Sobre a dignidade de uma vida

Advinha quem é meu avô na foto acima! Dica: Ele é o mais estiloso de todos…

Ontem, vi a feição de meu avô Alcides pela última vez.

Não posso dizer, sob pena de incorrer em falsidade, que isso me pegou desprevenido. Nascido em 1935, contando oitenta e sete anos completos no último domingo, ele já lidava com a decadência de sua saúde há muito tempo. Na última quinta, ele nos deixou.

Um fato ocorreu em seu velório, fato que gerou o gatilho para esse texto. Quem acompanha o blog sabe que não sou afeito à exposição da vida privada (nem a minha, nem a dos demais). Em tempos em que tudo se publica – da foto do prato ao que se faz no vaso sanitário – eu realmente acho que a separação entre vida privada e pública não é mero preciosismo ou cafonice. Pelo contrário: é um dos últimos redutos de defesa de liberdades e direitos – que deveriam ser – indisponíveis; liberdades e direitos que, perdidos, são muito, muito, muito difíceis de se recuperar.

Mas eu falava de um fato: O fato foi que minha tia Rute, a filha mais velha de oito que descendem de seu Alcides, me chamou de surpresa para sustentar algumas palavras ao lado da urna mortuária. Embora eu estivesse emocionalmente bem – tanto quanto se pode estar numa situação dessas – eu recebi a convocação com certa incredulidade e caminhei assustado e com as pernas me traindo até ali, com tantos olhos depressivos vigiando a minha passagem. E como passava na minha cabeça, imagino que na deles também passava a emblemática frase “que p@#$ é essa?”… O que um “pirralho” de trinta e cinco anos – neto, sequer filho – teria a dizer sobre um homem de oitenta e sete anos e alguns dias, e que partira? Se você estava lá e se sentiu assim, saiba que não foi o único. Senti-me um usurpador. Como poderia, eu, falar algo significativo de meu avô para sua mulher, seus filhos, seus outros netos, e tanta gente ali presente e que sentia a dor da despedida de forma muito mais visível e profunda do que eu?

Aqueles trinta segundos, do lado externo até o centro da sala de velório, fizeram minha mente correr em tantas direções; os instintos de “fuga ou luta” disparando, passava pela mente os clássicos cenários de “what if” para um falso desmaio ou uma crise de choro forçada (saídas honrosas, talvez?)…

Pausa por um minuto. Quero promover “desagravo preventivo” à imagem de minha tia Rute (risos). Embora tenha sido ato um tanto quanto impensado, no sentido de não saber se eu era orador adequado, se eu era aceito a representar por toda a assembleia ali em luto, preparado para a missão, com dados, com repertório, com desenvoltura para aquilo… Eu acho que entendo porquê ela fez isso: coisa de vinte minutos antes, ela ouviu eu conversando com outra tia, mais abalada, e eu disse algo como “tia, ele teve uma vida digna, 87 anos de luta… 87 anos e 8 filhos criados de forma honrosa… Se isso não tem valor, se essa vida não pode ser comemorada, o que é que pode?”… E tia Rute me disse “filho, você devia falar isso para todos”. E eu pensei “ah, claro… rsrs…”. E aquilo, para mim, tinha acabado ali. Para ela, não

Sinceramente, quando comecei a falar, eu não sabia bem o que tinha que ser dito. Eu não sabia o que importava, eu não sabia quanto tempo era adequado (nota mental: pesquisar no Google Bing: “Etiqueta na feitura de elogio póstumo”), qual o espaço para uma piada de alívio? É uma comunidade preparada para se alegrar com histórias divertidas que sei de meu avô?… Optei pela sobriedade, optei por uma fala forte, de tom quase marcial. Abri com um forte “bom dia!” e emendei algo como “falo forte, porque meu avô sempre se fez ouvir com clareza, nunca falou ‘para dentro’ e eu não posso fazer menos por ele”. Digo que “emendei algo como” porque, sincera e honestamente eu não faço ideia do que, exatamente, eu falei. Era um misto de “não posso falhar!” com “acaba logo, porra!”.

