

Fiquei “satisfeito” de ter escrito sobre o tema, pouco antes do arroubo do “Pitbull do Clã”. “Clã” … Ainda somos uma Democracia? Sigo insistindo que, por pior que seja (e está “bastante pior”), a Constituição ainda continua válida e as Instituições ainda operam minimamente conforme o ordenamento jurídico, e tão impessoais quanto sempre foram. Mas, já me pego pensando se estou olhando para uma casca saudável de um ovo podre… Tenho que vigiar os pensamentos. É muito fácil afundar na desesperança. Razões para acreditar diminuem dia após dia, notícia após notícia. Tweet após tweet…

Como não é diferente de qualquer família, a minha também tem seu grupo de Whatsapp. Entre os cem “bom dia’s” e os duzentos “feliz aniversário’s” (quando alguém é o felizardo, claro), surge sempre uma frase em prol de um ato totalitário, quase sempre, fake news. Absurdos de todos os tipos e tamanhos… O “esgoto” da fake news política passa por lá. Faço uma pausa para pedir desculpas se um familiar meu ler isto e se ofender. Não foi a intenção. Não foi mesmo. Mas o “esgoto” continua lá, com a ordem do Presidente para prender ministros do STF, a ordem do Ministro da Justiça para invadir “a casa dos Petralhas”, a “prontidão dos militares para fechar o Congresso”, e por aí vai. Tudo tem foto, tudo tem fonte. Nada é de verdade, óbvio. Tão óbvio que seguimos aqui, mesmo que aos trancos e barrancos, e nenhuma das profecias se cumpriu, jamais. Mas isso não importa em nada. Eles seguem “bombando” o fake news de que alguém está para “acabar com a roubalheira” (o nome que dão para Instituições democráticas que, sim, podem estar sob o comando de depravados e vigaristas, mas, já falamos no Domingo sobre o dilema do bebê e da água suja).

Eu nunca entendi o fascínio dos meus compatriotas pela Ditadura. Já refleti sobre isso por horas… Dias, até. Nunca entendi como o país, comandado por homens fardados, sob forte ordem militar, onde quase nunca se questiona o que vem de cima, onde só existe “missão e obstáculos” (se você não ajuda na missão, você é obstáculo), e que sempre dizem, em tom de chacota, “paisano ( = civil; eu e você) é bom, mas tem muito”, pode ser melhor do que o que temos agora. E não é por causa da piada, porque como profissional de TI, eu também tiro sarro de algumas condutas de usuários da Tecnologia. E, novamente, preciso parar e pedir desculpas se ofendo alguém com essa elucubração.

Venho de uma família de militares, pra dizer o mínimo. Tenho admiração e, até os 27 anos, cogitei ingressar na força policial, seriamente. Nunca foi pelo dinheiro (que é ridículo), mas, foi sempre por um forte ideal de entrar, aprender, sofrer, e mudar a instituição, devagar e sempre, e por dentro (o único caminho comprovado e aceito pela tropa. A PM é uma instituição hermética e mudanças vindas de fora são, em sua maioria, descartadas; a despeito da possível validade delas). Já estou longe do argumento inicial…

Meu ponto é que jamais compreendi o fascínio de familiares, amigos, e tantos civis (em 2017, pesquisa realizada em 24 estados, com 95% de confiança, mostrou que um em cada três brasileiros [~35%] apoia uma intervenção militar) com uma possível volta da Ditadura militar. Não porque militares sejam maus. Mas, simplesmente, porque eles foram doutrinados para viver sem inúmeras liberdades. Pensar livremente e tomar decisões por si só, não é, nem de longe, o ideal para o serviço militar.

Eu não achava um mínimo de razão nesse apoio. Até ontem.


Vou adiantar o óbvio: Nada mudou em mim. Só há um lado certo na nossa História, e é o lado que protege e luta pela manutenção (e melhoria) da nossa Democracia. É desse lado que estou e vai ser muito difícil que eu mude, até o fim da minha existência.

Mas, hoje, vários canais de comunicação trouxeram à tona a fala monstruosa do Procurador (como no caso do Presidente, em maiúscula por respeitar o cargo, não o ser que o ocupa) de Minas Gerais, Leonardo Azeredo dos Santos, que alegou em reunião da Procuradoria de Minas Gerais, entre outras alucinações, que seu salário líquido de R$24 mil reais é um “miserê, e que ele já está “deixando de gastar 20 mil no cartão, cortando para só 8 mil, para sobreviver”. Disse, ainda – como se não bastasse o horror que já havia dito – que “infelizmente, não tem origem humilde e não está acostumado a viver com tanta limitação”.

O estado de Minas Gerais está enfrentando uma fortíssima crise fiscal, e está em vias de fechar uma Recuperação Fiscal com a União, o que significa, em palavras mais diretas (e imprecisas), “reconhecer que deve pra geral, e pagará quando puder” …

A história só piora. Segundo o Portal da Transparência de MG, o sofrido servidor (que esqueceu o que “servir” significa) em questão, teve vencimentos na casa dos R$78 mil líquidos, em junho, por uma dúzia de benefícios, auxílios e indenizações. Muitos desses “extras” sequer são alvo de tributação.

Se o Procurador não consegue viver com dignidade com os vencimentos apontados, me parece alucinógeno pensar na situação de cinquenta e cinco milhões de brasileiros (portanto, ¼ da população) que vivem com até 400 reais por mês.

E alguém vai dizer, “nossa, que argumento mais populista”. Não. Não há nada de populista em pensar no próximo, e reconhecer a desgraça que acomete a economia nacional, e que tem demandando sacrifícios de uma classe trabalhadora inteira, que já sabe que não se aposentará (pelo menos, não em breve), que não tem o direito de discutir o próprio salário, senão através da qualificação constante e da troca de empregadores, aqui e ali. Reconhecer tudo isso e reconhecer que seu salário é, sim, assombroso e desproporcional – não importa o quão merecedor dele você seja – e que seu holerite te coloca numa parcela de menos de 2 dígitos percentuais da população, para que você tenha qualquer condição moral de terminar essa discussão sem parecer (com sorte, só parecer) um completo imbecil.

