créditos da imagem: Secretaria Especial do Esporte - Mundial de Baku
Aviso: este é um artigo de mera opinião. Logo, ele foge um pouco da lógica que consiste em apresentar fontes para as “grandes” afirmações, como faço por aqui. Você é bem-vindo(a) para pedir alguma fonte para alguma afirmação se quiser/precisar, e farei o possível para apresentá-la(s) a você.
Falar em “Justiça” é sempre complicado. Quem estuda Direito, então, pode lhe apresentar mil teses sobre “o real significado de ‘Justiça’”. Todas elas postulando, é óbvio, que sabem “a verdadeira verdade”.
Para uns, “Justiça” é fazer com que a Lei seja aplicada cegamente, doa a quem doer. É evidente, para mim e tantos outros, que esta concepção ignora a complexidade do mundo real e das circunstâncias que nele se desdobram, gerando, fatal e inexoravelmente, injustiça.
Para outros, “Justiça” é proteger o mais fraco em detrimento do mais forte. Por mais romântica quanto essa ideia possa soar, é evidente – com base em fatos históricos, inclusive – que sociedade nenhuma pode prevalecer se as “regras do jogo” são sempre subjetivas, e os direitos e obrigações dependem majoritariamente da “hipo” ou “hipersuficiência” das partes envolvidas.
Batido conceito em todo santo semestre da faculdade de Direito, lá vem Aristóteles definir o que é “Justiça”. E, frequentemente, sumarizam seu pensamento (que é mais complexo e mais profundo do que uma frase) assim: “Justiça é tratar os iguais, igualmente; e os desiguais, desigualmente, na medida de suas desigualdades”.
Este último conceito é o mais aceito como a definição “contemporânea” (bem antiga, por sinal) de “Justiça”, e é por este e outros motivos que o Direito do Trabalho – só por exemplo – tem o preceito basilar de “hipossuficiência do empregado” ante ao empregador; regra que, claro, comporta exceções.
Daí, aquele(a) mais espertinho(a) em pesquisa na internê, corre lá na Constituição e se apressa em compartilhar que assim diz o art. 5º da Lei Maior: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(…)”.
E truca…
E perde…
O problema de uma Lei que não foi escrita para ser acessível a todos é que a hermenêutica jurídica (palavra bem bonita/mala para “interpretação da Lei”) não permite a leitura de um artigo “solto”, sem compreender o sistema em que este artigo está imerso.
Logo, nenhum direito é absoluto. Nenhuma regra é concêntrica (ou seja, sem exceções). Nenhuma decisão é irreversível (não sem vários meios de questioná-la, e mesmo depois de “sentença que transitou em julgado”, o Direito ainda prevê mecanismos onde se admite revisitar tema já encerrado. [Nesses temas, o Direito corrente costuma falar sobre “Ampla defesa”, “Contraditório” e “Devido processo legal”, caso você deseje saber mais).
Mas, claro: isso são as exceções já que, como dito anteriormente, a sociedade não poderia viver com regras absolutamente subjetivas e que mudam ao gosto do freguês (a isto, o Direito dá o nome de “insegurança jurídica”; condição danosa à sociedade e à economia de qualquer nação). Pior do que uma regra ruim, é a regra que ora se aplica, ora não, a depender de condições completamente imprevisíveis.
E, depois de tudo isso, é bastante importante esclarecer que advogados não lutam primariamente por “Justiça”. É claro: se você já viu a entrevista de um advogado após, digamos, a inocência de seu cliente ser corroborada em juízo, ele sempre dirá “o que se fez, aqui, foi justiça!”, ou coisa que o valha.
MAS… Mas, advogados realmente lutam por direitos. E direitos nem sempre são justos.
E “Justiça” não se confunde com “Direito”. O dono de um terreno de vários quarteirões tem o direito de reaver o imóvel ocupado por dezenas de famílias carentes (em regra; portanto, há exceções). E isto nem sempre será justo, já que a propriedade deve atender à sua função social, conforme preceitua o inciso XXIII do mesmo art. 5º, da mesma Constituição Federal (que também não se pode ler de forma não-sistemática). Por outro lado, um cidadão com apenas um terreno pequeno, morando de aluguel em outra cidade, a trabalho, pode se ver em um processo que consumirá muito tempo e muito dinheiro para reaver um imóvel invadido por espertalhões ou mesmo criminosos. Novamente, a realidade supera em muito a capacidade de criar hipóteses, e em cada uma delas, descobriremos que nem sempre o que é certo é legal, nem o que é legal é certo. Essa divisão costuma mexer com a cabeça dos futuros advogados. É uma relação conflituosa desde que os ideais se chocam com a necessidade de pagar boletos (“boletos”, sim, porque sou cringe e ninguém os paga por mim).