Para minha IMENSA sorte, eu conhecia dados relevantes do meu avô, como local em que nasceu, destino de sua cidade natal (que não mais existe), sua trajetória até o Sul do país, local e data em que se casou com minha avó, e alguns causos rápidos. “Sorte”, digo, porque essas informações me deram algum estofo para encher um texto que se construía enquanto eu falava. O famoso avião que alça voo enquanto a asa é rebitada… Longe da premeditação de um texto preparado (como este), de uma construção preocupada com a semântica, com a escolha dos sinônimos e de sua carga significativa ao público escolhido; de uma produção textual arvorada em ponderação e recursos de linguística… Ali, naquele momento, o tempo que eu tinha para pensar na próxima frase era o tempo de falar a frase anterior.

Esse foi meu gatilho para este texto; está tudo esclarecido, penso eu.

O motivo para este texto é seguinte: Reparo. Aquele “texto” de ontem foi um improviso mequetrefe, indigno de uma biografia de OITENTA E SETE ANOS. Honesto e sincero, sim, como talvez eu jamais consiga repetir no texto que segue; entretanto, incapaz de dar a dimensão humana que eu realmente credito à memória do homem cujo receptáculo sepultamos no Carmo, ontem.

Um parente me disse “cara, não consigo entrar lá… Não consigo ver o vô assim”. E eu lhe disse “mano, não viemos enterrar o vô. O vô se foi faz um dia. Aquilo ali que vamos enterrar era só o palco onde o show se passou”. E eu realmente acredito nisso; talvez como defesa? Talvez. Mas, para mim, a dor da perda não reside em ver o corpo de alguém. A dor reside no dia a dia, no prato que não se põe mais a mesa, na briga pela programação da TV que não mais existe… Aquilo ali no “caixão” é só o fim biológico. A vida de um ser humano, quando bem vivida, é muito mais do que adeninas, citosinas, guaninas e timinas, respiração celular, meiose e mitose, e reações bioquímicas do gênero que mantêm a máquina pulsando e se movendo.

Meu avô, Alcides Martins de Andrade, nasceu em Corredeira, então munícipio do centro-oeste paulista, na madrugada do dia 13 de março de 1935. Corredeira perderia sua autonomia mais tarde, sendo integrada como distrito de Pirajuí, atual munícipio daquela região. O local é próximo de Bauru, Garça, Marilia[…] cujos nomes servem à memória geográfica de forma mais útil.

Filho de uma espanhola e de um brasileiro, viveu com seus outros irmãos (desconheço o número exato, porém, até onde a memória vai, outras cinco crianças) em uma casa de dura disciplina, típica daquela geração dos meus bisavôs. Conheceu a escassez alimentar, e foi um fruto da baixa instrução escolar pública, tão comum, inclusive hoje, a quem não veio a esse mundo com um sobrenome que signifique, ao trocar em miúdos, “patrimônio prévio”. Começou na vida adulta muito cedo. A ideia de “infância” que temos, hoje, é quase incabível e cem por cento anacrônica para a história de esmagadora parte dos brasileiros que datam dos tempos de meu avô. Por volta dos quinze anos já tinha a profissão de comerciário, trabalhando para diversos armazéns da região; a carreira relativamente precoce, me contou certa feita, também foi uma forma de “se proteger” do duro trabalho braçal que tinha que realizar ao lado de seu pai.

No começo dos anos 1950 migrou para a cidade de Alvorada do Sul. “Alvorada do Sul” que, apesar do nome, está no norte do Paraná, coladinha ao rio Paranapanema, rio que ajuda a dividir fisicamente os estados de São Paulo e Paraná. Foi lá que, em 30 de outubro de 1954, casou-se com a senhora minha avó (e que ainda está conosco), dona Lourdes Maria Madruga (também natural de São Paulo, mas de Pontal, no norte paulista, acima de Ribeirão Preto), e que viria a adotar seu sobrenome após o casamento.