Alguém pode levantar que, digamos, em 10 anos, o MPMG não teve correção da inflação. E eu insistirei: Seu estado está quebrado, sua população passou por duas tragédias ambientais recentes e devastadoras. O desemprego atinge ~11.2% da força de trabalho mineira, estimada em 11.1 milhões de pessoas e, portanto, com 1.24 milhões de desempregados. Repito: É um estado quebrado, procurando proteção para poder parar de pagar dívidas, na tentativa de se reestruturar. O Governador disse, agora há pouco, que os servidores públicos “comuns” ficarão sem receber, se o RRF não for aprovado. A fala do Procurador é tudo, menos consciente.

Agora, se imagine na fila do desemprego. A vida vai mal, todo dia você deixa de consumir uma refeição decente para que o dinheiro renda mais. E você ouve um conterrâneo dizendo que seu salário de 24 mil é pouco, e que se não aumentarem, ele vai passar necessidades. Pronto: Você começa a entender porquê alguém tem coragem de apoiar uma Ditadura militar.

É claro… Eu não estou dizendo a idiotice de que militares são mais honestos, mais leais, mais qualquer coisa, só por usarem farda e marcharem em ordem unida. A farda não faz ninguém melhor ou mais honesto, e militares no Poder podem cometer os mesmos crimes de civis e outros piores. Com o agravante de que, em eventual Ditadura, a mídia sequer poderá fazer o trabalho investigativo que faz e que só ela pode mostrar situações revoltantes como essa do pobre Procurador de Minas. Sem a Imprensa livre, jamais teríamos sabido disto.

Então, não. Esse Blog jamais fará uma defesa pró-Ditadura. Esse post é apenas um reconhecimento da racionalidade do ódio, muito bem alimentado por gente como o Procurador citado. Gente que ocupa cargos públicos não pela vocação, não pelo sonho de fazer um trabalho diferenciado para sua comunidade, mas, com fins de enriquecer às custas de uma sociedade que vem sendo fortemente espremida para se aposentar mais tarde, pagar mais impostos, e viver com menos (muito menos) do que um minúsculo universo de pessoas ganhando mais de 20 mil reais mensais líquidos.

A máquina pública brasileira é um monstro que precisa ser esquartejado

Novamente: Não estou falando contra a Democracia. Se você está entendendo assim, precisa melhorar sua interpretação de texto. O que segue aqui é o cansativo dilema do bebê e da água suja.

Tive uma discussão com o João, bom amigo de outras bandas, e falávamos sobre o duelo entre um Estado grande com fins sociais, e o Liberalismo, cada um com seus defeitos e potências. Foi uma conversa muito boa (eu acho). Diante do que se seguiu, hoje, acho que ele está rindo um pouco mais por estar do lado que defende a redução máxima do Estado, em qualquer caso e cenário. Hoje, eu não o culparia (o que não quer dizer que desisti de tudo o que acreditava ainda ontem; não sou bipolar e minhas opiniões não se formam conforme a banda toca… Mudar assim, de uma hora pra outra, demonstraria um pensamento levianamente fundamentado).

Ocorre que não é a Democracia que inviabiliza a máquina. Tampouco um sistema de Estado preocupado e engajado com os problemas sociais. O que inviabiliza a máquina é um sistema em que benefícios e privilégios se tornam sempre cumulativos, jamais diminuem, e quem decide quanto vale o trabalho é o próprio trabalhador (há uma simplificação aqui: embora exista lei que regule os vencimentos máximos, aqueles que usufruem de altos salários driblam as restrições com manobras que, se não ilegais, são totalmente imorais).

Você já imaginou que insano seria se eu pudesse definir quanto eu devo ganhar? Não obstante eu gerar muito mais dinheiro do que ganho (se não fosse assim, eu seria demitido) minha empresa, uma das maiores do mundo, faliria caso cada colega meu pudesse decidir o valor dos próprios vencimentos.
Mas, é assim que a máquina pública brasileira se estruturou.

CLARO… “A máquina pública”, em áreas bem específicas… No Judiciário e no Legislativo, especialmente. Em todo o resto, nossos funcionários públicos costumam passar maus bocados… Professores, Policiais, Serventes de manutenção pública… Essa massa tão importante não tem qualquer autonomia para decidir o quanto ganha, óbvio.

Poderíamos dizer que a máquina pública é sempre cara e sempre ineficiente. Esse é quase que um lema (ou seria um fetiche?) dos Liberais, mas, além de não ser uma verdade absoluta (já que os EUA têm uma máquina mais cara que a nossa), um pouco de pesquisa mostra que o problema é o Brasil, mesmo. Temos uma das máquinas mais caras e ineficientes do mundo. Para demonstrar, vou compartilhar apenas um gráfico da matéria da BBC:

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46427803

Quem dera esse fosse um problema restrito ao Congresso Nacional. Se eu colocar os custos do Judiciário, dos Ministérios, e etc., você e eu enlouqueceremos no processo.

O que você precisa saber é que a máquina é tão inchada que, atualmente, nós brasileiros desembolsamos algo em torno de ~215 bilhões de reais anuais para pagar quase 900 mil funcionários públicos nas mais variadas posições. E, se você tem bom senso, sabe que o grosso desse dinheiro não está acabando no bolso da Professorinha na sala com goteiras e lousa com buracos, nem no bolso do Policial que vai pra rua com colete vencido e arma avariada.

Uma classe unida contra toda uma sociedade

Diz a Bíblia (1 Pedro 3, 18) que devemos “amar o pecador, mas odiar o pecado”, segundo o exemplo de Jesus Cristo. Isso resume bem a minha relação com trabalhadores e seus sindicatos/associações, em quase 100% dos casos.

Essa não é uma discussão nova.

Toda a santa vez que alguém reclamou do custo da máquina ou rebateu uma proposta de um novo imposto com cortes possíveis (auxílio paletó? Auxílio moradia? Para quem ganha mais [muito mais] de 24 mil líquidos? Só pode ser brincadeira), as classes privilegiadas (que, repito, são uma elite dentro do serviço público) se unem, barram, e abafam (porque não podem discutir à luz da sociedade o que realmente pensam) qualquer projeto nesse sentido. Suas associações e sindicatos são perfeitos no Lobby e sempre vencem o debate (que não é um debate, já que nasce morto).

Mas, fatalmente, uma hora, teremos de combater os extremamente privilegiados deste país (~28% da riqueza nacional está nas mãos de ~1% da população). A maior parte deles desempenha funções necessárias e essenciais (acho que ninguém com o juízo no lugar ignora a utilidade do Ministério Público em uma Democracia, só por exemplo). Mas, esse desempenho não pode ser pretexto para que estes vivam em uma realidade tão diabólica ao ponto de fazer um Procurador se sentir mortalmente ultrajado por ter que sobreviver com “apenas” 24 mil reais líquidos mensais, e moralmente sustentado para expor isso, sabendo que era gravado publicamente.