Se entrarmos em um clássico terreno de desavenças entre jusnaturalistas (que seguem muito aos “contratualistas”, como Locke e Hobbes, mas especialmente a Rousseau) e juspositivismo (muito ligados à Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen), teremos todo um complexo tabuleiro de ideias para destrinchar. Chegaríamos aos extremos de que uma Lei, ainda que legitimamente erigida, deve ser sumariamente desrespeitada caso não seja “justa” (com toda a complexidade e inexatidão que cabe nessa palavra). Do outro lado, veríamos que se a Lei lhe permite fazer mal ou, simplesmente, não impedir que o mal ocorra, ainda assim, você será justo ao fazer o mal ou deixar de impedí-lo).
Por que toda essa ladainha?
Bem, porque Maria Portela, atleta olímpica do JuDo (são duas palavras/ideogramas[kanji]: “Do” = Caminho/Escola; “Ju” = Suavidade/Gentileza) brasileiro na categoria até 70kg, sofreu um assalto. Para facilitar, vou seguir com a grafia em português que é “Judô” .
E, já que iniciamos falando em Direito, vale compartilhar que não existe o crime de “assalto”. Os crimes contra o patrimônio, vistos no código penal são, geralmente, o furto (quando o objeto é subtraído sem violência ou grave ameaça) no art. 155, ou o roubo (quando o objeto é subtraído mediante violência ou grave ameaça), no art. 157. Há outros, claro.
“Assalto” é um conceito quanto à forma de agir. “Tropas de assalto” não são tropas militares criminosas, mas tropas com técnicas de assalto o que, basicamente, significa “pegar o adversário de surpresa”.
Afirmar que os árbitros do dia 28 de julho (no Japão) “roubaram” Portela, poderia me levar a responder por outro crime, o de Calúnia (quando se imputa fato típico [crime] contra alguém, falsamente), art. 138 do CP. Claro: ninguém vai ser processado por chamar o árbitro de futebol (ou de qualquer esporte) de “juiz ladrão” … A Lei ainda não é tão frívola. Ainda.
Mas, se eu disser que “roubaram” a Portela, estarei também dizendo que houve uma intenção danosa, uma vontade de cometer o mal à atleta. E é muito difícil afirmar isso, exceto em casos notórios e igualmente infames de árbitros que aceitaram algum tipo de vantagem ou promessa benéfica em troca de um favorecimento indevido aos mandantes (o que, basicamente, caracteriza a corrupção passiva; mas esta figura típica se destina ao agente público, havendo diploma para tratar do caso entre CNPJs… Outro dia, outro post).
“Assalto” parece mais correto. Portela fazia uma luta difícil, mas dentro de uma certa normalidade e, de repente, de assalto, foi duplamente punida pela arbitragem (em momentos distintos da luta) que se desviou do que era esperado por milhares de espectadores (uma pesquisa feita por uma atleta da modalidade resultou em 97% de participantes opinando que houve waza-ari [explico o termo, depois]). Daí, podemos dizer que ocorreu “insegurança jurídica” no mundo do Judô; claro, abusando agressivamente das analogias entre as áreas.
Talvez eu devesse ter feito isso antes, mas faço agora: fui judoKa (neste contexto, “Ka” = praticante. Mas, seguirei com a forma aportuguesada, “judoca”) no início da vida adulta, por três anos, aproximadamente. Ainda amo o Judô, mas não o prático mais por N circunstâncias da vida, incluindo carreira, obesidade, problemas, outros sonhos que pediram passagem, e por aí vai.
Não tive a oportunidade de iniciar cedo no Judô, como ocorre com a maioria dos que praticam a arte. Não morava em um local que permitisse isto (a academia mais próxima devia ser na Penha, a Associação de Judô Messias, local tradicional, conhecido por quase todos os judocas de SP; e eu morava na Cidade Líder/Itaquera); nem meus pais tinham as condições para manter esse tipo de atividade extracurricular nas agendas de meu irmão e nas minhas (se um tem, o outro também tem que ter – essa era a Lei).