Foi também por lá que minha tia Rute e minha mãe vieram à luz. Depois delas, ainda viriam outros seis filhos, em diferentes lugares do Sul do Brasil: Débora, Rubens, Itamar, Marcos, Davi e Paulo Sérgio (PS: já deixo sinceras escusas aos citados por qualquer imprecisão, contudo, essa é uma história sobre o vô e não sobre os senhores, e ela vem da minha memória que, por questões óbvias, não faz compasso em tudo que é pregresso à minha existência… 😊).

Meu avô foi um homem que trabalhou em ramos muito diferentes ao longo da vida. De homem do campo a comerciário, passando por taxista, zelador, vendedor, corretor imobiliário, até chegar à profissão que lhe possibilitou estabilizar na vida: Carpinteiro. Nessa profissão, fez a vida que todos seus descendentes vieram a conhecer. Tudo que construiu quanto a patrimônio material em São Paulo foi fruto dessa atividade.

Até onde a memória me permite acessar o passado, se instalou provisoriamente com a grande família na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, em algum ponto na virada dos anos 1970 para os 80. Ali cresceram meus tios, de fato, sendo que a maior parte das memórias que contam vem daquele período. Morariam, ainda de aluguel, por um tempo, no Jardim Santa Terezinha, hoje próximo ao Shopping Aricanduva, até finalmente adquirir a propriedade no Jardim Maringá (Vila Matilde), onde eu já começo a ter memórias claras, embora eu me lembre muito genericamente do tempo no Jardim.

A carpintaria rendeu bons frutos a meu avô e, nesse intento, ele também levou meu tio Rubens que, sem grandes opções de escolha (tal qual a história do próprio pai), sendo o homem mais velho dos filhos de seu Alcides, trilhou (e trilha) os passos profissionais do pai. Meu avô, em algum ponto dos anos 1990, tinha fama suficiente para ser contratado por grandes empreiteiras para colocação de batentes, portas, esquadrias e todo o tipo de trabalho em madeira para grandes projetos prediais. Também fez enormes telhados na recém-inaugurada (enquanto zona residencial) Alphaville – bairro de alto padrão na cidade de Barueri, e nas cercanias da Capital. Foi uma época de muita vitalidade para ele, com ganhos que se não o fizeram independente, financeiramente falando, certamente lhe permitiram ter alguns luxos incomuns ao profissional da atividade braçal, como carros do ano (exemplificado num imponente Opala Diplomata), uma casa assobradada, mobília boa e, enfim, o sonho de MUITA gente – o que, a despeito de julgamentos tolos [à essa altura] quanto à validade previdenciária e inteligência patrimonial, não eram sonhos realizáveis pelo grosso da gente que partilhava do mesmo ponto de largada – que fique bem claro: muito perto do zero absoluto – de meu avô.

Com relação à sua família de origem, meu avô não se dava bem com praticamente nenhum de seus familiares. Traído por um de seus irmãos em atabalhoada operação financeira, com uma relação extremamente difícil com seus pais, em especial com a mãe; de minha memória, só me lembro dos raros encontros entre vô Alcides e “tio” (-avô) Alfredo (ao lado esquerdo da posição de meu avô, na foto acima), seu irmão caçula, àquela altura, integrante já aposentado da Força Pública de São Paulo. O capítulo em que meu avô tentou ingressar na PM paulista não cabe de ser contado por estas bandas, porém, é hilário…

Em algum ponto dos anos 90, o primeiro baque em sua saúde: Teve que lidar com um quadro gastroenterológico complexo. Sofreu com a úlcera péptica, vesícula e mais algo; foi à cirurgia algumas vezes. Em certo ponto, por complicações nas intervenções, chegou a ser desenganado pelos médicos, conforme se relata nos causos que a família conta aqui e acolá (lembre-se: eu posso até ter testemunhado isso tudo, mas não tinha mais do que seis ou oito anos de idade).

Já nos anos 2000, tomado por algumas idealizações de como fazer riqueza material, enveredou em projetos comerciais alheios ao seu ramo e desastrosos em resultado, com parceiros desqualificados, amargando o prejuízo. Como costuma se dizer, maldosamente (é claro), no mundo dos negócios: “quando um lado entra com dinheiro e o outro lado entra com a experiência em um negócio, o primeiro sai com experiência, e o segundo sai com o dinheiro”.