Mas, vou te dizer o que mais me magoou nessa história toda: O que mais me magoou foi ouvir o áudio inteiro, em uma reunião com o Procurador Geral de MG, e outros Procuradores, e diante da fala monstruosa de um playboy que não merece o cargo que tem, nenhum dos colegas de profissão, investidos no gloriosíssimo cargo de Procuradores e Promotores (Promotor = que promove) de Justiça, terem se insurgido contra a barbárie no comentário do colega.

São 5h da manhã, estou acabado. Mas, para ter paz de espírito eu tinha de vir aqui e quebrar o silêncio sobre isso. Incomodou-me de forma que eu não sentia há muito tempo. Vontade de ir embora daqui e outros sentimentos ruins que eu não sentia há tempos. Todo dia, um novo 7 a 1 nessa divisão do inferno que eu ainda chamo de “meu lugar”. E esse 7 a 1 veio até do lugar certo: Minas.

Pra fechar, parafraseio o PhD, Nobel da Paz, Medalha Presidencial da Liberdade (EUA), incessante guerreiro pelos direitos civis de tantos oprimidos, e todo o estandarte de ética e postura digna que o infame Procurador de Minas jamais ostentará:

O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.

No Brasil, o silêncio anda horripilantemente ensurdecedor.

Não, Democracia não é qualquer coisa

O meu pensador de referência para frases soltas (já que eu jamais li alguma obra dele) é H.L. Mencken. Uma das mais celebres é

“Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”

Isso resume a História do Brasil de ponta a ponta, melhor do que qualquer redação poderia fazer.

E, no momento, estamos tentando resolver problemas complexos com soluções simples. E vai dar errado. Como sempre.

Mencken tem outras frases “perfeitas” (pra mim), então, fica a dica de ler a breve coletânea (aqui e aqui). Eu concordo com a maioria, especialmente sobre filósofos, partidos, dizer a verdade, e pé de coelho. Mencken está longe de ser perfeito, e sua biografia é controversa, como costuma ser com quem não é idêntico aos demais. Mas, o maior defeito de sua filosofia é a absoluta certeza de que o cinismo é a única saída para lidar com a realidade, especialmente a política. É divertido e ácido, do jeito que eu gosto, mas quando aplicado à vida política… Bem, falaremos disso mais tarde…

Se você saísse às ruas, no ano passado, e perguntasse “como você acha que (qualquer) uma Democracia termina?”, a maioria dos respondentes iria opinar – acredito – “através de um golpe, com armas e sangue”, ou qualquer combinação desses fatores.

É um fato bem consolidado na cabeça das pessoas, seja pelo cinema, seja pela História, que a Democracia suporta muitas coisas e que ela só fali diante de tiranos militares, guerras, matança, sangue nas ruas…

Ocorre que estamos assistindo um momento inédito na memória da Ciência Política mundial. A Democracia surge ameaçada, mas, não por armas. É por uma doença que a corrói e a ataca por dentro. A Democracia pode morrer logo logo, em alguns cantos do mundo, e não vai haver um só disparo de arma de fogo para isso. A Democracia é ameaçada, como nunca se viu, pelo populismo. Populismo que não é orientado ideologicamente, está acessível para todos e já foi usado por todos os lados.

Mas o populismo é mais perigoso para a Democracia do que as armas de fogo porque, representado por lideres absolutamente medíocres, pessoas sem a mínima qualificação para uma vida política razoavelmente positiva para as pautas de um povo, o sistema político vai se enchendo de oportunistas, cínicos profissionais, e pessoas que solapam a legitimidade (mesmo que esta já andasse na corda bamba) do sistema Democrático, com fins de alcançar ou se manter no poder.

E essa não é uma análise que só eu acredito correta. A “The Economist” fez uma coluna brilhante sobre o risco real que as Democracias (das mais velhas às mais novas) correm no mundo atual, dando exemplos concretos. Sugiro a leitura (em inglês).

Quero, agora, dar um passo atrás e estabelecer porque nós deveríamos nos preocupar. Todos nós. Negros, brancos, heteros, homos, ateus, religiosos, pobres e ricos.

Não é qualquer coisa…

Como o título já diz, “não, Democracia não é qualquer coisa”. A maioria dos meus compatriotas tem pouca ou nenhuma educação política. E isso é um grave problema. Trabalho com gente que acredita que “Democracia é o sistema onde a maioria escolhe os rumos do país”. E isso não poderia estar mais errado.

E se a pessoa trabalha comigo, ela tem, pelo menos, nível superior. Nos dias de hoje, não significa nada para quem vive nos grandes centros, onde faculdades brotam nas esquinas com a mesma facilidade das lojas de paletas mexicanas que dominaram São Paulo, anos atrás. Realmente, estar formado no nível superior já não é sinal de nada, senão de mínima preocupação com o próprio futuro (em média, salário ~30% maior em comparação com formados no ensino médio, apenas). Mas, quando posto em perspectiva com o Brasil, isso ainda torna essas pessoas privilegiadas: No Brasil de 2018, segundo o PNAD do IBGE, apenas 16,5% dos adultos (25+ anos) tinham ensino superior. Mais: 52% de todos os brasileiros sequer terminaram o ensino médio (o “colegial”).
Portanto, não: Ter nível superior não diz se alguém é inteligente, mas põe a pessoa em um grupo de apenas ~17% da população adulta nacional. Parte da formação superior é a leitura, e a maioria dos currículos apresenta uma formação que leva o sujeito a discutir questões diversas como sociedade, ética, desenvolvimento sustentável… Enfim. Saber sobre o sistema político (não sobre bandeira de partido A, ou o que está acontecendo na aliança de B) vigente do país, portanto, ainda que em linhas gerais, deveria ser algo comum para quem quer entender o mundo em que vive, entender a dinâmica da sua área com a comunidade onde vai trabalhar, e daí por diante.