Mais que isso: você geralmente gosta mais daquilo que conhece e é exposto. Daí a importância de incentivar seu(sua) filho(a) a ler, primeiro pelo exemplo (leia para ele, tenha livros por perto, na mesa do escritório ou da sala, mesmo sob o sacrilégio de não lê-los). No início da década de 90, não existia exposição a outra coisa que não o futebol. TV a cabo? Você está louco(a). Internet? Quase dez anos adiantado(a)… E eu não gostava de futebol. Então, os esportes demoraram um pouco para entrar nas minhas paixões e, até hoje, o futebol é a menor prioridade na lista que inclui várias modalidades como futebol americano, natação, vôlei (pelo qual tenho enorme carinho, mas fica para outro dia) e, claro, o Judô.
Suponho que ainda que meus pais tirassem recursos de onde não tinham para me pôr, digamos, no Judô (ou qualquer coisa diferente do trivial), o provável é que eu desanimasse e perdesse o interesse por não ter o nível necessário de incentivo ao meu redor. Nenhum primo com quem eu convivia fazia; nenhum amigo da escola (todos tão pobres ou ainda mais pobres do que eu). Esse ambiente é excelente para desistência de qualquer criança, em qualquer atividade. Elas já desistem de estudar o que são obrigadas a estudar (novamente, muito pelo que recebem de incentivo no meio em que vivem). Imagine algo que não é mandatório.
Com a vida adulta, o primeiro emprego formal e um pouco mais de constância, o Judô foi um lugar encantador num passado um tanto quanto turbulento com minha depressão, alguns sintomas de síndrome do pânico, e caos por todos os lados da vida. Sou eternamente grato ao Senpai ( = aluno mais experiente) Fernando de Bem, e ao Sensei Roberto Forte Katchborian e, claro, todos os demais Senpais e Kohais ( = o oposto de “Senpai”), pois, sem eles todos, eu jamais poderia amar o Judô.
Em específico, agradeço ao Fernando por me convencer a assistir ao primeiro treino, me oferecer o DoGi ( “Gi” = uniforme. O nome completo seria “judo-gi” [ou karatedo-gi, se for um traje para Karatê, e assim vai…]) emprestado. E, até hoje, a “minha” faixa branca não é minha, mas dele, emprestada também. Se é emprestada, Fernando, significa que ainda é e sempre será sua. Peça de volta quando quiser, pois, uma faixa carrega muitas histórias. O desgaste dela nos lembra das horas no tatame, e de toda dificuldade para alcançar o próximo Kyu (= “grau de iniciantes”), até chegar no 1º Dan (faixa preta, com “Dan” também significando “grau de perícia”), momento em que, dizem os judocas, “o Judô começa, de fato”.
Depois, agradeço ao Sensei Katchborian por tantas lições, aperfeiçoamentos, bondade, sabedoria, sensibilidade e mentoria. Um verdadeiro mestre adequa sua forma de ensinar ao ritmo, possibilidade e dificuldade de cada aluno, e não acredita em fórmulas mágicas ou em “ensino quadrado”, tentando empurrar o conhecimento de qualquer maneira. Espero, quem sabe, ainda poder voltar a treinar com meu mestre e concluir a formação básica. Depois da faixa branca, cinza, azul, amarela e laranja alcançadas, ainda faltam três Kyus (concluir a transição para a verde [que havia iniciado, mas parei] o que leva um ano, normalmente; depois, estar em nível com a roxa, o que pode levar dois anos; e por fim, alcançar a faixa marrom, onde o judoca fica, em média, três anos antes de se avaliar o preparo deste para tentar obter o Dan; contudo, este é o caso geral e cada caso concreto é único). Só então estarei pronto para pleitear meu primeiro Dan.
Com Sensei Katchborian também aprendi sobre os três grandes pilares do Judô:
- 1) Seiryoku Zen’Yo; tudo o que fazemos (no Judô e na vida) deve visar a máxima eficiência. Derrubar um adversário que pesa 100kg é sempre difícil. Faça da forma mais eficiente possível. Ao lidar com um problema na sua vida, resolva-o da forma mais racional e efetiva possível. É uma filosofia de vida e, por ser assim, é algo que o judoca persegue a vida toda, sempre imperfeitamente, mas sempre passível de se aperfeiçoar.
- 2) Jita-Kyouei; Meu treino e minha luta só são bons na medida em que são bons para o aprimoramento de meu adversário e/ou colega de treino. A solidariedade humana importa ao judoca que leva o Judô a sério.