Uma coisa que me chamava a atenção nos últimos tempos é que a imagem residual deixada por meu avô nos outros era a imagem de um homem duro, de palavras afiadas, de pavio curto e humor explosivo. Sinceramente, ele era tudo isso. Não se frustrava em “avisar” as mulheres da família de sua eventual decadência de um padrão estético que sabe-se lá qual era; não se esquivava de chamar esse filho de preguiçoso e aquele outro de abobado. Era um idoso que, nos últimos tempos, não fazia questão de evitar o confronto. Reconheço que o trato com o vô não era dos mais simples. Todavia, também peço vênia a quem tenha sido ofendido(a) para lembrar que é difícil ser feliz e “pra cima” sentido dor o tempo todo. Ele, nos últimos tempos, lutava com uma progressiva falência cardiovascular e passou os últimos anos com bem menos do que cinquenta por cento do coração em funcionamento. Disso decorriam tonturas, enjoos e outros desdobramentos como a falência renal e de demais sistemas que, em última instância, levaram a vida dele ao fim.

Contudo, quero falar do vô Alcides que muita gente não teve a chance de conhecer (ou simplesmente não se recorda; talvez, por ter suplantado as memórias boas com as imagens dos últimos tempos): meu avô era um farrista. Sim, isso mesmo: um farrista. Na juventude, soube tocar Sanfona (no Sul, preferem “Acordeon”) e se produzia inteiro, com direito a brilhantina no cabelo e todo o aparato para bailes que varavam as noites. Quando vejo o humor de boa parte dos meus tios e de meu irmão ou de meu primo, Felipe, vejo muito a irreverência e até a insolência de meu avô nos tempos áureos de minha infância. Meu vô era, acima de tudo, um contador de causos. De naves alienígenas a fantasmas no telhado e tudo no meio disso; e não estou exagerando na temática: eu ouvi isso tudo e um pouco mais. Gostava de umas conversas longas e dava risadas espalhafatosas enquanto assistia “A Praça é Nossa”. Gostava de vinho naquelas embalagens pequeninas de CINCO LITROS. Gostava de goiabada com queijo. Gostava da Sociedade Esportiva Palmeiras, gosto que muitos dos filhos e netos herdaram (mesmo que não saibam disso) – mas, não eu! 😛

Por motivos que não me cabe fazer análise – por respeito à sua memória e por falta de conhecimento dos fatos e situações – optou por professar sua fé através da tradicional denominação protestante do Adventismo do Sétimo Dia. Nela, ficou conhecido pela comunidade do Jardim Maringá. Atuou com muito empenho ali, foi diácono e, acredito sem ter a certeza, se tornou até ancião. Essa vertente do Cristianismo, como o próprio seu Andrade, é de maior dureza que o comum, fato que se repete com outras denominações do protestantismo clássico. Com ela, vieram certas proibições (a mais clássica, a guarda [= sem atividades] do Sábado, em reprise ao que se tem no Judaísmo e o Sabbath) e mudanças de comportamento que são esperadas de quem adentra às congregações de mesma espécie. Abandonou o gosto pelo futebol, abandonou o vinho, abandonou a carne de porco, se tornou mais crítico às frivolidades da vida.

Veja, sou obrigado a realizar uma pausa no raciocínio e partir para um esclarecimento. Não teço crítica subjetiva à escolha religiosa de meu avô. Tenho certeza de que a fé o moveu por momentos difíceis e de provação e que, não fosse ela, ele não teria chegado tão longe. Também sei que algumas mudanças em sua vida vieram para melhor; por exemplo, se abster do álcool e da carne de porco (especialmente em embutidos) e diminuir o consumo de carne vermelha, para um homem que quase morreu de problemas gastrointestinais, é extremamente bem-vindo. A igreja também o fez aumentar a temperança, controlar seu gênio iracundo, medir as palavras, praticar mais atos de amor ao próximo, enfim… Não tento, com o trecho anterior, desqualificar a função e o impacto positivo da religião e da denominação por ele escolhida, em seu estilo de vida. Todavia, não posso deixar de entender que também houve impacto em sua capacidade de ser o Alcides farrista, gozador, brincalhão e farofeiro que eu pude conhecer no início de minha vida; e isso precisa ser ponderado.