Eu acredito na tese da ignorância racional, recentemente abordada por Pondé, e para não ficar muito longo, sugiro a leitura. O importante dessa tese é a explicação de como as pessoas lidam com a responsabilidade eleitoral. Como consideram insignificante a relevância matemática do próprio voto, ninguém gasta tempo o suficiente se informando sobre o sistema, muito menos sobre em quem vai votar. Isso explica boa parte do nosso desinteresse por política. O grosso da população considera o próprio voto irrisório, então, saber sobre política também passa a ser irrelevante. Perda de tempo. Numa visão utilitarista, gastar mais tempo escolhendo o próximo smartphone do que o próximo Presidente faz todo sentido, já que o aparelho é mais relevante para o dia-a-dia da pessoa do que a relevância do próprio voto para o resultado nacional.

Entendendo o Sistema Democrático

A missão original desse Blog sempre foi de ajudar, através da pesquisa de fontes e referências verificáveis, na formação de opinião sobre assuntos do cotidiano. E, claro, em cima disto, eu exponho a minha opinião. Você não precisa e sequer deveria concordar com ela. Mas a parte informativa não depende de opinião. É o que é.

Vou tentar definir o que é uma moderna e saudável Democracia, para que você não tenha dúvidas. Porque Democracia não pode ser qualquer coisa. Você precisa saber exatamente o que ela é para entender o quão caro vai ser perdê-la. Afinal, é impossível dar valor ao que não se compreende.

A Democracia moderna é um sistema (dentre outros possíveis) de exercício da Soberania de um Povo sobre um Território. Este exercício de Soberania feito por um Povo num dado Território é, também, o que define as fronteiras de onde começa um Estado (Nação) e onde acaba outro.

Uma Democracia moderna apresenta aos seus cidadãos:

  • Sufrágio Universal (sistema de voto para representação política, disponível a todos os cidadãos, sem diferenciação por origem, cor, credo, patrimônio [em oposição ao antigo sistema Censitário]) – Art. 14 da CF/88 .
  • Instituições que organizam o Estado, moderam e exercem seu Poder, vigiam a convivência, bem como vigiam umas às outras, sempre em prol do bem-comum da sociedade – Arts 18 a 114 da CF/88 (da definição do que é União, estado, município, passando por funções do Presidente, Ministros, falando da organização do Judiciário, da Segurança Pública, chegando até o emprego do Estado de Sítio, e etc.).
  • Um sistema de freios e contrapesos, no nosso caso, inspirado na Teoria separação dos poderes de Montesquieu, que gera o que conhecemos como os “Três Poderes” = Executivo, Legislativo, Judiciário, que são harmônicos e independentes entre si – Aspas no “Três Poderes” porque um cientista político nos lembrará que o Poder do Estado é uno e indivisível. O que se divide é a função, não o Poder (art. 2º da CF/88).
  • O titular da Soberania é SEMPRE o Povo, e esta não pode ser raptada pelos representantes, sob qualquer pretexto (conceito que vemos presente no nosso art. 1º, Parágrafo Único, da CF/88).
  • Um ordenamento jurídico onde as leis, as regras, os limites, os procedimentos e tudo o mais o que é necessário para se conviver em harmonia, e lidar de maneira regulada com o Estado, é previamente conhecido e disponível à consulta de todos. Ninguém fará ou deixará de fazer nada, senão em virtude de lei (art. 5º, Inc. II da CF/88), e não há crime sem lei prévia que o defina (art. 5º, Inc. XXXIX da CF/88).

Já tentamos vários sistemas: de Monarquias, Estados Absolutistas, passando por Aristocracias e Oligarquias, até Estados Totalitários, Fascistas, Ditaduras, e assim por diante. Então, chegamos na fórmula de uma Democracia moderna que está ancorada e solidificada nas prescrições da Constituição Federal de 1988. É óbvio que nossa Democracia bebe de outros “berços”. Não fomos os inventores do modelo. Houve a Magna Carta de 1215 na Inglaterra e, depois dela, muita coisa aconteceu. A Independência das 13 Colônias Americanas, a Revolução Francesa, nas décadas de 70 e 90 do século XVIII, respectivamente. Mais tarde, a Constituinte de Weimar, em 1919, a Constituinte Mexicana, pouco antes, em 1917. Todos esses movimentos influenciaram o Brasil, antes, durante ou depois de suas diversas Constituições, com a mais antiga, outorgada em 1824, e a mais nova – espero que você saiba – promulgada em 1988. Os impactos das Grandes Guerras: A Liga das Nações surge na esteira da Primeira, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Segunda. Não se pode ignorar tais eventos nesse processo de constante (re)modelagem do que é a Democracia.

Porém, tudo o que discuti até esse ponto é muito mais teórico do que efetivamente prático. Na realidade, eu deveria ter dito que isso é o “como” se faz uma Democracia moderna. Mas não é isso que ela é. O que ela realmente é, eu empresto do trabalho superior elaborado pelo Professor Michel Mascarenhas Silva, Mestre em Direito Constitucional, docente da Universidade Federal do Ceará:

“(…) a democracia se baseia em dois elementos: a liberdade e a igualdade. Como regime de liberdade, “a democracia se caracteriza como um regime de franquias, garantidor da plenitude individual e hostil, portanto, a toda ideia de privilégio e submissão”. Entre os corolários da liberdade estão a segurança de direitos, a impessoalidade no exercício do poder, a prudência e a publicidade. Quanto a igualdade, significa que a democracia não pode ser um regime de franquias, isto é, não pode implicar apenas nas declarações de direitos. Como forma de assegurar a igualdade e não apenas a liberdade, deve ser estabelecido, ao lado das franquias, “certas providências relativas ao uso nocivo da liberdade, que consiste no seu emprego antissocial, anti-igualitário”. (…)”

Acrescento, da mesma fonte:

“(…)Aos elementos da democracia – liberdade e igualdade – é possível acrescentar, hoje, a dignidade. Se a democracia, embora com o sistema de frenagem recíproco proporcionado pela liberdade e pela igualdade, não for temperada com a dignidade, estará ela sempre fadada a deixar de lado sua principal razão de ser: o bem-estar do ser humano. Para que a dignidade possa ser assegurada num regime democrático é preciso a presença de três fundamentos: o reconhecimento de valores personalíssimos, inerentes a toda pessoa, que não podem ser relativizados; o respeito a liberdade espiritual; e a participação efetiva e ativa dos indivíduos na formação da vontade política.”(…).

Eu poderia debater por mais 10 páginas os significados por de trás desses excertos, mas, não é preciso para o principal: Democracia não é o sistema da maioria. E Democracia requer liberdade, igualdade, e dignidade, em sentidos e dimensões mais amplos do que o senso comum permite conceber, para todos os cidadãos (e “todos” significa “todos“). Esses valores e ideais não se negociam e não se relativizam.