- 3) Ju; a suavidade que o Judô prega nada tem a ver com a ausência de esforço. Mas, sim, com os movimentos mais eficientes quanto possível, para vencer o adversário. Às vezes, vencemos ao ceder a uma força maior que a nossa, e não ao nos opormos a ela (oposição que nos levaria à derrota, provavelmente).
Sem os Senpais e Kohais simplesmente não há treino, já que não é possível treinar Judô sozinho. Você até pode fazer algumas partes do treino individualmente, mas a parte em que realmente aprende é a parte em que enfrenta os adversários que o ajudam a ser melhor, como você os ajuda também.
E, mais uma vez, você se pergunta: “Onde diabos esse texto está querendo chegar?”. É uma pergunta justa. Eu tinha duas missões até aqui: 1) Compartilhar como o Judô se organiza e alguns conceitos básicos da arte, para que o texto tenha alguma valia para quem se dedicou a lê-lo; 2) mostrar que não estou falando de algo cuja ignorância não permitiria ver um palmo à frente (já que não cito fontes até aqui, você precisa confiar que eu sei sobre o que falo; e isso é sempre perigoso).
De volta a Portela
Maria de Lourdes Mazzoleni Portela, nascida em 14 de janeiro de 1988, em Júlio de Castilhos, Rio Grande do Sul, é uma judoca com trinta e três anos e meio, formada pela tradicionalíssima SOGIPA (Sociedade de Ginástica de Porto Alegre) que manteve em seus quadros os nomes que ficariam conhecidos no Judô mundial, inclusive revelando alguns deles, como João Derly (bicampeão mundial [2005 e 2007]; campeão pan-americano [2007]) e Tiago Camilo (campeão mundial [2007]; tricampeão pan-americano[2007, 2011, 2015]; duas medalhas olímpicas [prata em Sidney/2000 e bronze em Beijing/2008]).
Atualmente, conta com Mayra Aguiar (bicampeã mundial[2014 e 2017] mais cinco medalhas mundiais [prata/2010, bronze/2011, prata(equipes) e bronze/2013, bronze/2019]; campeã pan-americana [2019] e mais três medalhas [prata/2007, bronze/2011 e prata/2015]; e que acaba de conquistar o terceiro bronze olímpico, agora em Tóquio/2020 [os outros dois em Londres/2012 e Rio/2016], sendo a primeira mulher brasileira com três participações com medalha em esporte individual, em olimpíadas), Érika Miranda (três pratas em mundiais [2013/2013 {equipes}/2017] e quatro bronzes [2014, 2015, 2017, 2018]; além de campeã pan-americana em 2015 e outras duas pratas [2007, 2011]), Felipe Kitadai (bronze olímpico em Londres/2012; prata no mundial 2011; campeão pan-americano em 2011 e prata em 2015)…
…e, claro, Portela (duas vezes medalhista mundial [prata/2017 e bronze/2019] e duas medalhas no Pan-americano [bronze em 2011 e 2015]), filha da casa.
Conhecida na seleção nacional de Judô pela alcunha de “raçudinha”, Portela é um verdadeiro tanque de guerra em forma de judoca. Assistir suas lutas é ver um espírito combativo muito alto. Ela raramente se cansa antes do golden score (prorrogação) e busca o combate o tempo todo, até quando poderia simplesmente administrar a vantagem.
Mas, no dia de 28 de julho, em Tóquio, Portela seria desclassificada por excesso de shidos (faltas, cuja terceira gera a desclassificação do(a) atleta) após quatro minutos do tempo regular e quase onze minutos de golden score (prorrogação em que o primeiro atleta a marcar, vence. Não há limite máximo de tempo).
A desclassificação por shido, em si, não é polêmica, acontecendo com regularidade nas competições, com maior ou menor frequência, a depender do espírito da arbitragem naquela competição. Esse espírito se altera para mais rigor, ou menos rigor, conforme a crítica especializada e leiga comenta os últimos torneios. A IJF (International Judo Federation) está sempre tentando tornar o Judô mais atrativo ao grande público. Na minha nem tão modesta opinião, às vezes, às custas da alma do Judô; como quando baniu alguns golpes que compunham o Go Kyo (os quarenta golpes fundamentais do Judô, criados e esquematizados por seu fundador, Sensei Jigoro Kano, em 1882).