De volta à linha do tempo, seu Alcides ainda viria a arriscar, já na década de 2010, nova tentativa de alavancagem financeira, agora tentando se embrenhar na complicada rotina das empreiteiras de construção civil. Juntou patrimônio líquido e foi-se embora para Campinas, onde adquiriu terrenos e tentou edificar casas para revenda. No meio do projeto – que já não andava bem – sofreu grave acidente, despencando do telhado da obra (ele era carpinteiro, se lembra?), infortúnio que causou lesão crítica em seu crânio, conduzindo-o a breve período de coma e um novo encontro com a dona Morte. Mais internação, mais médicos, mais avisos para a família de que “dessa vez, ele vai”… Acontece que meu avô era ruim, mano véio… O bicho não tava a fim de facilitar o trampo de ninguém, muito menos o dela. E superou mais essa. No entanto, não sem um preço alto. Daquele momento, em meados de 2010, para frente, sua saúde declinou bastante e ele já passava dos setenta anos há bom tempo.

A pergunta que pode ocorrer ao ler o parágrafo anterior é “por que um homem de mais de setenta anos ainda subia em canteiro de obras? Por que o deixavam fazer isso?”. Se você veio de uma família organizada, com boa educação formal já na geração dos seus avós, eu entendo a surpresa. Se seus pais e avós tinham profissões triviais em balcões e escritórios, também entendo. Mas, essa não é a biografia de meu avô. A biografia dele é tão acidentada quanto ele próprio. Quase sempre, o “planejamento” equivalia tão somente ao desejo de fazer algo. Como alguém que criou sozinho, do ponto de vista financeiro, oito filhos – sendo minha avó, em boa parte da vida, dona de casa e mãe – “planejamento financeiro” não era mais do que um nome complicado e inexequível.

Não estou a “passar pano” para o véio… Ele deveria ter pensado melhor, planejado melhor, executado melhor… E eu deveria ser mais magro, praticar mais esportes, viver menos estressado… A história de uma vida, em retrospecto, é inegavelmente e sempre mais fácil à crítica, do que vivê-la e decidi-la ao vivo e em cores. Ele deveria ter se preparado melhor para a velhice? Certamente. Todos devemos. E mesmo hoje, com internet, Youtube, livros a dar com pau nessa temática, eu *sei* que mais de 70% do meu povo vai amargar nos anos finais da vida, exceto se tiver a “sorte” (que sorte, hein?!) de receber uma morte rápida, ainda em idade economicamente produtiva – que, a depender da previdência pública, que cada vez mais caminha para a congruência entre idade mínima para gozo e a expectativa de vida, vai ser cada vez mais fácil de ocorrer…Vai ver que o “plano” da previdência pública para seus contribuintes é esse, mesmo… Estou tergiversando…

Eu sei, também, das ossadas que vão por debaixo, pelos lados e por cima dessas histórias que aqui narro. Eu sei que, a depender do familiar que se consultar, haverá culpados para situação A, B, C, e todo o caminho até o Z… Ocorre que esse relato não é sobre essas pessoas, eu já disse. É sobre o meu avô. O que essas pessoas fizeram e deixaram de fazer com ele é um problema – se for – para a consciência delas, não para a minha. E agora que ele morreu, nem para a dele. De tal modo que eu acredito sinceramente que empodero mais meu avô, como homem, como adulto, como ser humano capaz que foi, ao lhe dar total crédito pelas decisões acertadas e total responsabilidade pelas decisões erradas. Ao não tratá-lo como se fosse criança a ser enganada e manipulada por terceiros malvados, eu elevo meu avô ao patamar de homem pensante e decisivo para com a própria vida e biografia. Acho que assim, de algum modo, honro sua memória e suas lições (as doces e as amargas) de forma melhor do que passar a apontar dedos para quem fez e deixou de fazer; lugar tão comum em qualquer família enlutada.