Portanto, não: a Democracia não surge do nada. Ela não é qualquer coisa. São ideias que permeiam o coletivo humano ao longo dos últimos 8 ou 9 séculos de História (ignorando sua origem remota na Grécia, e ficando somente com a moderna concepção do sistema), e que evoluíram de maneiras diversas, ora convergentes, ora divergentes, nos últimos 100 anos. É muito tempo discutindo a moderna Democracia. Quase um milênio. E não se joga isso fora sem a devida consideração de tudo o que se passou.

E agora, sem muito pensar, as pessoas em diversas sociedades (Hungria, Polônia, Itália, Brasil e, porque não, Estados Unidos e Inglaterra) estão vendendo barato o que não tem preço. Herdar um país democrático (a despeito das enormes dificuldades que vivemos por aqui) é um privilégio pelo qual muitos morreram para construir, e o qual muitos jamais terão o privilégio de vivenciar… Alguns nascerão e morrerão em regimes totalitários, fascistas, de um Estado-Leviatã (como já discutimos aqui) que a todos esmaga. Deveríamos saber melhor sobre o a seriedade do que estamos tentando sabotar.

A Democracia asfixiada pelo Populismo

Nossa conversa começa com uma discussão sobre o que pode matar as Democracias.

E eu contextualizo que, enquanto a maioria das pessoas considera que só um golpe ou uma guerra sangrenta podem matá-la, eu sigo a linha do The Economist: O que a está matando, em lenta asfixia, com requintes de crueldade, é o populismo em fase metástica, se espalhando como um câncer pela política mundial, sem predileção por espectros à Esquerda ou Direita; Liberais, Conservadores, Progressistas. É a ironia de um “câncer democrático” (pois, atinge a todos) e que mata Democracias.

O populismo de Lula é o mesmo populismo de Bolsonaro. Não estou comparando governos, bandeiras, estilos e resultados. Estou comparando o tratamento dispensado ao sistema político por ambos. O resto não é objeto da minha análise, hoje.

E, afinal, o que é o Populismo?

O Populismo é a estética política que explicava, especialmente, governos do século passado na América Latina (especialmente, mas não só).

Suas características principais são:

  • um líder carismático que foge da imagem e atuação institucional, e tenta se ligar diretamente às parcelas mais pobres e/ou carentes da sociedade, tentando se passar por “gente da gente”.
  • Um forte nacionalismo econômico, e um ufanismo sobre aspectos sociais e geográficos que quase sempre são insondáveis, exceto para aquele que sustenta tais aspectos.
  • Forte lógica clientelista: O eleitor é cliente do político. Mantê-lo satisfeito com pequenos agrados e afagos basta para “fidelizá-lo”, com fins de se manter no Poder.
  • Fragilização do sistema político: Mais um “pré-requisito” do que uma característica, o populismo surge com força em momentos em que partidos e o sistema político ficam fragilizados, especialmente por escândalos, pela degradação da imagem das instituições políticas, e o descrédito e raiva da população contra seus representantes.

Adicionalmente, o “populismo de Direita”, como os cientistas políticos vêm chamando essa nova manifestação dos últimos 30 anos na Direita, tem algumas características adicionas, como:

  • Discursos anti-elites (mesmo quando o populista pertence a elas)
  • Combate ao Intelectualismo e às fontes de conhecimento que possam descredibilizar o senso comum (senso comum = “leite com manga mata”) que é base de argumentação e retórica do populista.
  • O constante ataque às instituições que a população considera como ruins, e a constante lembrança de que o populista é um outsider, alguém de fora de “tudo isso que está aí”, ainda que este candidato/político seja completamente ligado ao mundo da política, ou pertencente às elites que ele mesmo ataca (qualquer semelhança com Bolsonaro e Trump, respectivamente, não é coincidência).

A principal face do Populismo, portanto, é um forte cinismo contra o estabilishment, ainda que este populista tenha feito, ou siga fazendo parte desse mesmo establishment. É um sistema que aposta e se banca no “quanto pior, melhor”, pois, isso aumenta a raiva contra as instituições e apoia o argumento central do populista.

Um populista jamais pacifica e unifica. Ele sempre apostará no “nós contra eles”, e na divisão como forma de se manter no poder. Sempre haverão “os inimigos da Nação” ou “do Povo”.

Algumas pessoas dirão “oras, qual é o problema de votarmos em quem fala a verdade de que os políticos não prestam, se eles realmente não prestam?”. Desconfiar do Estado e dos governantes, eu diria que é uma obrigação.

“O preço da liberdade é a eterna vigilância”

…disse Thomas Jefferson. O problema não é desconfiar dos políticos e do sistema. O problema é o cinismo.

Esse cinismo que é típico e essencial ao Populismo – esse escárnio, essa constante insinuação (quando não escancarada) de que “ninguém presta” (além de quem fala, claro), e de que todo o sistema é podre – tem um grave poder destrutivo: Ele desacredita e deslegitima todas as instituições, e tudo o que caracteriza a Democracia. E com isso, de dentro para fora (pois, o populista foi democraticamente eleito) a Democracia morre. Isto porque as pessoas precisam acreditar na legitimidade do sistema para jogar pelas regras.

Há um velho ditado que diz que “não se joga a criança fora só porque a água está suja”, ou coisa do tipo. “A criança”, no caso, é a Democracia. “A água suja” são as peças que todos nós ajudamos a colocar lá, à Esquerda ou à Direita.

Mas, o discurso de quem está no topo da pirâmide (respaldado por milhões de eleitores que seguem dizendo “isso mesmo!”) é de que o sistema não presta, as instituições devem acabar, serem fechadas, devem ser amordaçadas.

E as perseguições às liberdades e o combate à igualdade e dignidade começam a ganhar força; tudo sob a proteção do discurso cínico de que ninguém age senão por interesses privados e egoístas.

Sob o cinismo, destroçamos a ideia do preâmbulo constitucional que assim o diz “(…)instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”(…).