Entre as evoluções (lembrando que “evolução” não é sinônimo de “melhora” [pergunte para alguém que evolui a óbito; ou melhor… Tente perguntar…]), eliminou-se as notas “Koka” e, mais recentemente, “Yuko”. O atual sistema de notas é composto por apenas dois critérios: Ippon (o golpe perfeito, que termina o combate imediatamente) e Waza-ari (um “Ippon imperfeito”. Dois waza-aris encerram o combate). O tempo regular de combate caiu de 5 para 4 minutos, e shidos não desempatam mais as lutas (embora possam eliminar o adversário, como aconteceu com Portela). Tudo para tentar tornar a luta mais dinâmica e mais “viva” para o público em geral.
Portanto, ninguém “dá Ippon” em ninguém. Ippon é uma pontuação que depende da perfeição com que um golpe é aplicado. Assim como Waza-ari também não é um golpe, mas sua pontuação (e que se pronuncia como “uazaari” e não “vazari”, como lamentavelmente todo narrador e até judocas dizem por aí). Até existe um golpe chamado de “ippon seoi nage”, mas quando judocas abreviam o golpe, se referem a ele como “seoi nage”. Então, de agora em diante não diga “ele deu ippon”. Pode dizer, porém, que “ele(a) jogou o adversário de ippon” (analogamente a quando dizemos que alguém fez um gol “de placa”); porque a projeção efetuada se deu com perfeição e gerou um ponto perfeito, o ippon. Ippon e waza-ari adjetivam o golpe realizado. Não são golpes em si.
Abaixo, o nome dos golpes incluídos no Go Kyo (há mais golpes, esses são os principais para projeção [nage waza]. Há, ainda toda uma parte de solo/imobilização [ne waza] e toda a parte de chaves [kansetu waza] e estrangulamentos [shime waza]):

Então, onde reside a polêmica que leva Portela a ter sido “assaltada”?
Portela fez uma luta boa. Mas sua adversária, Madina Tamaizova do Comitê Olímpico Russo (ROC) – já que a Rússia está punida pelos escândalos de dopping e não pode atuar nos jogos olímpicos com a bandeira nacional – também foi sobrenatural. Na realidade, conforme a história do dia 28 se desenvolve, o brasileiro que entende de Judô passa de ódio para perplexidade, terminando até mesmo em admiração pela capacidade de superar a dor que Tamaizova demonstrou. MAS, vamos devagar…
A luta entre Portela e Tamaizova era o round de 16 avos da final. Depois, obviamente, vinham as oitavas de final e assim por diante. Nos campeonatos atuais de Judô, não há “fase de grupos” … Você entra e se perder, está fora. Fim de papo. A repescagem surge nas quartas de final, e o Judô geralmente premia quatro medalhas, sendo um ouro, uma prata e dois bronzes (os perdedores das semifinais enfrentam os vencedores da repescagem, pelos dois bronzes à mesa).
A primeira luta de Portela foi contra a afegã do time de refugiados, Nigara Shaheen (que não consta no ranking IJF em suas primeiras cem posições), e foi vencida em altíssima velocidade pela brasileira que ocupava a nona posição no ranking mundial da IJF para mulheres até 70kg, sua categoria e a categoria do dia nas Olimpíadas de Tóquio. Um belíssimo sode-tsurikomi-goshi foi aplicado com apenas 28 segundos de luta. Golpe muito plástico e de execução perfeita por Portela. Ippon. Fim de combate.
Do lado da Tamaizova, naquele momento, décima segunda do ranking IJF, a russa enfrentaria, na primeira luta, Maria Bernabeu, espanhola, décima oitava do ranking IJF naquele momento. A luta foi vencida por um soto-makikomi imperfeitamente executado, que resultou em um waza-ari para a russa ao primeiro minuto e sete segundos, e a luta durou os quatro minutos típicos e previstos.
É evidente que enfrentar uma refugiada que não treina regularmente é comparativamente mais fácil do que enfrentar a décima oitava da categoria na IJF, embora o ranking tenha uma série de imperfeições em seu sistema de ranqueamento, mas não cabe discutir isto por aqui, agora.
Então, chega a luta fatídica: Portela e Tamaizova. Trinta e três anos e meio do lado brasileiro, vinte e dois anos do lado russo. 1,58m do nosso lado, 1,69m do lado adversário. Ambas no limite da marca de 70kg (embora a realidade não seja bem essa).
O arbitro foi o Sensei (todo arbitro de Judô também é judoca) Everardo Garcia, do México. Não tenho os dados dos árbitros no VAR/banca.
E a luta foi assustadora. Quatorze minutos e cinquenta e oito segundos de duração. Basicamente, três lutas em uma.