E é por isso que você deve conhecer, em detalhes, as histórias de seus antepassados. Nem tanto para contá-las de novo, e ainda menos para tentar revivê-las – um erro que a vida costuma punir severamente: tentar repisar os passos que seus antepassados pisaram. Mas, sim, porque nelas reside sabedoria. Não necessariamente inteligência, nem esperteza. Mas, sabedoria. A sabedoria de que o dinheiro não aceita o desaforo (exemplificando, se você é bom em fazer algo, porém é mau administrador, ou você estuda pra saber administrar, ou você contrata alguém que saiba [com a ajuda de um confiável advogado para redigir o contrato]). A sabedoria de que não importa o quão jovem e forte e esperto e isso e aquilo você possa se sentir; se tiver sorte, você vai chegar à velhice e vai descobrir como ela fragiliza e desautoriza sua potestade.

E é por isso que cabe a você, no hoje, enquanto ainda faz e acontece, se preparar (“previdência” = previsão do futuro) para quando essas qualidades não mais lhe atenderem. E, tendo tido essa conversa com os mais jovens que me procuraram no tema, eu sei que bate forte o desespero. Você olha o mundo, olha seu padrão de vida, olha suas perspectivas e não sabe sequer por onde começar. “Quanto eu junto?”. “Como eu junto?”. “Onde eu junto?”. “Vai dar tempo?”. Alguns resumos da angústia dos nossos dias. De novo, caio na digressão…

Ao me esforçar para escrever esse texto, repenso todos os passos do meu avô para os quais tenho consciência. Vejo quantas lições ele deixou e vejo, com algum pesar, quantos erros, por ele vividos, seus descendentes seguem a reprisar. Figurativamente, isso é como atear fogo a uma herança de ensinamentos e sabedoria que a vida dele trilhou e nos contou; herança que permitiria aos vindouros a benção de não ter que cometer os mesmos erros, de novo. O aprendizado, o laboratório, já estavam lá na história de vida dele.

Sacrifício geracional”. Esse termo pode ser novo para você, entretanto, não é para a Sociologia ou para a Psicologia Social. O sacrifício geracional é o conceito de que não é possível, para o grosso da população humana, dar verdadeiros saltos de qualidade de vida dentro de uma mesma geração. Ou seja: se seu pai é pobre, o provável é que ele viva e morra pobre. Dificilmente – não importando tanto o quanto vocês todos se esforcem – ele viverá para desfrutar de um grande império. O que ele faz com o tempo que tem é, pelo contrário, pavimentar o caminho para seu sucesso. E seu sucesso te levará um pouco mais distante da pobreza e da ignorância (lato e stricto sensu) que havia na largada. E você fará o mesmo com seu filho. E assim por diante. É um processo iterativo (sem “n”, mesmo).

Meu avô viveu o sacrifício geracional na pele. Mesmo que não saiba. Partindo de uma condição de quase abandono – que, repito, não era exclusividade da família de origem dele – conseguiu o feito de criar oito filhos que têm suas profissões claras e suas vidas feitas. Alguns já até atingiram a graduação superior, o que é incrível em comparação com a educação/instrução formal que meu avô teve disponível para si. E todos esses oito filhos tiveram suas famílias criadas; e os filhos dos filhos de seu Alcides, em larga maioria, têm estudo sólido, graduação superior, com boa parte dominando uma segunda língua; têm empregos bons… E isso ocorre não mais como exceção à regra.

Algumas pessoas amarguradas, cínicas ou só maldosas – seja lá o que as move – lerão esse texto pensando “que sarro… O netinho narra a história como se o tal do Alcides fosse um santo.”… Não, eu tenho plena consciência de que meu avô foi bem mortal, no sentido mais amplo que essa palavra possa adquirir. Errou e, talvez tenha errado feio com esse(a) ou aquele(a). Deve ter machucado muita gente pelo caminho de sua vida – contudo, ele partiu e quem não se resolveu com ele, perdeu de vez.