A Democracia pode sufocar até morrer. E não é necessário nenhum disparo de arma de fogo. Aliás, como a Hungria de Viktor Orbán (Primeiro Ministro), ou a Inglaterra de Boris Johnson (P.M. também) vem demonstrando, não é preciso qualquer golpe: Não precisamos fechar o STF, fechar o Congresso, ou qualquer medida drástica para matar a Democracia: Se você consegue manobrar o sistema legislativo a ponto de levá-lo a aprovar leis que minem o sistema de freios e contrapesos, a Democracia pode ser morta “dentro da Lei”, sem nenhuma truculência visível.

O combate a quem combate a Democracia é o único lado certo.

Winston Churchill disse

“A Democracia é o pior dos regimes, mas não há nenhum melhor que ela”

Em algum momento, a Democracia como a conhecemos surgiu. E como todo evento histórico, ela pode muito bem acabar. Não defendo que ela resista para sempre, mesmo quando já não for o melhor sistema. No entanto, não podemos abrir mão dela se algo melhor não surgiu ainda. E eu garanto, com base em tudo que escrevi e pesquisei até aqui: Nada melhor surgiu.

Churchill resumiu tudo.

Vivemos a Era da pós-verdade. As pessoas realmente acham que “tudo é questão de opinião”. Como bem colocou um professor universitário americano, Mick Cullen

“dizer ‘essa é a minha opinião’ não torna o que você diz imune a estar completamente errado”

Nem tudo é questão de opinião. Defender a Democracia não é uma questão de opinião; é o único lado certo. Não importa qual seja o seu argumento, a Democracia é o sistema dos países que deram certo (afirmação com base objetiva, como no IDH). E não surgiu nada melhor do que ela, ainda.

A Constituição está aqui, escrita e promulgada, e é clara quanto ao que fazer e o que almejar como sociedade democrática (liberdade, igualdade, dignidade para todos, em uma sociedade que luta para ser livre de preconceitos quanto à cor, credo, raça, orientação sexual, crença religiosa etc.). Dizer que isso é “utopia” é se acovardar diante da missão que outros povos já conseguiram encarar (em algum grau, ao menos). É dizer “sim, só merecemos migalhas”.

A Democracia é o lado certo da História. E quem não gosta de suas regras, seus limites, suas instituições, também não gosta da sociedade que a Democracia representa. E contra esse tipo de gente, eu sempre me oporei.

Fica a única missão de quem é realmente “de bem” e quer, de fato, o bem da família brasileira (em toda a sua pluralidade de constituições e configurações, conforme o guardião da Constituição, o STF, já declarou em 2011).

Nas palavras da Constituição Federal de 1988, art. 3º:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E se você não acredita nesses ideias, porque lhe parece muito infantil, muito sonhador, ou porque você realmente não acha – ou tem a certeza contraria – de que todos (repetindo: “todos” significa “todos”) merecem igualdade, liberdade e dignidade, então eu e você estamos em lados opostos da História.

Acreditar em ideais não é o mesmo que dizer que eles são fáceis. Na verdade, é exatamente por serem difíceis que mais precisamos acreditar e lutar por eles.

Porque tudo o que temos hoje (liberdade de expressão, direito de escolher quem manda no Estado, etc.), e tratamos como se tivesse acontecido “de graça”, já foi “impossível” um dia, e muitos morreram para que tivéssemos o que, agora, desprezamos.

Não, Democracia não é qualquer coisa. Lutar por ela, para além de ideologias políticas, é o único lado certo da História.

Tabatas, partidos e as instituições brasileiras

Tabata Claudia Amaral de Pontes, nascida em novembro de 1993, cresceu na pobre Vila Missionária, periferia na Zona Sul de São Paulo.

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Vila Missionária, lar da Deputada Federal, Tabata Amaral

Filha de uma diarista com um cobrador de ônibus, se destacou na escola pública e, graças ao desempenho acadêmico fora da curva, conseguiu bolsa de estudo em uma boa rede privada do Ensino Médio que a colocou – pelo continuo e elevado desempenho acadêmico – na mira de universidades internacionais da pujança de Harvard, Yale, Columbia, Princeton, Caltech, sendo também aprovada na USP.

Escolheu a primeira da lista (Harvard) e lá, cursou um Major degree (um bacharelado) em Ciências Políticas, e um Minor degree (como se fosse um curso técnico, mas durante a própria universidade) em Astrofísica – não confundir com “Astrologia”, pois Tabata não é guru do governo…

Retornou ao Brasil com o prestígio de seu desempenho acadêmico e de sua formação internacional e, ao invés de buscar uma forma de lucrar com isso na iniciativa privada (poderia, por exemplo, se associar a uma empresa de investimentos, ou consultoria política, ou simplesmente trabalhar em um grande jornal), decidiu se dedicar à vida pública onde juntou voz com movimentos que se declaram como “uma alternativa ao establishment ( = a situação) político brasileiro”. Co-fundou o “Movimento Acredito” nessa mesma linha de pensamento. Simpatiza com o “ReformaBR” pelo mesmo motivo.

Dado seu destaque, suas premiações, sua liderança política, e sua breve biografia de menina pobre que supera as condições iniciais e vai até onde muitos preparados jamais conseguirão, Tabata logo foi convidada por meia dúzia de partidos a tentar uma carreira política. De todos, aceitou o convite do PDT (Partido Democrata Trabalhista) com a benção e uma “carta de recomendação” de seu maior expoente, Ciro Gomes, mais recente candidato à Presidência pela sigla, em 2018. Ciro chegou a dizer que “Tabata era uma das maiores ativistas da Educação Brasileira” e “um tesouro” para a cena política brasileira.

Tabata foi eleita para Deputada Federal com quase 265 mil votos, tornando-se a sexta Deputada Federal mais votada em São Paulo, em 2018. Poucas histórias políticas pareciam tão cheias de vigor, apoio, esperança e realização de expectativas como a de Tabata.

Mas, no meio do caminho tinha uma pedra… E a pedra era a votação na Câmara para a Reforma da Previdência que se deu em 10 de julho de 2019. Ao votar a favor, Tabata contratou, com sucesso, o ódio de seu partido, da militância deste, e de seu padrinho de maior expressão, Ciro.

Dentre as várias frases críticas a Tabata, Ciro disse que “não se pode servir 2 senhores”, em clara alusão à sua militância pelo PDT, enquanto se mantém ligada ao “Movimento Acredito” como cofundadora, ou mesmo ao “ReformaBR”, como simpatizante. Essa “dupla militância”, como alega Ciro, explicaria a dicotomia da Deputada entre a determinação da Legenda que fechou causa em assembleia, no sentido de votar contrariamente à reforma, e o seu voto e de outros 7 correligionários (mais outros 11 do PSB) a favor.