Nos primeiros quatro minutos nada de realmente grande ocorreu, mas, já era visível que os trinta e três anos de Portela lhe rendiam mais astúcia e controle na luta contra a novata de vinte e dois anos. Portela teve, certamente, mais volume de luta. Tanto que o primeiro shido (punição) saiu aos 4m35s para a russa, por evitar a pegada (o que é um “antijogo”). Porém, cinco segundos depois, o mesmo shido foi dado a Portela. Nesse tempo, já estávamos em golden score. O primeiro ponto, waza-ari ou ippon, encerraria o combate, portanto.
O polêmico golpe não concedido à Portela foi desferido aos 3m02s do golden score (portanto, 7m02s no total); um eri-seoi-nage, imperfeito, já que as costas da russa não atingiram totalmente o chão, mas ela acertou o tatame de um ombro ao outro (rotacionando a omoplata contra o solo) e em alta velocidade. O arbitro não concedeu o waza-ari à brasileira, emitindo o comando de “mate” (que interrompe o combate) e acionou o VAR para revisão. Após quase um minuto, o waza-ari seguiu não concedido.
O que diferencia um waza-ari de um ippon?
Talvez, aqui, caiba uma pequena pausa para classificar ippon e waza-ari, quanto a pontuação de um golpe.
Conforme preceitua o documento “IJF Sport and Organisation Rules (SOR, Version 8 October 2019)”, um ippon é a aplicação perfeita de um golpe de Judô. Essa perfeita aplicação requer quatro critérios: a) Força; b) Velocidade; c) Queda do adversário sobre as próprias costas; d) Controle habilidoso sobre a queda do adversário até o contato deste com o chão.
Portanto, o arbitro avalia o domínio da técnica pelo Tori (quem arremessa), e controle da queda sobre o Uke (aquele que cai), fazendo com que este último atinja o solo com as costas “chapadas” contra o tatame, de maneira completa. A velocidade e a fluidez do golpe também importam.
Já, um waza-ari é um golpe em que algum dos quatro elementos (ou até mais de um), acima, está incompleto. O controle da queda não era pleno, as costas não atingiram o chão completamente, não houve velocidade suficiente, e por aí vai.
Para mais detalhes, consultar páginas 116 a 118 do referido manual (em inglês, no site da IJF).
Voltando ao combate
Portela projeta Tamaizova através de um sode-tsurikomi-goshi a 3m02s do golden score. A atleta cai com o ombro direito e, depois rola até o esquerdo. As definições típicas de um waza-ari estão caracterizadas, na minha opinião, opinião inclusive embasada nas descrições do documento da IJF. A atleta russa chega, ainda, a usar – intencionalmente ou não – o pescoço durante a queda; algo que, se realmente caracterizado, acarreta a desclassificação (“hansokumake”) da atleta russa pelo perigo à coluna dela mesma. Só lembrar do segundo princípio do Judô, o Jita-Kyouei.
E, não se enganem, porque eu não me engano. Em conversa com amigos, eu já havia dito que não acreditava em medalha de ouro para Portela. Especificamente, eu disse a eles: “Portela tem poucas chances reais de lutar por prata/ouro, mas o bronze não é impossível. A luta dela é a oitava no tatame feminino. As favoritas do 70kg são Van Djike(HOL) e Pinot (FRA), com Arai (JAP) correndo por fora. A Portela pega uma afegã do time de refugiados, e é esperado que ela vença essa, ao menos”.
Então, não. Nunca achei que Portela seria ouro em Tóquio. Aliás, eu acho até que demandar o bronze dela, ou de qualquer atleta é um defeito de quem assiste a uma competição olímpica (“demandar” é diferente de “achar possível”).
Uma olímpiada tem um complexo ranqueamento para a qualificação do atleta aos jogos, logo, ninguém ali é muito fraco. Claro que há o time de refugiados, o país sem qualquer tradição na modalidade, etc., etc., etc…. Mas, mesmo assim, quando olhamos, por exemplo, um brasileiro em décimo lugar numa lista de dez competidores olímpicos, é ignorância reduzir o pensamento a “ele(a) ficou em último(a)” . No ranking olímpico, sim. No ranking do mundo, absolutamente não. Porque onde ele(a) se classificou, centenas e até milhares não conseguiram.