Alcides era homem de não deixar nada engasgado, mesmo que errado estivesse. Pagou o preço por isso, tantas e tantas vezes. Humano, demasiado humano, diria Nietzche… Porém, uma das bençãos de eu ter feito terapia por longo período foi a desconstrução do sagrado, inclusive sobre meu pai e minha mãe. Ao encará-los como seres humanos totalmente passíveis de erros e acertos, como qualquer outro ser humano que anda por essa terra, eu ganhei muita qualidade na relação com eles; relação que segue imperfeita e assim será até o último dia de vida deles (ou da minha vida; o que vier primeiro). Porque a relação humana nasce de seres humanos e, sendo todos eles imperfeitos, a relação humana só pode ser imperfeita, também.

Não, meu avô foi qualquer coisa menos santo, perfeito, sagrado, irretocável… Mas, aqui mora a beleza de uma vida digna: se ele machucou você que lê esse texto, eu não posso pedir desculpas por ele (desculpas são personalíssimas e ele não me deixou procuração com esse tipo de poder). Ainda assim, fico bastante confortável de lhe dizer: na cabeça dele, e diante de toda a inteligência e limitação que a existência dele representava, ele realmente achou que aquela era a coisa certa a se fazer. Meu avô pode ter uma lista, maior do que esse texto, de defeitos e de capítulos pouco aprazíveis. Porém, seu senso de “certo” e “errado” nunca denotou ser do tipo “flexível”. Às vezes, a dureza desse senso beirava ao fundamentalismo. Contudo, fica para outro texto.

Nos últimos tempos, nas conversas que tive com meu avô, ele muito se queixava de seu “fracasso nessa vida”. Era uma constante nos nossos breves e infrequentes colóquios – infrequentes, sim, porque eu não era, nem de longe, o neto mais próximo, mais afinado, mais isso ou mais aquilo. Com oito filhos e todos com dois ou três filhos na média, dá para saber que tinha muito candidato(a) na minha frente…

Amargurado pelos projetos profissionais que não vingaram, ele se dizia até mesmo “envergonhado” por não deixar nada para seus filhos. “Eu devia ter conseguido deixar uma casa para cada um deles, pelo menos, putcha vida”… Compreendendo minha incapacidade de ter lugar de fala nesse – para mim – estranho sentimento de dívida com a prole (já que não a tenho), ainda assim, eu o repreendia: “Vô, mas que puta bobagem de se dizer, hein? ‘Não deixou nada’? Sério mesmo? E seus filhos chegaram aqui, como? Geração espontânea? Sorte? Acaso? Então, ter criado oito filhos, sabe Deus como, é nada além de acidente? Ter oito filhos que não roubam e não matam, que sabem a diferença de ‘certo’ e ‘errado’ – o que não equivale à garantia de que não vacilem na práxis – que têm suas próprias famílias e que estão indo além do ponto de partida… Tudo isso, então, é ‘nada’???”, indagava eu a ele, com certa braveza no tom – não porque eu pudesse intimidá-lo, e sim porque eu desejava que isso o chacoalhasse e que ele sentisse a faísca do embate e se engajasse. Eu desejava a tal da “recalibração cognitiva” que, no caso dele, estava obviamente afetada. Eu não consegui. Creio que ele partiu convencido de que falhou na missão.

A afetação do “sentido da vida” que se abateu no meu avô nada tem a ver com a pretérita condição de saúde dele. A doença que afetava sua percepção era de cunho social. No nosso mundo, onde um ser humano só vale o que tem e pode ostentar (mais e mais e sempre mais), terminar como ele terminou é sinônimo de fracasso para muita, muita gente. Não para mim. Porque entendo o sacrifício geracional. E porque todo dia que saio da cama, tento lembrar dos erros dos meus antepassados e tento não repeti-los; também para respeitar sua herança histórica, deixada a mim a custo de sangue, suor e lágrimas.