Quem são “os 2 senhores” citados por Ciro? Quem é “o senhor” de um candidato? A quem um candidato(a) serve e a quem deveria servir? Tabata errou, acertou, ou nem um e nem outro? Santa, lobo em pele de cordeiro, ingênua ou genuína?

Desde o episódio que gerou um sentimento enorme de traição nas bases dos partidos em questão, em meio aos risos cínicos de quem se diverte com a aparente desorganização da oposição no episódio, eu tenho me feito essas mesmas perguntas e algumas outras.

O primeiro aspecto que acredito merecer o debate é o seguinte:

Em quem o brasileiro vota?

Este “em quem” é bem limitado. Preciso expandir para uma infinitude de outras colocações: Em quem, com que análise, acreditando no que, esperando o que, com qual consciência (tanto política como também, com qual grau de conhecimento sobre o sistema político em vigor, no Brasil)…

Numa linha mais sucinta, a questão fulcral (jeito chique de dizer “central”) é: Quando você, eleitor(a), digita o número do candidato na urna, o que diabos você está fazendo? O que você está esperando? O que você está “comprando”? É a ideia do candidato ou do partido? É a foto do candidato ou a bandeira da Legenda? Se você descobrisse que a resposta é o oposto do que você imagina (seja lá o que imagina), faria diferença, ao menos pra você?

E as perguntas continuam procriando como gremlins à beira-mar…

Independentemente do que eu venha a responder e se você venha a concordar ou não, o importante é admitir que, de largada, há dois problemas fulcrais (você já sabe o que quero dizer):

  • A maioria de nós não entende o mínimo das regras do jogo. Não sabe o número de candidatos, como se dá a divisão por estados, nem por legendas; não sabe sobre cociente eleitoral, a diferença entre sistema majoritário ou proporcional, e muito menos sobre as bandeiras de um dado partido, ainda que (inexplicavelmente) tenhamos afinidade com ele. Em resumo, nossa educação política é nula, ou muito perto da nulidade. Estranho seria se em um país com sistema educacional falido, a educação política fosse boa; claro…
  • Temos uma cultura agressivamente personalista: “compramos” pessoas, personagens e biografias, mas quase sempre torcemos o nariz para instituições, plataformas e ideias (que não tragam uma face em conjunto). Em resumo, esperamos pelo salvador, mas cagamos para a liturgia. E usei “cagamos”, porque sei que nosso atual Presidente gosta muito desse dialeto escatológico; estou tentando agradar.

E qual é o problema dessas hipóteses?

O problema é que não foi com esse tipo de mentalidade e expectativa que nosso sistema eleitoral foi desenhado.

O nosso sistema define que ninguém pode concorrer aos cargos eletivos sem filiação partidária. É o que se lê no artigo 87 e seguintes do Código Eleitoral, e demais inferências que vêm da própria Constituição Federal de 1988.

Ao colocar os Partidos como legítimos “fiadores” da candidatura de qualquer cidadão a cargo eletivo, nosso legislador não quis outra coisa senão alçar os partidos ao grau das Instituições. Assim, a ideia – a despeito do que achamos dela – é de que os partidos funcionem como pontos fixos no tempo-espaço da nossa jovem democracia, como balizadores do pensamento de uma dada época, mais ou menos liberais, mais ou menos progressistas, mais ou menos conservadores, enfim… Os partidos são, portanto:

  • Requisitos para qualquer candidato a cargo eletivo, no Brasil;
  • Têm certo destaque, tanto constitucional, como em código específico (o eleitoral), içando-os ao grau de instituições;
  • Esse grau institucional deveria – mas não consegue – nos fazer respeitá-los como certos balizadores do pensamento politico ao longo do tempo, e seus valores, suas posições, suas bandeiras, não deveriam ser facilmente descartados como se fossem “de pouca importância”.

O segundo problema é que muitos de nós – franca maioria – não sabe como o sistema político funciona.

Não sabe, por exemplo, que Senadores são eleitos para mandatos de oito anos, renovando as 81 cadeiras (3 por estado) a cada 4 anos, de forma alternada em um terço ou dois terços dessas mesmas 3 cadeiras por estado (é por isso que tem anos que você vota em um Senador, e tem anos que você vota em dois). Senadores também são eleitos por voto majoritário, logo, basta ser o mais votado de seu estado e você é o novo Senador, sem segundo turno.

Já, ao discutirmos sobre Deputados Federais, estes são eleitos pelo sistema proporcional, onde nenhum estado pode ter menos de 6 deputados, nem mais do que 70, somando os 513 deputados que formam a Câmara em Brasília, conforme artigo 45, §1º da CF. Essa diferença (6 ou 70) é definida pelo tamanho da população e, por isso, já podemos deduzir a primeira problemática: Como a lei exige 6 e não permite mais que 70, é óbvio que a Câmara não é tão representativa do Povo quanto deveria. A atual representatividade está distorcida, seja porque a população cresceu desde que definimos o número em 513, seja porque há estados que não deveriam ter 6 deputados, e há estados que não deveriam ter apenas 70.
Por fim, deputados representam o Povo, enquanto Senadores representam o estado (letra minúscula = SP, RJ, MG, etc.).

É o sistema proporcional que elege os deputados e que também define o número de candidatos eleitos em cada legenda, com base no cociente eleitoral. O cociente fará com que um candidato com 200 mil votos (exemplo) seja eleito por São Paulo no Partido A, enquanto outro com 300 mil não seja, pelo Partido B. Tudo isso depende de quantos votos, no total, o Partido A e o Partido B tiveram. Tudo isso dentro do máximo e do mínimo de Deputados. São Paulo, estado com mais de 40 milhões de brasileiros, não terá mais que 70 Deputados.

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E, de tudo isso, falta ao nosso eleitorado entender que, sim, embora você vote no Deputado com os 4 dígitos, o sistema proporcional estabelece que a cadeira pertence à legenda/partido (e suas bandeiras, valores, causas, etc.).

Já, o sistema majoritário (que elege Senadores, Presidente, Governadores, Prefeitos) não demanda a fidelidade partidária, conforme decidido pelo STF (ADI 5081).