Em modalidades como a natação, por exemplo, muitas vezes a diferença entre o ouro e o sexto lugar, digamos, está na casa dos centésimos de segundo. O medalhista de ouro, na categoria masculina, Caeleb Dressel (EUA), fez os 100m nado livre em 47s02c, e o sexto lugar, Alessandro Miressi (ITA), fez em 47s86c… Mesmo do primeiro para o último colocado na final, a diferença foi de um segundo e oito centésimos. Isso mesmo. O tempo que você levou para ler a última frase é o que separa o campeão e aquele que você, talvez, considere um perdedor.
É claro que atleta nenhum sai de casa, rumo a uma olímpiada, desejando ficar fora do pódio. Mas estar lá já o credencia a dizer que ele pertence à elite esportiva mundial. Você concordando com isso ou não.
Mas, o que realmente frustra no caso Portela é a ambiguidade. A “insegurança jurídica” é o que corrói. Eu consigo apontar N quedas muito similares, senão menos características do que aquela, e demonstrar que as comissões de arbitragem declararam o waza-ari.
Mais do que isso: se a atleta russa defendeu a queda usando o pescoço para evitar o rolamento sobre a omoplata (o que seria waza-ari), então, ela deveria ser imediatamente desclassificada por hansokumake. E se não usou o pescoço, então o que DIABOS ela fez para bater o ombro direito e não rolar as costas inteiras até o esquerdo? Qual mágico movimento ela pode ter performado que não envolveu a ponte com o pescoço ou o rolamento por sobre toda a omoplata?
Leandro Guilheiro, que ainda atua na preparação dos atletas do Judô brasileiro alegou que, em apuração com um membro do comitê de arbitragem, seu contato disse que é pacificado que aquela queda não deve ser pontuada. E, novamente, não se enganem: o Judô de alto nível, como quase tudo que fica grande e mundial, tem muita politicagem. É muito difícil que um arbitro oficial acuse outro arbitro oficial de equívoco no julgamento. Qualquer semelhança com o judiciário brasileiro é mera coincidência.
O que resta?
Não resta nada. O estrago foi feito. As entidades desportivas brasileiras se acovardaram ao não tomar uma posição propositiva em prol da atleta; como sempre fizeram e como sempre farão, de seu patamar e postura sempre servis, sempre subalternos.
Eu me recuso a reprisar as imagens do choro comovente de Portela. Ela sofreu como sofre a vitima de um crime. E foi um crime. Não em sentido estrito, claro. Mas em um sentido emocional. Humano. Ético, por que não?
A história de TODO atleta – do nosso lado e do lado de lá – envolve muito sacrifício, escolhas difíceis, quase sempre muita dor. Em esportes como o Judô, as lesões são ingratas companheiras na jornada, quase sempre certas numa longeva carreira.
Esporte pode até ser sinônimo de saúde. Não o esporte de alto rendimento, contudo. Não há nada de saudável no esporte de alto nível, e não acredite em quem diz que há.
O dopping é uma das faces do “melhoramento humano” que o esporte de alto nível pode incentivar (especialmente, quando a medalha é tudo o que importa para uma dada cultura desportiva, pressões por resultados, dos torcedores, dos patrocinadores, do Estado [como no caso russo]).
Outra face são as lesões que deixam marcas permanentes (de dor na aposentadoria, de mobilidade reduzida), os tratamentos paliativos para um(a) atleta lesionado(a) seguir atuando, quando ele(a) deveria se retirar da ativa, tratar a lesão por meses, e não simplesmente seguir convivendo com a dor atenuada, meses a fio, piorando a lesão no longo prazo.
No Judô, como em toda modalidade de combate, é comum que o atleta use medicação para induzir a diurese e até diarreia, antes da pesagem. O atleta pesa, digamos, 76kg… E perde quatro, seis, oito quilos de água e nutrientes antes da pesagem, para entrar na categoria inferior. Depois, corre para se hidratar até a luta. Chame isso do que quiser. Menos de “saudável”.
E, depois de uma vida de preparação e dos esforços focados no ciclo olímpico – quatro anos de muito esforço, muita dor, muitas restrições, derrotas, vitórias, viagens… – a atleta Portela chegou até o momento de ver a redenção de sua cruz pessoal como atleta de alta performance.
Chegou até o momento, mas, viu o momento lhe ser tirado das mãos por fatores que, elogiosamente, chamarei de “caprichos de interpretação”.
O choro de Portela não foi por perder aquela luta, garanto. Foi, sim, por ver o sonho de uma vida ser arrancado de suas mãos sem que ela tivesse merecido a punição que lhe foi aplicada. A punição de um ponto não atribuído. A punição de, depois de praticamente quinze minutos, ser desclassificada por “falta de combatividade”. Um absurdo, por qualquer ângulo, para qualquer um que assistiu a mesma luta que eu assisti.