Friso o “tento” porque essa é a vida real. Eu jogo todas as vezes para ganhar. Isso não me impede, contudo, de perder. E quando perco, levanto-me, tento analisar qual foi o deslize, onde foi que o bolo desandou, o trem descarrilou, o barco emborcou; saio da lama, lavo a cara, ponho o band-aid… E volto para o jogo. É só isso o que tenho. É só isso o que todos nós temos, enquanto o coração bater: a chance de se levantar do rodo cotidiano e tentar de novo.

Essa não é uma história da minha família. Essa é a história de muitas famílias; da maior parte das famílias brasileiras. Pelo menos, daquelas que não tiveram vantagens significativas na largada. Em larga medida, o que conto sobre meu avô Alcides caberá, com ajustes ali e aqui, para todos meus avós e boa parte de quem veio antes de mim.

Não vô, sua vida não foi um fracasso. Lamento, porém, nessa, vamos concordar em discordar. E eu tenho um argumento ao qual o senhor não teria como replicar, mesmo que vivo estivesse:

Por onde seus oito filhos andarem, e seus dezenove netos passarem, e seus N* bisnetos (* = números ainda em andamento) caminharem, lá estará o senhor. De um jeito ou de outro. E se hoje eu como pão com manteiga, foi – também – porque minha mãe (sua filha) comeu margarina, e o senhor nem isso teve. O sacrifício está aí e o sucesso, também. Eu sou resultado, em boa medida, de todos os privilégios que tive. E se não são grandiosos ou portentosos como os de quem nasceu em berço de ouro, neste trágico país de desigualdades, ainda assim são as conquistas de cada geração dessa família (e de toda a minha família [que tem dois lados]) que me permitem sonhar com aquilo que, para o senhor, foi impensável. E se, por acaso, eu vier a ter filhos, também me sacrificarei, dentro do que estiver ao alcance do real, para que eles voem ainda mais alto do que eu.

Não vô, essa biografia não é um fracasso. OITENTA E SETE ANOS de vida honesta – e que arque com o ônus da prova quem eventualmente o acusar do contrário – e de batalha dura, jamais poderão estar no mesmo parágrafo da palavra “fracasso”. Eu não admito. Ninguém de bom-senso admitirá. Jamais. Se o senhor discordar de mim, dá seu jeito e volta para a gente debater essa questão (o senhor teria gostado desse humor… Sei que sim…).

E aqui vem a última herança que sua morte trouxe: O reforço de uma lição que todos nós teimamos em esquecer. A morte é uma certeza, como os impostos também são. Ninguém, ninguém mesmo, vai sair daqui vivo. E a morte remove de nós algo muito importante: A agência. Enquanto estamos respirando, sempre podemos agir. Se algo está mal resolvido, dá tempo de resolver. Se um capítulo com alguém está mal escrito, dá para tentar reescrever (claro: esse tango depende de dois [ou mais]. Todavia, pode caber a você o primeiro movimento).

Mas quando morremos, deixamos o “ser/estar” e adentramos ao “era/foi”. Nesse tempo verbal, nada mais podemos realizar. Nossa agência, como eu disse, nos é removida.

Na quinta-feira passada, meu avô virou história. Uma boa história. Capítulos bons, capítulos ruins. Momentos de suspense, de drama, de derrota, e várias vitórias. Teve de tudo. Oitenta e sete anos AUTORAIS. Vida boa, vida ruim, foda-se: meu avô viveu conforme seus valores, fossem eles bons ou ruins, justos ou injustos. Ele esteve no timão em cada rio e mar pelo qual navegou com a vida dele. E isso é o meu significado para “vida digna”. Uma vida da qual ninguém possa lhe tirar a autoria, ninguém possa lhe acusar de passageiro ao invés de condutor. Ele conduziu. Ele foi o Alfa e Ômega de sua passagem nessa terra. E agora acabou. Mas, não acabou.

Por onde um(a) Andrade andar – desde que descenda da Grande Casa de Corredeira e da Grande Casa de Pontal – lá estará seu Alcides Martins de Andrade, em toda sua história, em todo seu sacrifício geracional, em toda a sua herança e toda sua dignidade.

Este é o relatório, tia… (risos).