Talvez lhe pareça ilógico. Para mim, dentro do sistema posto, faz todo o sentido. Oras: Se o candidato com 200 mil foi eleito por Partido A, enquanto o com 300 mil não conseguiu o cargo pelo B, fica evidente para mim que o candidato com 200 mil só conseguiu pela força de sua legenda, graças ao número total de votos. Podemos discutir que partido A recruta celebridades e figuras polêmicas, visando apenas o maior número de cadeiras, mas, hey! No fim do dia, quem decide votar na mulher-fruta, ou no palhaço engraçado somos nós, eleitores! A culpa não é – lamento dizer – mais do partidos do que é nossa.

Já, um Senador ganha somente se conseguir mais votos do que todos os concorrentes. Logo, ele depende só, e somente só, dos números que consegue na urna e não da performance do partido como um todo.

Podemos discutir as implicações disso tudo, claro, mas a regra atual é essa.

No que pese minha admiração pelas linhas gerais da história de vitória de Tabata (tudo o que eu já disse), sem esquecer de outras polêmicas (como as reportagens que apontam contrato celebrado com o próprio namorado, em 23 mil reais, para fins de produzir material de campanha), não posso esquecer de que ela foi eleita pelo sistema proporcional e que sendo a sexta deputada mais votada de São Paulo, não vale mais do que os outros sete colegas de legenda, que também desacataram o fechamento de questão imposto pela cúpula do partido e, segundo este, após várias rodadas de discussão onde Tabata e os dissidentes poderiam ter feito a defesa pelo não-fechamento – o que, segundo os oficiais do partido, não ocorreu.

Tabata se protege sob uma defesa de 2 polos:

  • Tem votação expressiva (a 6ª mais votada de SP) – o que, reafirmo, não é tão relevante no sistema proporcional para o resultado de estar ou não eleita;
  • Como condição de ingresso no PDT, fez com que o partido assinasse um manifesto que trouxe de seu “Movimento Acredito”, e tal manifesto colocaria o PDT em obrigação de se conformar com as atitudes recentes de Tabata.

Diante de tudo isso, acredito que nós temos um problema grave nas mãos: Os partidos, alçados ao grau de guardiões da Democracia, visto que são imprescindíveis para as intenções do cidadão que quer concorrer a um cargo eletivo, são tudo, menos uma referência de valores, bandeiras e ideias no imaginário do eleitor. Pior: nós acreditamos em figuras, personagens, votamos em slogans e sorrisos. Mas, quantos de nós, antes do voto em um Deputado, buscamos saber quais as bandeiras e valores da legenda pela qual ele está saindo candidato? Afinal, ele (ou ela) não tem total liberdade para fazer o que bem entende. A fidelidade partidária é assunto da Constituição no artigo 17, §1º. Logo, não estamos falando de mera “idealização”, mas da Lei de mais alta hierarquia no nosso sistema jurídico.

Porque não entendemos as regras do jogo, não entendemos o peso de votar em um candidato caricato que, muitas vezes, levará “reis e amigos dos reis” de uma legenda com valores que não são os nossos. E como candidatos que representam o povo, como os Deputados Federais, são os portadores da missão de legislar ( = fazer leis, melhores, mais eficientes, etc.), ao ignorarmos as regras do jogo (como o fato de que eles devem fidelidade partidária e são eleitos pelo sistema proporcional), nós facilitamos por demais a manipulação do jogo.

Tabata parece ter feito uma escolha que acredita ser necessária: enfrentar os partidos, suas estruturas, seus caciques. De certa forma, é outra maneira de fazer uma crítica à “velha política” – elemento indelineável e personalíssimo a cada um que você pergunte sobre. Bolsonaro diz que combate a velha política, Tabata também, e eu garanto que eles têm pouca ou nenhuma similaridade, senão pelo apoio à reforma da Previdência.

Eu louvo as bandeiras defendidas por Tabata em seus movimentos fundados e apoiados. Respeito a história e as bandeiras do PDT. Mas, eu quero lembrar a todos que o Brasil está cada vez mais distante das grandes democracias e dos países com alto desenvolvimento. E não é porque nosso povo seja menos, porque nossa colonização seja isso ou aquilo, feita por Sicrano e não por Fulano… Não…

O problema central é que, movidos pelos sentimentos, e espumando bile quando confrontados com o caderno Político, passamos a – sistematicamente – acreditar que os fins justificam os meios, que a Lei é, de alguma forma, inimiga das boas ações e dos ideais que queremos para nosso país. Quando, na verdade, como já defendi por aqui, as Instituições e as Leis são o único modo de construirmos um país sério, previsível quanto à sua atuação nas mais variadas instâncias e interfaces entre cidadão e Estado, que tenha limites, e que não faça o que quer com quem quer, do jeito que quer.

As instituições – dos partidos ao STF, passando por todo o resto, da empresa pública de águas ao DETRAN – podem estar tomadas por pessoas, figuras ou personagens muito mal-intencionados. Mas, isso só é possível pelo enfraquecimento da Lei, que leva ao enfraquecimento da instituição, que leva à possibilidade do rapto da máquina para interesses escusos e nada republicanos.

Ao desejar que as instituições não sigam as leis que antecedem a ação (e dão visibilidade, previsibilidade, limites claros e tantas outras garantias), estamos, na prática, assinando um cheque em branco. Se essa é mesmo nossa escolha, só resta rezar para que o cheque fique em mãos bem-intencionadas – o que é tão racional quanto… Bem, não é racional de modo algum.

Não destrói as possibilidades de Tabata, a questão do desrespeito ao PDT. Porém, me faz ver que vivemos tempos em que as pessoas realmente acreditam que os fins sempre justificam os meios. Isso precisa parar. Precisamos fortalecer as Instituições (todas elas) com leis claras, respeitadas e aplicadas, e se essas leis e dispositivos estão impedindo que o melhor para o país ocorra, que pessoas como Tabata, eleita pelo voto de vários de nós, tenham a fé de que só a mudança prévia da Lei gera um país melhor. A Lei precisa permitir, pelo simples fato de que, ao ser ignorada sob a justificativa do resultado, permite que qualquer um capture a máquina sob esse mesmo discurso, no futuro. E você, concordando ou não com o caso concreto (a reforma da Previdência), deve perceber o quão perigoso este jogo passa a ser por esta vereda.

Anteriormente, este texto apresentava erros de grafia e concordância, pois, foi publicado em uma versão de rascunho. Tentei a correção por celular, mas, aparentemente, ele manteve a versão antiga. Lamento pelo ocorrido. O texto foi melhorado.