Tamaizova não é culpada de nada, até que se prove o contrário. Como eu disse, ela também deve ter uma história de vida e de atletismo muito parecida, senão igual ao da nossa Portela. Mas, eu tenho convicção de que ela não mereceu a medalha que levou, mais tarde (o bronze). E não por ela, em si. Mas, porque não era ela que deveria ter passado de round. Bem… Se o mundo fosse justo…
Pior do que isso: toda vez que eu me lembrar de Tamaizova, toda vez que um vídeo da história olímpica de 2020/2021 for reprisado, nas semanas que antecedem a próxima olimpíada, eu serei lembrado do crime que Portela sofreu. Eu serei forçado a dizer “não, Tamaizova… Essa medalha não é sua. Não era no seu peito que ela deveria estar. Se deveria estar em algum lugar, era no peito de Portela, se é que ela não iria mais longe, depois de lhe vencer”…
Deve doer demais. Nunca fui atleta profissional. Mas eu já tive sonhos arrancados de mim por motivos e forças que eu não tinha como lutar contra, ou alterar. E sei como é um sentimento cruel que te persegue pelo tempo. Creio que você também já se sentiu assim, em algum ponto, ou agora mesmo. Creio que todos já se sentiram assim. Então, porque se solidarizar publicamente com Portela?
Porque Portela representa parte do espírito humano de superar desafios, superar a si mesmo(a), seguir, mesmo com dor. São valores caros, especialmente para os tempos que passamos. São valores que, não só, mas especialmente, o esporte consegue cristalizar e ensinar.
Recuso-me aos chavões. Bobagens como “fulano(a) é um herói!”… Pura bobagem. “Herói” é palavra que reservo a quem faz algo realmente heroico, especialmente quando a vida está em jogo, ou outra coisa que valha quase tanto quanto. Atletas raramente são heróis só por serem atletas. Raríssimas vezes a palavra “herói” pode ser usada para alguém que, por vontade própria, decidiu competir e ganhar a vida através das competições desportivas.
Mas, Portela merece minha simpatia, me compadeço e entendo seu luto e sua dor, porque Portela é um símbolo que me lembra das vezes em que sonhei, em que dediquei bom tempo da minha vida a um propósito, com um custo (financeiro, material, emocional, temporal…) que só eu conheço, e isso foi tirado de mim sem que eu pudesse enfrentar aquilo em pé de igualdade. E eu lembro do sabor terrível de “injustiça” na boca. E consigo imaginar o gosto amargo que Portela teve de sentir, ali.
E, no fim, essa me parece a maior importância dos jogos olímpicos no mundo contemporâneo: ao mesmo tempo que os atletas representam a elite do preparo humano, do aperfeiçoamento da técnica, da precisão que beira ao maquinal… Eles também nos lembram da nossa humanidade, da nossa falibilidade, dos nossos limites, e de que essa vida é dor, é superação, é choro… É tudo que o comercial ou o coach não nos conta… A vida é cíclica, como um ciclo olímpico. Tudo que começa, um dia acaba. Muitas e muitas vezes, sem direito a protestos de “justo” ou “injusto”, com toda a imprecisão que tais termos carregam, como já discutimos.
Com a idade que tem, Portela já é “velha”… Outra face muito cruel do esporte profissional. Além do que, as novas gerações já estão pedindo passagem e o esporte olímpico, como a vida, faz o novo substituir o velho com muita frequência… Mas, agora, torço MUITO para ver Portela em Paris 2024.
Não porque eu ache que com trinta e seis anos e tantos meses, em 2024, Portela estará mais pronta ou terá mais chances do que tinha nessa edição.
Mas, se Portela voltar à Paris, ela me lembrará de algo que as Olimpíadas e especialmente, o Judô, sempre tentam nos ensinar: a vida vai nos derrubar inúmeras vezes. A real questão é quantas vezes teremos forças para nos levantar do chão duro em que ela nos jogou. Inclusive, quanta força ainda temos, mesmo cientes de que ela sempre vence e sempre nos dá o último tombo.
Força, Portela! Por você. Por mim. Por todos que sabem o que é ter um sonho arrancado das mãos e ter que se levantar depois de um pesadelo que ocorre enquanto estamos de olhos abertos.
Força! Não só por você. Mas por todos nós que já caímos, ao menos uma vez, e seguimos levantando enquanto der.